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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Playtime de Jacques Tati, Uniformidade e Singularidade.


Em arquitetura, a forma certa responde a um significado preciso e único. Para um significado existe uma única e irrepetível forma. E o comportamento das pessoas ao interagir com essa forma da arquitetura é que afinal conta, em defesa do indivíduo, que não se automatiza e que continua livre.


«What I’ve been trying to show is that the whole world is funny (...) comedy belongs to everybody.» (Malcolm Turvey, 2020, p. 62)


Hulot representa o indivíduo em ‘polémica’ com a sociedade estabelecida - não é apenas um visionário isolado do mundo. Hulot reforma sem destruir, sem quebrar a evolução natural da sociedade.


Na era da máquina o trabalho manual deixou de estar no centro de tudo, deixou de estar totalmente envolvido com o material. Tati, mostra que a arquitetura deixou de ser a revelação de um espírito, porque quando assim é, revela-se sempre imperfeita incompleta, impura e expressiva. No livro PlayTime. Jacques Tati and Comedic Modernism (2020), de Malcolm Turvey, lê-se que no filme Playtime, só o erro traz individualidade ao Royal Garden e a humanização, naquele espaço acontece assim que o chão se descola ou assim que Hulot tenta apanhar a laranja que está colada ao teto... A irregularidade, a incorreção, o amor pela alteração, pela imaginação confusa, o excesso e a redundância, a mistura das partes e a união do todo, só se conseguem a partir desse momento, no filme, naquele pequeno espaço da festa no Royal Garden.


Por toda a cidade, de Playtime, o corpo está ausente, existem só reflexos na arquitetura de vidro. Na cidade de Playtime, tal como para Walter Gropius «o espaço da arquitetura não é nada em si; é uma pura, inclassificável e ilimitada extensão» (G.C. Argan, 1992, p.273). O edifício já não é uma massa plástica, mas sim uma construção geométrica de planos transparentes no espaço.


Tati não critica o movimento moderno, critica sim a rapidez das transformações no mundo moderno e a forma absurda que a arquitetura pode tomar assim que uma linguagem (qualquer) é esvaziada de significado. Talvez a personagem de Hulot em Mon Oncle e em Playtime tente dar de novo significado à arquitetura. Tente dar de novo autonomia à expressão individual, pura e livre. Talvez despoletado não por uma intenção meramente pessoal, mas por uma intenção muito maior, relacionada com a necessidade de perseguir a vida com mais alegria, poesia e compaixão (porque se todos estivermos atentos e disponíveis estes propósitos podem ser encontrados a todo o tempo e em qualquer parte). Naquele bocado de espaço do Royal Garden, estabelece-se dentro daquele espaço (que é expressão subjetiva da vontade do tempo e do ser humano) de repente uma festa paralela dentro de um espaço irregular (formado pelo acaso, não planeado, sujo, partido, pequeno...).


No filme Playtime, todo o ambiente urbano se organiza sem erro e sem nódoa. Tudo e todos reagem como autómatos - em movimentos repetidos e iguais. Não se distinguem tipologias arquitetónicas - o aeroporto, o hotel, o escritório, a loja e a casa. Tudo se parece. O dentro e o fora misturam-se. O espaço privado e o espaço público confundem-se. Caixas de vidro aparecem dentro de caixas de vidro.


E por isso, as outras dimensões da vida são introduzidas através da imperfeição - talvez a  verdadeira vida só aconteça por entre aquilo que é automático.


Neste ambiente, Hulot não consegue ser rápido e eficaz em controlar até os seus próprios movimentos. Playtime deixa transparecer a necessidade de um profundo espírito, individual e livre, que deve estar constantemente por trás de tudo o que é criado (por mais insignificante que a criação seja). O ideal de beleza que só aceita o rápido, o perfeito, a síntese, a repetição, a precisão, a uniformização e a passividade deve ser substituído por uma vontade de dar forma que aceita as imperfeições, a problemática, a irregularidade, a demora, a hesitação, a singularidade e a participação de todos os indivíduos, sem exceção. Porque a criação não é uma habilidade superior, nem inatingível. É uma capacidade humana que se encontra em todo o fazer desde o trabalho mais moroso ao mais minúsculo e ínfimo.


Tati não procura evocar uma forma de arquitetura nostálgica mas antes uma arquitetura mais humana. As imperfeições são difíceis de aceitar e o modernismo cómico manifesta-se através de imperfeições, enganos (um aeroporto que parece um hospital, um edifício que se parece com o aparelho radiofónico).


«What I condemn in the ‘new’ life is precisely the disappearance of any respect for the individual», Jacques Tati (Malcolm Turvey, 2020, p.55)

 

Ana Ruepp