Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Estátua de Zeus em bronze – Museu Arqueológico de Atenas
23. A QUEM
Zeus, Theos, Deus, Alá, ou só Quem É,
nenhum nome te importa ou mudará...
És mistério só: quem te alcançará?
Talvez só quem no teu Quem tenha fé...
E que me importa a mim como te chamas,
se só me muda e move o eu chamar-te,
e sempre só me morde procurar-te:
onde haverá amor quando não amas?
Onde, chegado ao fim do alfabeto,
acharei letra ou verbo com afecto
que me recolha além do fim que espero...
Foi só de amor mordido a minha vida,
pelo mesmo mais achada que perdida...
Quem és, amor fiel, feroz e fero?
P.S. Começando pela letra Z, é este o último soneto de amor mordido. Foram 23, quiçá por pudor antigo me querer resguardar no alfabeto que, menino e moço, aprendi...
P.S. A velocidade à qual, nas nossas sociedades, o número de mortos por ano vai superando o de recém nascidos, os casamentos se desfazem ou nem sequer se fazem, o sexo é propagandeado apenas e exclusivamente como ocasião de prazer (e concomitante fonte de receita para quem vende estimulantes), e até o aborto (não penso aqui nos casos em que uma gravidez levante questões sérias de razão clínica ou sanitária, ou psíquica, ou de consideração de violência coerciva e violação de direitos elementares, mas falo do que é decidido sem ponderação da responsabilidade pelos actos, e só por critérios de conveniência) já custa aos contribuintes, anualmente, somas que também são retiradas a pobres e desvalidos - tudo isto nos obriga a um caminho espiritual de regresso à compreensão do amor e da responsabilidade. Ser necessariamente em relação, nenhuma pessoa humana pode agir inconsequentemente, como se aquilo que faz a si só diga respeito. Além de que somos também uma construção da memória, e a nossa densidade humana se cimenta pela lembrança, cuja expressão moral é o compromisso assumido. Há por aí muitos dramas atribuíveis à permissividade com que fomos consentindo o "amor líquido", como lhe chama Zygmunt Bauman... O matrimónio e a família são noções e instituições variáveis na história e na geografia, e os vários tipos definidos conheceram evoluções e crises, conformes às evoluções das mentalidades e das sociedades, às culturas circunstantes. Também surgiram desvios na ordem moral, muitas vezes pela confrontação entre sentimentos, deveres e interesses, como se vê nas cenas de escárnio do casamento "burguês" (de aristocratas decadentes com novas-ricas) da série Marriage à la Mode, do pintor inglês William Hogarth. Mas os próprios acidentes de percurso foram servindo um caminho de libertação e recusa de considerações outras que não fossem o amor e o livre compromisso entre os esposos. Ora parece que é precisamente isto que, nos tempos hodiernos, se vai desfazendo. Penso, todavia, que não se trata de uma questão essencialmente moral, mas, mais profunda e dolorosamente, de uma desorientação existencial, à qual, aliás, não será estranha a solidão crescente - e concomitante dessolidarização - das pessoas pela materialização dos prazeres oferecidos (onde está a alegria íntima? o convívio?) e pela virtualização da comunicação entre elas. Mas não pretendo analgar aqui essas questões. Este soneto é tosco, é de amor mordido pelo alheamento, que é a forma mais desumana da alienação.
P.S. - Quatro anos levaram Clara Wieck e Robert Schumann para conseguirem licença de casamento. Perante a ciumenta e feroz oposição do pai dela, tiveram de recorrer ao tribunal, que decidiu em favor deles. Casaram em 1840, numa igrejinha da aldeia de Shönefeld, perto de Leipzig. Durante esses anos de separação forçada, em que o pai Wieck ia obrigando Clara a viajar pela Europa, dando concertos ao piano, que tão excelentemente tocava - concertos em cujos programas ia incluindo composições do seu amado - Schumann viveu alternadamente períodos de entusiasmo e esperança, como de depressão e quase desespero, compondo muito, sobretudo música para piano. As Kreislerianatestemunham esses altos e baixos, esse galope de sentimentos de vários tons, tempos e ritmos... Escreve ele, em carta a Clara, de Maio de 1838:
Reparei em que a minha imaginação nunca está tão viva como quando ansiosamente virada para ti. Foi assim ainda nestes últimos dias, e, na expectetiva de carta tua, compus o suficiente para encher volumes. Música extraordinária, ora louca, ora grave e sonhadora. Arregalarás os olhos quando a decifrares. Vê tu bem, tenho por vezes a impressão de que acabarei por estoirar de música, de tal modo as ideias se empurram e fervem em mim quando sonho com o nosso amor. ... Tocas às vezes as minhas Kreisleriana? Em certas páginas, está lá um amor mesmo selvagem.
A atestar essa fúria fiel e forte está o próprio título dessas composições, inspirado na personagem de Kreisler, o mestre de música, de espírito e gestos muito agitados, dos contos de Hoffmann. Afinal sempre igual a si mesmo.
P.S. - A paixão é uma sujeição ou submissão, seja ao sofrimento imposto e assumido, seja a uma fixação ou obsessão da alma ou dos sentidos. Etimologicamente, a palavra vem da latina passio, que significa padecimento e passividade. Por este seu cariz de entrega ou consentimento, a paixão sempre nos parece fatal, e amiúde a confundimos com algo que não quereríamos mas finalmente - por fraqueza, exaustão ou desejo - aceitamos e sofremos. E tanto chamamos Paixão à de Cristo, esse caminho da cruz ou via sacra, como à loucura de um homem ou mulher que tudo esquece - convenções, fortuna, família, religião, pátria, o que for a sua circunstância - para totalmente se render àquela ou aquele que ardentemente deseja... A esse objecto, quando pessoa, chamamos fatal. Porque não se luta contra o fado. Na alma sofremos todos de entre miopia e presbitia. O olhar do coração não mede distâncias, quase sempre vê melhor, de longe, o que está perto, e, de perto, melhor o que está longe... As razões do coração - de que Pascal falava - são lúcidas porque afectuosas, afectuosas porque lúcidas. Somos vocacionados para pensarsentir, e ninguém ama ou odeia só com a cabeça ou só com o coração. As paixões vulgares são uma derrota do querer bem pelo desejo, como quem se afoga por não saber nadar. A sedução imediata do prazer dá-se quando o nosso olhar não chegou ao outro porque se fixou na curteza da nossa satisfação. Olhar míope. E presbíopes somos quando não vemos, para além da névoa próxima ou da desfocagem do nosso olhar, a beleza íntima de outro ser humano. Só amamos - aprendemos a amar - quando nos encontramos com a interrogação - que é súplica essencial - do outro que, como nós, espera ser amado. Quando compreendemos que o amor é a fidelidade da resposta que damos. E assim todo o amor verdadeiro é paixão secreta e forte. Ao longo da vida, fui deparando com aventuras e dramas passionais, desde os que lia nos romances (e, quando jovem, li muita literatura do século XIX, repleta de adultérios e extravagâncias sentimentais) ou encontrava na história real de heróis e reis, aos que me surpreendiam na roda de gente conhecida. Confesso que lhes ganhei medo, muito mais do que ao inferno com que nos ameaçavam vários sermões e que nunca me assustou. Cedo aprendi a confiar na misericórdia de Deus, e a pensar e sentir que o coração da misericórdia bate quando se reconhece o sofrimento. É-me difícil explica-lo, mas a verdadeira paixão amorosa não é, nem pode ser, exclusiva, pois é uma cegueira que se ilumina por dentro, ao encontro dessa graça que está na dor universal que se partilha.
Greogory Peck e Susan Hayward (em David and Bathsheba)
17. DE DAVID A BETSABÉ
Riste, sorri-te, seduzimo-nos,
juntos traímos Urias e Deus
pecaste, pequei, foram meus e teus
os caminhos ímpios que seguimos...
Rasguei as vestes, de cinzas cobri
a cabeça, a saudade da tua chama;
no chão frio esqueci a nossa cama,
a Deus pedi perdão por mim, por ti...
Mas nem o miserere que cantei
nos sete dias em que só chorei
desviaram o Juiz do seu castigo:
não te roubou a mim, levou o fruto
do pecado por que eu pusera luto;
e assim já livre me deixou contigo...
18. DE BETSABÉ A DAVID
Salomão foi resposta ao teu tormento
é filho nosso e da misericórdia...
De Deus nunca sabemos a concórdia:
é maior do que o nosso entendimento...
Pois Ele não tem prazer no sacrifício
nem de holocausto algum agrado tira
só o nosso coração lhe acalma a ira
ais por dor sentida que por suplício...
Para pedir perdão não ofereceste
anhos, perfumes, templos; só lhe deste
teu coração sofrendo como amigo...
Gritaste miserere!, bem sabendo
que era silêncio o grito que em crescendo
a Deus levou a dor que era contigo...
INTERVALO V
O segundo livro de Samuel, nos capítulos 11 e 12, conta-nos a história do pecado e da redenção de David e Betsabé. O adultério do rei com a mulher do seu general Urias, o Hitita, vem envolto em manha e crime: para gozar de Betsabé em seu leito, David envia Urias para a guerra. Quando este regressa, a mulher já está grávida do rei que, para iludir o marido enganado, por duas noites seguidas o manda deitar- com ela , entretanto já posta de volta em casa. O Hitita recusa-se a cumprir o acto, pelo que David decide enviá-lo de volta à guerra, mas de modo a que não escape à morte. Assim acontece. Segue-se o aviso severo e a ameaça de castigo divino, que o profeta Natã profere contra o rei. Este poderá ser perdoado - se fizer penitência - mas o filho que lhe nascer da amante morrerá certamente. David penitencia-se, na esperança ainda de salvar o filho. Mas, ao sétimo dia de penitência ritual, o menino morre. Iniciar-se-á então uma vida nova para o rei David que, de Betsabé, já sua mulher, terá o futuro rei Salomão. Sempre achei esta narrativa, no plano factual, mais mundana do que religiosa, mais leviana, mesmo no plano religioso, do que mística ou simplesmente edificante. Até ter atentado melhor no salmo 51 (50), atribuído, precisamente, a David, quando sofreu o arrependimento destes pecados: Miserere mei, tem dó de mim, ó Deus, em tua bondade! E que a tua grande ternura apague o meu pecado... Lava-me, inteirinho, do meu mal e purifica-me da minha culpa... ...Cria, ó Deus, em mim, um coração puro... ...Dá-me a alegria da tua salvação... ...Porque não tens prazer algum no sacrifício, nem queres holocaustos. O sacrifício a Deus é uma alma magoada; não desprezarás, ó Deus, um coração ferido, destroçado... O arrependimento é a responsabilidade que nos leva a uma conversão interior. O perdão de Deus não se compra.
O soneto A Jesus - só mais tarde me dei conta - é, afinal, o par anterior do soneto que me digo na Oração de São Bruno moribundo, como se agora me deparasse com dois biombos japoneses que, um no outro, procuram sentido ou sequência. Pela ordem alfabética que lhes impus, começando o primeiro deles por N será o 13º, e o segundo o 15º (começa por P). Entre eles fica o começado por O, o14º, De Fernando Pessoa a Ofélia. Curiosamente - também só agora reparo - em todos eles reina, inspirador, o mistério inefável do amor. Mistério, sim, digo bem. Nunca nenhum de nós saberá, enquanto por cá andar, o que é essencialmente o amor. Talvez nem seja preciso sabê-lo : a interrogação diz tudo. De Tomás de Aquino a Florbela Espanca, de um modo ou de outro, enquanto vivermos, o amor será a íntima procura do além de nós... A Jesus terão rezado muitos homens e mulheres, e quantas mães choraram, quantas noivas ficaram por casar, para que fosses nosso, ó mar! O amor é sempre o sonho da plenitude possível e impossível, não é possível medi-lo . Volto a referir-me a Pessoa (já não ao Mar Salgado da Mensagem, mas a uma ode de Álvaro de Campos, onde, não sei porquê, sempre associei o amor à noite que se chama) :
Vem, e embala-nos,
vem e afaga-nos,
beija-nos silenciosamente na fronte,
tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
senão por uma diferença na alma
e um vago soluço partindo melodiosamente
do antiquíssimo de nós
onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
Vem soleníssima,
soleníssima e cheia
de uma oculta vontade de soluçar,
talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
e todos os gestos não saem do nosso corpo
e só alcançamos onde o nosso braço chega,
e só vemos até onde chega o nosso olhar.
Fernando talvez nunca encontrasse Ofélia à sua medida, nem para além do alcance do seu braço, nem como Ricardo Reis, em Saramago, encontra impossivelmente Lídia ou se debruça sobre Marcenda. Mas na solidão sentiu a vocação do amor, esse inexplicável que nasce do antiquíssimo de nós... São Bruno de Colónia, fundador da Ordem da Cartuxa, nasceu por volta de 1030 e morreu a 6 de Outubro de 1101. Apesar de, pela nobreza do nascimento, pelo prestígio intelectual e pelo respeito que lhe granjeava a sabedoria de uma vida exemplar, ter podido subir na hierarquia clerical e social, foi mais tentado pela contemptatio mundi, e escolheu a via do silêncio e do isolamento monástico. Foi na Chartreuse (Grenoble, sul de França) que, com seis companheiros fundou a primeira cartuxa, designação derivada daquele topónimo. Vidas estranhas ao mundo, os amores cartuxos procuram, no silêncio de Deus, o encontro de todos os humanos com o seu Senhor. Traduzo livremente os passos iniciais de uma oração atribuída a São Bruno:
A Ti, que és o meu Senhor,
cuja vontade se prefere à minha,
não me é possível encontrar
palavras a contento
para te dizer minha oração...
Escuta o meu grito de silêncio
suplicante como clamor imenso,
Tu, de quem Tu só me constituis servo.
Rogo-te, peço, insisto:
Que venha a mim o teu favor!
Nenhum bem da terra almejo,
só te suplico o mais que pedir se pode,
só Te peço a Ti...
É sempre difícil falar do silêncio. Doloroso falar com o silêncio de Deus. Mas talvez a noite seja a habitação do amor inexplicável. E ponho na boca calada de São Bruno, estes versos ainda de Álvaro de Campos:
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa dasAngústias dos Tímidos
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
mão fresca sobre a testa em febre dos humildes
sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Todos esses versos, incluindo aqueles meus três sonetos, dizem afinal que a nossa humana vocação é o socorro calado do amor. No íntimo do silêncio se abrirão as flores.
PS. Este é o nº 14 - visto que o O é a 14ª letra do nosso alfabeto. O nº 13 já "saiu", como estarão lembrados os leitores, há uns tempos atrás: era A JESUS.