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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O DEUS SOLIDÁRIO COM AS VÍTIMAS

  

Comunidades cristãs vivas estão assentes em três núcleos ou pilares, que se interpenetram e exigem mutuamente.


Evidentemente, tudo se baseia na fé em Jesus Cristo e no seu Evangelho — Deus é bom, Pai e Mãe — como determinantes na vida e na morte e a celebração fraterna e bela dessa fé.


O outro núcleo é o da prática da justiça e do amor, o do combate lúcido e eficaz pela dignidade livre de todos os homens e mulheres, a começar pelos mais pobres, pelos humilhados e excluídos, no seguimento de Jesus, do que Ele fez e como fez. Não há religião verdadeira sem justiça e solidariedade. Mas isto implica que a justiça e o respeito pelos direitos humanos têm de começar pelo interior da própria Igreja. Na Igreja, Jesus queria mais do que uma democracia, pois o que Ele propunha era uma filadélfia, isto é, comunidades de amigos e irmãos (lê-se no Evangelho de S. João: “Já não vos chamo servos, mas amigos”).


O terceiro núcleo, que pode ser o primeiro, é o da pastoral da pergunta, da interrogação, e tem a ver com dar razões da dúvida e razões da fé e da esperança. Lá está a Primeira Carta de São Pedro, capítulo 3, versículo 15: “No íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça.” Isto significa que a fé não pode encerrar-se nas muralhas de um dogmatismo fixo e morto, tem de abrir-se ao diálogo e à razão crítica.


Esta abertura e este diálogo são tanto mais urgentes quanto os fundamentalismos (muçulmano, católico, protestante, das seitas) se tornam um desafio e perigo maiores. Não se pode esquecer que na religião, como se constata ao longo da História, há do melhor e do pior e, por vezes, em nome de Deus, o ridículo andou à solta e anunciaram-se e praticaram-se autênticas barbaridades, que tornaram a vida das pessoas menorizada, desgraçada, infeliz. Houve um número incontável de pessoas para quem teria sido preferível não terem encontrado a religião na sua vida.


A fé verdadeira não tem medo da razão autónoma, pois sabe que a razão, levada até aos limites das suas possibilidades, se acende na noite e também sabe que só um homem e mulher livres podem dizer sim ao Mistério. Para tentar balbuciar este Mistério, é necessário entrar em diálogo com todas as ciências, com todas as filosofias, com todas as religiões. Nestes tempos de penúria e de noite, como disseram Hölderlin e Heidegger, nestes tempos de niilismo, é tarefa decisiva da Igreja não deixar obturar a interrogação originária que nos faz homens e mulheres livres. É necessário manter acesa a pergunta radical e inconstruível, que é o sinal de que o Homem transcende o dado e de que não pode ser encerrado num positivismo crasso e obtuso.


E permita-se-me concretizar.


Uma das situações em que o ser humano é confrontado com o limite é o caso do perdão do algoz por parte das vítimas mortas, como se torna palpável na história contada por Simon Wiesenthal numa obra sobre Auschwitz. Como contou o teólogo Jürgen Moltmann, o judeu Wiesenthal era prisioneiro num campo de concentração e foi chamado ao leito de morte de um chefe nazi, que lhe queria confessar a ele, o judeu, que tinha participado nos fuzilamentos em massa de judeus na Ucrânia. Queria pedir-lhe perdão, para poder morrer em paz. Simon Wiesenthal disse-lhe que podia ouvir a confissão do assassino, mas que não podia perdoar-lhe, pois "nenhum vivo pode perdoar em nome dos mortos aos seus assassinos". Não pode fazê-lo, porque não tem o direito nem o poder para isso. E Wiesenthal ficou tão abalado com esta impossibilidade de perdoar que escreveu a muitos filósofos e teólogos europeus a contar-lhes a sua história, que publicou juntamente com as respostas num livro com o título: Die Sonnenblume (O girassol).


A razão, se não quiser sucumbir à parcialidade, isto é, se quiser ser verdadeiramente universal, não pode não ser "razão anamnética", isto é, tem de deixar-se iluminar pela memória das vítimas. E é imprescindível a memória para que as tragédias acontecidas não voltem a acontecer... Por outro lado, quem fará justiça às vítimas, também para que os algozes possam reconciliar-se e encontrar a paz?


O religioso autêntico, o místico, é aquele que caminha com Deus e para Deus, mas sem abandonar a noite. Ele não se distingue do crente e do descrente, que simultaneamente somos com dor e sofrimento, por já ter sido subtraído à noite na qual todos os mortais vivemos submersos.


"Distingue-se por ter avançado na noite o suficiente para que a noite seja para ele 'amável como a alvorada', outra forma de luz", como escreveu o teólogo Juan Martín Velasco. Para muitos, em nenhum lugar da História esta experiência mística em que culmina a experiência de Deus foi tão radical como na cruz de Cristo, onde, segundo a fé cristã, "Deus se revela de forma definitiva e por isso insuperavelmente obscura". Aí, precisamente na dor insuportável da sua ausência, nessa noite de trevas, Deus está infinitamente presente, escutando aquela oração simultaneamente desesperada e confiante, que atravessa os tempos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste? Pai, perdoa-lhes, por que não sabem o que fazem".


Os cristãos ousam acreditar que Deus ressuscitou de entre os mortos esse Crucificado, que o foi por blasfémia e sublevação do povo oprimido político-religiosamente. NEle, Deus revelou-se solidário para sempre com todas as vítimas.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 6 de abril de 2024

RELIGIÃO E SACRIFÍCIO

  


Ele foi Auschwitz. Ele foi o Goulag. Ele foi e é a Ucrânia... Ele foi/é o abuso ignominioso de crianças pelo clero... A tantos homens e mulheres a quem foi prometida a liberdade, e eles desafiaram o medo! Depois, precipitaram-nos no inferno. Deportaram-nos, fuzilaram-nos, massacraram-nos. Eles gritaram, clamaram, já não havia lágrimas... O Calvário do mundo...

Onde está o Homem? Quanto vale um homem, uma mulher, uma criança? Perante tanta iniquidade e horror, assalta-nos a vergonha.

As palavras dignidade, indignidade, direito, justiça, injustiça, vergonha, bondade, civilização, honra, ternura, compaixão... ainda fazem parte das línguas dos humanos ou foram varridas dos dicionários?

“Senhora, tem piedade... Senhor, tem piedade de nós! Senhor, tem piedade do povo... Senhor, tem piedade de mim!”

Mas, aparentemente, também Deus se mantém mudo.

Será que Deus não tem vergonha? A própria Bíblia a um dado momento, perante o crescendo da maldade humana, diz que Deus se arrependeu de ter criado o Homem. Arrepender-se também quer dizer ter vergonha e pena.

Perante o sofrimento dos inocentes, Ivan Karamázov apressa-se a devolver o seu bilhete de entrada na harmonia futura. Em A Peste, Albert Camus coloca o médico Rieux a dizer ao jesuíta Paneloux: "Não, padre. Eu estou disposto a recusar até à morte amar uma criação onde as crianças são torturadas".

Face à crueldade hedionda e à mesquinhez bárbara e reles dos humanos e à massa incrível da história do sofrimento, sobretudo dos inocentes, para muitos está decidido: Não há Deus! O padre Eloi Leclerc, franciscano, que, com apenas 20 anos, viveu a terrível experiência dos campos de concentração nazis, a descida aos infernos, disse: “Quem não passou por essa experiência não pode sequer imaginar o que isso é. É o momento do silêncio absoluto de Deus, da ausência. Podia elevar os olhos ao Céu, mas o Céu não respondia. Os gritos não chegavam lá. Então compreendi que se pode perfeitamente ser ateu. Perante tanta desgraça, solidão e sofrimento, pode-se ainda acreditar no Deus do Amor?”

Mas, aqui, recomeçam as perguntas: Donde vem a nossa indignação? Qual é a fonte da nossa revolta, da nossa rebelião? E porque é que não nos resignamos?

Afinal, criminoso, horrendo, infame, brutal, insuportável, arrepiante, intolerável..., ainda são valorações morais. Indignar-se com Deus, rebelar-se, protestar contra Ele, ainda é por exigência moral. Estamos atenazados: somos seres morais, exigindo o Bem infinito, e comportamo-nos ignominiosamente.

Como escreveu o teólogo Johann Baptist Metz, "a pergunta a Deus é a piedade da teologia", e, assim, também sabemos que um Deus indiferente não seria Deus, mas um monstro. Na cruz de Cristo, Deus revelou-se como aquele que sofre connosco e por nós. Um Deus indiferente à dor só poderia conduzir os humanos à indiferença.

Mas que pensar do sacrifício na sua relação com Deus?

Perguntam-me por vezes o que é que eu penso sobre o gesto daquela gente que, em Fátima, se arrasta de joelhos...

A resposta é simples: evidentemente, tenho compreensão sincera e compassiva (no sentido etimológico da palavra compaixão) para com aqueles e aquelas que, no abismo da sua dor ou tragédia, se convenceram de que, arrastando-se diante da divindade, a comoveriam e forçariam a ajudá-los...

Mas também é evidente para qualquer ser pensante que um Deus que, para ser favorável ao ser humano, precisasse de toda aquela humilhação e tortura era um Deus sádico, que, por isso mesmo, não poderia merecer consideração nem respeito. Perante um Deus sádico, só há uma atitude humanamente digna: ser ateu.

No entanto, foi pregado tonitruantemente ao longo de demasiado tempo que Deus precisou do sangue do próprio Filho para aplacar a sua ira...

Pergunta-se: como é que foi possível pregar e acreditar num Deus vingativo e sádico, um Deus pior que qualquer pai humano sadio, decente?...

É evidente que Jesus não morreu na cruz para aplacar a ira de Deus. Jesus foi vítima daqueles que não aceitaram a sua mensagem, o seu Evangelho, notícia boa e felicitante, que é: Deus é bom. Há quem não queira o Deus bom.

A cruz de Cristo é a expressão máxima do amor incondicional de Deus para com todos os homens e mulheres. Jesus, o excluído, é aquele que não exclui ninguém. Pelo contrário, inclui a todos no amor sem condições.

É isso: o sacrifício pelo sacrifício é detestável. Mas, por outro lado, nada vale realmente sem sacrifício. Por causa do império de uma banalidade mole hoje triunfante, é recusado a muitos o sabor daquela alegria que resulta da superação de obstáculos. De facto, nada de grande, belo e valioso e digno se faz e constrói no mundo sem sacrifício. Os valores merecem que nos batamos por eles, e é esse sacrifício enquanto luta por aquilo que vale que nos engrandece como seres humanos.

Quem diz que ama e não está disposto a sacrificar-se por aquele que ama anda enganado e mente a si próprio. Quem ama verdadeiramente está disposto a sacrificar-se por aquele, por aquela, por aqueles que realmente ama. É esse amor que salva o mundo.  

Àqueles que o criticavam por participar em banquetes oferecidos por pecadores públicos Jesus respondeu: "Ide aprender o que significa: “O que eu quero é misericórdia e não sacrifício'". E também disse: "Quem quiser seguir-me tome a sua cruz todos os dias". Referia-se àquela cruz que dá testemunho da verdade e que acompanha o combate pela liberdade, pela dignidade, pela justiça, pelo amor. Pela solidariedade com a Ucrânia...

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 de março de 2022