Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:


   Muitas das pessoas a quem facultaste a leitura da minha última carta, me telefonaram ou escreveram para me dizer que achavam lindo o texto, mas muito triste...


   Quanto à lindeza, sempre disse que os gostos não se discutem. E, no tocante à tristeza, tampouco irei discuti-la, mas nele não pus, nem depois senti, tristeza alguma. Antes, pelo contrário, nele tenho respirado uma muito íntima e profunda alegria, como se me tomasse um canto de amor...


   Afinal, subjacente às histórias ali contadas ou tão somente sugeridas e deixadas à adivinha, está sempre uma presença amorosa, fiel, ora comovida ora saudosa, sustentada pela sua própria fortaleza, na perseverança do seu ser, que a projeta como tal, na vida e na morte, na eternidade ou no tempo, na materialidade ou imaterialidade do espaço, em quaisquer circunstâncias, reais ou simplesmente imaginárias. 


   Já não importa qualquer lembrança nem a falta dela, a memória do amor não pode ser efémera porque nenhum amor é efeméride, o amor é ontologicamente busca de nós em encontro, nunca, nunca jamais em solidão. Ninguém se imagina em amor sozinho.


   Reparei, sem surpresa, aliás, em dito colhido na entrevista a uma jovem socióloga norte americana que, singelamente, afirmava que um dos riscos dos tempos que correm é a ausência de vocações. Não estava a fazer campanha clerical de arregimentação de "vidas consagradas", apenas falava de "callings" (chamadas) e de respostas a desafios autênticos da vida. Falava de amor ou, melhor, do amor num mundo que, por tão ensurdecedor, vai ficando surdo. Cada vez escutamos menos, ou ouvimos pior, os apelos que também nos são dirigidos. E todavia talvez a disponibilidade para os ouvir - e a diligência de os escutar - nos pudesse mudar os apertados horizontes do mundo em que vivemos.


   Para além das românticas fantasias que, quais mantos diáfanos, envolvem as suas apresentações "mediáticas", o amor é essencialmente, a perseverança de um cuidado atento numa peregrinação partilhada. Transpõe momentos de cansaço e irritação, ultrapassa tentações de desistência ou renúncia, atura fielmente os outros e assim também nos ensina a aturar-nos a nós mesmos... Sobretudo, vai-nos pedagogicamente demonstrando como a paciência e a persistência necessariamente decorrem da nossa condição de imperfeitos. As virtudes todas, a nossa própria fortaleza, cultivam-se na imperfeição constitutiva da nossa condição humana. Tampouco os falhanços são derrotas, mas antes apelos e incitamentos a que nos superemos.


   A experiência de situações-limite como a de quotidianamente convivermos com entes queridos que presencialmente vemos esfumarem-se, mais do que perplexidade, causa-nos sofrimento e dor. E, todavia, a perseverança do nosso compromisso com aquela vida - para além dos momentos de cansaço e, quiçá, irritação - paulatinamente, e em luminoso segredo, vai construindo uma bola que, não de neve, mas de ternura mansa, nos encherá de serena alegria.


   Apesar de contraditório - ou talvez por isso mesmo - o ser humano é um percurso de surpresas.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CRÓNICA DA CULTURA

 

Solidão: um lugar de morada

 

Escutei pela radio que uma senhora fazia renda numa farmácia das 9h às 19h todos os dias. Escolheu um cantinho onde desse sol e dizia: é maravilhoso estar aqui na farmácia a fazer renda.

 

Diz que assim nunca está sozinha. Não imagina melhor sítio para estar e o doutor da farmácia entende. É tão discreta que parece-se a uma existência reduzida, ela o banco e a renda. A tensão arterial é branca e as análises que um dia fez acusaram apenas solidão. Há quem precise de explicações para este facto, ela não. Sabe que na morte somos todos iguais e na aflição também. Sabe que aquele que está lá em cima olha por ela, até lhe arranjou a farmácia, e esconde dela as caras dos clientes que não gostam de a ver ali.

 

Às vezes, sente que não descansa nunca, mas não é depressão, é que a renda que faz é complicada e renda, renda, renda a subir e a descer os desfiladeiros da vida da ponta dos dedos ao fundo da alma, são coisas que cansam lá dentro dela. Contudo a farmácia é um local maravilhoso: repete sempre.

 

Também lhe acontece que as linhas entrelaçadas da renda lhe levam à memória os 4 filhos e a viuvez, e, se assim acontece, pensa logo no almoço que só pode em certos dias, pois a reforma é pouco mais de 200€. Este exercício da falta do almoço recorda-lhe uma das filhas, a única, que, de quando em vez, lhe chega uma ajudinha pouca, e o doutor da farmácia, esse, que a deixa estar ali é uma pessoa maravilhosa e ela tem muita sorte.

 

Fazer renda numa farmácia pode ser o promontório possível de uma vida que bem sente a indiferença de quem tudo tem e canta o hino da vitória ao dinheiro que tudo suplantará.

 

Nos tempos que correm a solidão é prevalente nesta sociedade dilacerada, na qual se medem aos palmos e às rendas, o bem-estar inferior de cada um. Não há caminho que concretize o maior desejo do ser humano que é o de ser amado e a vitória afinal é a do descartar dos seres.

 

Também em busca de suposto sentido a sociedade moderna exalta os génios e os de alta performance para a economia e para o superior pensar. Mas a maioria da humanidade não é genial, senão apenas normal e aos normais ainda se retira o pouco, mesmo que ser normal seja a superior capacidade de suportar a dor com um fio de esperança de que a sua vida tenha sentido. O sentido do porque viver. Porque se ganha fidelidade a meio metro quadrado de uma farmácia, chegando a acreditar-se que afinal ali já se vivia antes de nascer.

 

E quem toma como sua esta apelidada de tranquila morada? Quem tem essa coragem onde porta alguma se insinua? Quem de tudo distante, pode manter seu refúgio?

 

A Paulo Moura que tão empenhadamente descreve o exílio das flores regadas a destroços desta sociedade de solidões, me junto, e assim me aceite, para entender com ele o quanto lá ao fundo por entre as rendas, mágoa alguma serena.

 

Teresa Bracinha Vieira