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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SOFRER POR MOTIVOS ERRADOS

  


Sofre-se por muitos motivos: lumbago, escrúpulos, causas. Quase ninguém é de opinião que o sofrimento seja agradável. E a maior parte das pessoas acha que evitar sofrimentos, sobretudo próprios, é um objectivo razoável. Mas será que uma pessoa que sofre é necessariamente uma boa pessoa? E será que uma causa ou uma ideia por que uma pessoa sofreu se torna boa apenas pelo facto de alguém ter sofrido por isso? A noção não ocorreria a propósito de lumbago. O lumbago não pode ser um motivo errado.

Estas perguntas vêm de ouvir de vez em quando um programa ao fim de semana em que se entrevistam pessoas que foram torturadas em prisões políticas portuguesas. A tortura é um processo detestável. Não devia existir e não devia ter existido. Um regime em que não se torturam pessoas é sempre melhor que um regime em que se torturam pessoas. De igual forma, o sofrimento das pessoas que foram torturadas é genuíno e deveu-se a motivos injustificados.

No entanto, pelo facto de uma pessoa ter sido torturada as suas opiniões não passam a ser verdadeiras. Pessoas com opiniões nobres e opiniões detestáveis são indiferentemente torturadas por quem as tortura. A nobreza ou o carácter detestável de uma convicção não resulta do somatório dos horrores por que os seus adeptos passaram: o sofrimento não pode ser convertido em mérito intelectual. Por essa razão, a nobreza ou o carácter detestável de uma pessoa torturada não podem ser desligados da natureza das suas convicções.

A maior parte das pessoas ouvidas no programa foram e acredito que ainda sejam militantes comunistas. O facto de terem sofrido é porém irrelevante para os méritos do comunismo. Se fossem nazis ou democratas-cristãos o seu sofrimento também não alteraria em nada a qualidade das suas convicções. A qualidade das convicções políticas mede-se por aquilo que acontece àqueles que não as partilham. O teste de uma doutrina política não é nem pode ser a qualidade ou a quantidade de sofrimento que causou aos seus adeptos; embora uma característica de certas doutrinas políticas seja o sofrimento que inflingem aos seus próprios adeptos.

Existe um erro de raciocínio que consiste em concluir que, como a tortura é detestável, as opiniões das pessoas que foram torturadas são nobres. É este erro que leva muita gente a sentir-se tentada a respeitar por atacado as ideias de todas as pessoas que foram torturadas, excepto possivelmente as dos nazis. Acontece que a maior parte das pessoas que ouvi naquele programa têm ideias confusas, cruéis e primitivas. Devemos ser capazes de distinguir os horrores que lhes aconteceram das enormidades que eles dizem. A nossa compaixão deve antes ser reservada para quem foi torturado porque tinha ideias boas, mas muito em especial para quem foi torturado porque não tinha quaisquer ideias.


Miguel Tamen
Escreve de acordo com a antiga ortografia

SÁBADO SANTO, PÁSCOA

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Deus é radicalmente questionado quando se é confrontado com a realidade brutal dos holocaustos da História e concretamente com a tortura e a morte dos inocentes.

Neste domínio, é sempre incontornável a passagem célebre de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, em que Ivan Karamázov refere precisamente a  crueldade exercida sobre as criança inocentes. "A ciência toda não vale as lágrimas das crianças", proclama. O que faremos com o sofrimento dos inocentes? Como se pode alguma vez justificar o injustificável? É tal a revolta de Ivan Karamázov que ele devolve respeitosamente a Deus o bilhete de entrada na harmonia final da história do mundo.

Em última análise, é o sofrimento e a morte que nos obrigam a pensar. Mas precisamente o sofrimento e a morte são o que a razão nunca entenderá, concretamente quando se trata do sofrimento e da morte das vítimas inocentes. É por isso que Miguel de Unamuno escreveu: "O mais santo de um templo é que é o lugar onde se vai chorar em comum". E acrescentava de modo dramático: "Um Miserere  cantado em comum por uma multidão, açoitada pelo destino, vale tanto como uma filosofia."

O paradoxo é este: face ao calvário do mundo, Deus comparece perante o tribunal da razão. Por outro lado, para haver salvação, também e sobretudo para as vítimas inocentes, ela só pode vir de Deus. Deus tem de justificar-se, e, ao mesmo tempo, só ele pode justificar, isto é, salvar.

Sexta-Feira Santa é o dia da celebração da Cruz de Cristo, o justo inocente, vítima do poder religioso e político. Na sua obra A figura histórica de Jesus, E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que quer dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da história, independentemente da fé, conclui que é possível saber o que é que Jesus fez, que o centro do seu anúncio foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que, "depois da sua morte, os seus seguidores experienciaram  o que descreveram como a 'ressurreição'”: aquele que tinha morrido apareceu como "pessoa viva, mas transformada". "Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso". Deste modo, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu e mudou a história: o cristianismo

No período pascal, os cristãos ouvem falar muitas vezes da Sexta Feira Santa, o mesmo acontecendo com o Domingo de Páscoa. Mas raramente ou talvez nunca se fale do Sábado Santo. É em Sábado Santo, no entanto, que nos encontramos.

Na medida em que é possível reconstituir o que se passou historicamente com Jesus, foi assim: Pouco antes do ano 30 da nossa era, Jesus, que vivera uma vida normal em Nazaré, acorreu também ele ao baptismo de João. Foi aí que ouviu o apelo divino para o anúncio do Reino de Deus. "Mudai de mentalidade, convertei-vos, acreditai no Evangelho." Agora, quando irromper o Reino de Deus, Deus mesmo vai reinar sobre o seu povo.  Deus vai transformar radicalmente a História, levando à consumação plena e final a sua obra da criação. Acabarão os sofrimentos, as doenças, a morte. Nenhum homem há-de explorar outro homem. Reinará a justiça, a paz, o amor, cumprir-se-ão as promessas, ficarão satisfeitas todas as esperanças.

Como sinal dessa chegada, Jesus curou doentes, comeu com pecadores, transgrediu normas também de tipo religioso que, em vez de trazerem libertação, oprimiam homens e mulheres.

Esta actividade pública de Jesus foi curta: um ano, talvez dois, três no máximo. Pelo ano 30, por motivo da Páscoa, foi a Jerusalém com os discípulos. Houve quem o aclamasse Messias libertador. Enfrentou concretamente o sacerdócio judaico — parece que havia uns 20.000 sacerdotes e levitas —, declarando que Deus estava farto de sacrifícios. Flávio Josefo refere que numa páscoa degolaram 255.600 cordeiros. Mas, segundo Jesus, é preciso aprender que o que Deus quer é justiça e misericórdia.

Vendo privilégios abalados por causa do seu anúncio de um Deus solidário com os pobres, oprimidos , explorados, e com medo de uma sublevação popular que levasse à intervenção das tropas romanas, as autoridades judaicas, nomeadamente o sumo sacerdote, detiveram Jesus e interrogaram-no. E enviaram-no a Pilatos, governador-representante da Roma imperial, que, após julgamento expedito, o mandou executar na cruz, suplício próprio de escravos. O que se passou com Jesus no seu íntimo na cruz não sabemos. Mas há aquela palavra-oração que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?"

Os discípulos desiludidos fugiram, voltaram às suas tarefas normais, pois aparentemente tudo tinha acabado.

O enigma do cristianismo, mesmo de um ponto de vista histórico, é este: pouco depois começaram a anunciar que o tinham visto, que Ele está vivo.  E por isso deram a vida, mártires. Se tudo tivesse terminado na morte, o destino de Jesus teria sido o esquecimento.  Os discípulos foram-se reunindo outra vez e formaram comunidades congregadas pela fé em que esse Jesus, o Messias de Deus, voltaria para instaurar o Reino de Deus.

É em Sábado Santo que nos encontramos: entre a Sexta Feira Santa e o calvário da História, por um lado, e, por outro, o Domingo de Páscoa, isto é, a profecia, a promessa, a expectativa, a esperança, que não morre, do Reino de Deus, do amor, da fraternidade, da justiça plena, da alegria toda, da ressurreição dos mortos, da filadélfia, do banquete universal com Deus e todos os homens.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 30 de março de 2024

DEUS E OS VENCIDOS

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A razão iluminista tinha como desígnio a reconciliação e emancipação plena do Homem. Mas, de facto, sem esquecer evidentemente conquistas irrecusáveis, como, por exemplo, as Declarações dos direitos humanos nas suas várias gerações, deparamos com duas guerras mundiais e as suas muitas dezenas de milhões de mortos, o comunismo mundial e também os seus milhões e milhões de vítimas, deparamos com Auschwitz e o Goulag, o fosso cada vez mais fundo entre a riqueza e a miséria, a Natureza ferida, a desorientação e o vazio de sentido...

E, desgraçadamente, sabemos que o número das vítimas não cessará de aumentar, de tal modo que frequentemente a História nos aparece, como temia Walter Benjamin, à maneira de um montão de ruínas que não deixa de crescer. Mas, mesmo que fosse possível realizar no futuro uma sociedade totalmente emancipada e reconciliada, nem assim, desde que iluminada pela memória, a razão poderia dar-se por satisfeita, pois continuariam a ouvir-se os gritos das vítimas inocentes, cujos direitos estão pendentes, pois não prescrevem.

O teólogo Johann Baptist Metz não se cansou de repetir, com razão, que só conhecia uma categoria universal por excelência: a memoria passionis, isto é, a memória do sofrimento. Se a História não há-de ser pura e simplesmente a história dos vencedores, se a esperança tem de incluir a todos, quem dará razão aos vencidos?

A autoridade do sofrimento dos humilhados, dos destroçados, de todos aqueles e aquelas a quem foi negada qualquer possibilidade é ineliminável. Trata-se de uma autoridade que nada nem ninguém pode apagar, a não ser que o sofrimento não passe de uma função ou preço a pagar para o triunfo de uma totalidade impessoal. Mas precisamente o sofrimento, que é sempre o meu sofrimento, o teu sofrimento, como a morte é sempre a minha morte, a tua morte, é que nos individualiza, dando-nos a consciência de sermos únicos, de tal modo que nenhum ser humano pode ser dissolvido ou subsumido numa totalidade anónima, seja ela a espécie, a história, uma classe, o Estado, a evolução... O sofrimento revela o outro na sua alteridade, que nos interpela sem limites.

Assim, se as vítimas têm razão - a razão dos vencidos, como escreveu o filósofo Reyes Mate -, com direitos vigentes que devem ser reconhecidos, não se poderá deixar de colocar a questão de Deus, um Deus que as recorde uma a uma, pelo nome, chamando-as à  plenitude da Sua vida. "Essa é a pergunta da filosofia", dizia Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt. Mas é claro que para essa pergunta só a fé e a teologia têm resposta. Ele próprio o reconheceu, ansiando pelo “totalmente Outro”.

Se a História do mundo tem uma orientação, ela só pode ser a liberdade. Ser Homem, ser livre e ser digno identificam-se. Com razão, I. Kant não se cansou de repetir que o respeito que devo aos outros ou que os outros podem exigir de mim é o reconhecimento de uma dignidade, isto é, de um valor que não tem preço. O que tem preço pode ser trocado: é meio. O Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim em si mesmo.

Quando nos interrogamos sobre o fundamento da dignidade do Homem, encontramo-lo no seu ser pessoa. Pela liberdade, a pessoa está aberta ao Infinito. Se se reflectir até à raiz, concluir-se-á que o fundamento último dos direitos humanos é nesse estar referido estrutural do Homem ao Infinito que reside: nessa relação constitutiva à questão do Infinito, à questão de Deus precisamente enquanto questão (independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê), o Homem aparece como fim e já não como simples meio.

O Homem é senhor de si, autopossui-se, e é capaz de entregar-se generosamente a si próprio a alguém e por alguém. A Humanidade faz a experiência de si como história de libertação para mais humanidade, portanto, para mais liberdade. O Homem indigna-se desde o mais profundo de si contra a indignidade, revolta-se contra toda a violação arbitrária e impune da justiça e do direito, e é capaz de dar a vida pela dignidade da humanidade em si próprio e nos outros seres humanos.

Houve muitos homens e mulheres que, ao longo da História, livremente, morreram por essa dignidade. Mas mesmo que tivesse havido apenas um a fazê-lo, seria inevitável perguntar: o que é isso que vale mais do que a vida física?

Precisamente aqui, nesta experiência-limite, deparamos com o intolerável: como é que pode ser moralmente admissível que quem é sumamente digno, pois se entrega até ao sacrifício de si pela dignidade, morra, desapareça e apodreça, vencido para sempre? Por isso, neste acto de suma dignidade, encontramos um dos lugares em que a questão de Deus enquanto questão é irrenunciável e irrecusável.

A experiência do Deus bíblico surge essencialmente da experiência do intolerável de as vítimas inocentes serem entregues para sempre à injustiça. O Deus bíblico é definitivamente um Deus moral: é o Deus que não esquece os vencidos.

Por isso, a História não é um continuum, onde a razão estaria permanentemente do lado dos vencedores. A História está aberta ao salto último da meta-história, à Palavra definitiva que só Deus pode pronunciar, Palavra que ressuscita os mortos e reconhece para sempre às vítimas os seus direitos. Sem esse reconhecimento definitivo da dignidade de todos, bem e mal, justiça e injustiça, honra e cinismo, verdade e mentira, dignidade e indignidade, tudo é igual, pois, como escreveu Bernhard Welte, tudo seria para nada, já que irá ser engolido pelo nada para sempre.

 

 Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 de fevereiro de 2022

O SENTIDO DA VIDA. (3) SOFRIMENTO E SENTIDO

 

Há uma vivência radical que põe o pensamento em sobressalto. Cada um de nós sabe que não esteve sempre no mundo, isto é, que nem sempre existiu e que não existirá sempre. Houve um tempo em que ainda não existíamos, ainda não vivíamos, e haverá um tempo em que já não existiremos, já não viveremos cá, deixaremos de viver neste mundo. Nesta constatação, experienciamos que somos de nós, somos donos de nós — essa é a experiência da liberdade —, mas não nos pertencemos totalmente, não somos a nossa origem nem temos poder pleno sobre o nosso fim. Viemos ao mundo sem nós — ninguém nos perguntou se queríamos vir — e um dia a morte chega e leva-nos pura e simplesmente. Não nos colocámos a nós próprios na existência nem dispomos totalmente do nosso futuro, não somos o nosso fundamento. Aqui, perante a certeza de que nem sempre estive cá e de que não estarei cá para sempre, pois morrerei, ergue-se, enorme, irrecusável, a pergunta: donde vim?, para onde vou?, qual é o sentido da minha existência?, que valor tem a minha vida?


Esta pergunta formula-se em relação a todos os seres humanos, à vida em geral, a toda a realidade.: Porque é que há algo e não nada?, perguntaram Leibniz e Heidegger, entre outros, mas ela diz respeito concretamente a cada um, a cada uma, de modo existencial e tem carácter ao mesmo tempo teórico e prático, uma vez que implica a liberdade. Ela é a pergunta mais originária e fundamental, como bem viu Albert Camus: “Se a vida tem ou não tem sentido, essa é a questão metafísica”. De facto, o ser humano não pode viver sem sentido. Aliás, a existência humana está baseada na convicção do sentido. Há um pré-saber do sentido, de tal modo que a sua própria negação ainda o afirma. No limite, não é possível o “suicídio lógico”, pois quem pegasse numa arma para suicidar-se, porque tudo é absurdo, estava a negar o absurdo e a afirmar o sentido: pelo menos esse gesto tinha sentido...


Assim, quando se fala em sentido da vida, é preciso referir o “ter sentido” — há inteligibilidade e valor no ser —, e o “dar sentido”: comprometer a liberdade na tarefa de realização da existência própria. Dar sentido pressupõe encontrá-lo antes. E fundamentalmente sente a vida como tendo sentido quem vê a sua existência reconhecida.


A nossa vida não tem sentido, quando não vale para ninguém. No entanto, suportamos e superamos sofrimentos e fracassos, se alguém nos reconhece; erguemo-nos outra vez, apesar de tudo, se a nossa vida continua a ter valor para alguém, se alguém nos ama. Então, reciprocamente, a vida tem sentido, quando saímos de nós e nos dedicamos a alguém ou a uma causa. Quem não ama nem é amado sente a vida vazia de sentido, isto é, sem valor, como não valendo a pena. E como pode encontrar sentido quem não tem uma causa que o transcende e pela qual se bate?


O famoso psiquiatra e psicoterapeuta, Viktor Frankl, fundador da logoterapia, mostrou — ele sabia-o por experiência, pois esteve prisioneiro nos campos de concentração nazis — que a experiência mais radical do ser humano é o sentido, razões para viver. Ao contrário do que afirmaram Freud e Adler, no mais fundo de nós não se encontra a exigência de prazer e de poder, respectivamente, mas a vontade de sentido. Claro que o prazer é importante na vida, mas o prazer não garante a felicidade, um dos maiores enganos e ilusões consiste mesmo em confundir a felicidade com a soma de prazeres; concretamente, o prazer erótico, sem amor, sem encontro pessoal de liberdades em corpo, vai definhando e morrendo em frustração pornográfica. O poder pelo poder passeia-se pela vaidade oca de estrelas cadentes e na dominação político-económica arrogante e totalitária, e, depois... o que resta senão a ilusão de grandezas que murcham e se apagam? Ah!, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”, constata o Eclesiastes.


O paradoxo é este: a felicidade não pode ser buscada por si mesma, pois surge como consequência da realização dos valores e do sentido: é esquecendo-se de si e entregando-se a alguém, no serviço de grandes causas, que os seres humanos verdadeiramente se encontram a si mesmos. Investigadores sociais e psiquiatras não têm dúvida de que o vazio e a frustração existencial são uma das causas maiores dos desequilíbrios psicológicos do Homem contemporâneo. E mostram que a carência de sentido está frequentemente na base da dependência da droga, do alcoolismo, da criminalidade, do suicídio.


E a prova do sofrimento? Em primeiro lugar, até porque muitas vezes a religião sacralizou o sofrimento, como se Deus precisasse do sacrifício dos seres humanos para aplacar a sua ira, é preciso dizer que o sofrimento pelo sofrimento não só não vale nada como deve ser evitado como um mal. Mas é preciso acrescentar com igual veemência, concretamente neste tempo de hedonismo selvagem, que nada de grande, bom e valioso se consegue sem sacrifício. Quem, por exemplo, não está disposto a sofrer pela pessoa amada não ama verdadeiramente. É necessário aprender a alegria de superar obstáculos para atingir objectivos valiosos: já os Gregos associaram sofrer e aprender. Viktor Frankl verificou, concretametnte nos campos de concentração, que sobreviviam aqueles que ainda tinham um sentido para a sua existência: reencontrar a família, realizar uma obra, bater-se por uma causa, lutar por um ideal, proclamar ao mundo: “Nunca mais este horror!” “Dos que pudemos sobreviver só sobriveram os que encontraram sentido para o sofrimento.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 30 JAN 2021