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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SONETOS DE AMOR MORDIDO

Zeus.JPG
Estátua de Zeus em bronze – Museu Arqueológico de Atenas

 

23. A QUEM

 

Zeus, Theos, Deus, Alá, ou só Quem É,

nenhum nome te importa ou mudará...

És mistério só: quem te alcançará?

Talvez só quem no teu Quem tenha fé...

 

E que me importa a mim como te chamas,

se só me muda e move o eu chamar-te,

e sempre só me morde procurar-te:

onde haverá amor quando não amas?

 

Onde, chegado ao fim do alfabeto,

acharei letra ou verbo com afecto

que me recolha além do fim que espero...

 

Foi só de amor mordido a minha vida,

pelo mesmo mais achada que perdida...

Quem és, amor fiel, feroz e fero?

 

P.S. Começando pela letra Z, é este o último soneto de amor mordido. Foram 23, quiçá por pudor antigo me querer resguardar no alfabeto que, menino e moço, aprendi...        

 

Camilo Martins de Oliveira

SONETOS DE AMOR MORDIDO

Xerazade por Ferdinand Keller.JPG
Xerazade por Ferdinand Keller

 

22. POUCO CLÁSSICO, COMO XERAZADE

 

Xerazade, contadora sem beira,

virou astuta e boa contadeira,

que a arte de contar é feiticeira,

se nos vier cantar doutra maneira...

 

Que há cantos de sereia que convencem

desejos - que outros sonhos nunca vencem -

de que há noites maiores nessa paisagem

em que Eros é, na lua, uma miragem...

 

A mil noites juntou outra sessão,

fatal, feliz final de uma lição

de que dizer sim é, primeiro, não

 

querer nem deixar que se agarre a mão

sem que encantado o diga o coração...

E, assim preso, solto ficou o sultão!

 

Camilo Martins de Oliveira

SONETOS DE AMOR MORDIDO

Marriage_A-la-Mode_4,_The_Toilette_-_William_Hogar

«Mariage à la Mode» de Reynolds (cena 4 de 6).

 

21. ADEUS POSMODERNISTA

 

Vi teu gesto distante e entendi-te

tão fora de tudo, longe de mim,

que seria louca loucura assim

ficar, sem fugir também: e fugi-te...

 

Não foi porque perder-te me amofine

nem por receio, ou raiva, ou frustração:

não sei, nem saberá meu coração,

por que razão o amor já não me anime...

 

Ou será que perdemos a memória

das coisas simples que não têm história

e por serem fiéis constroem vidas?

 

Eu digo-te adeus, hoje, balbuciando,

como ausente que não sabe até quando

seremos nós só almas esquecidas...

                   
P.S. A velocidade à qual, nas nossas sociedades, o número de mortos por ano vai superando o de recém nascidos, os casamentos se desfazem ou nem sequer se fazem, o sexo é propagandeado apenas e exclusivamente como ocasião de prazer (e concomitante fonte de receita para quem vende estimulantes), e até o aborto (não penso aqui nos casos em que uma gravidez levante questões sérias de razão clínica ou sanitária, ou psíquica, ou de consideração de violência coerciva e violação de direitos elementares, mas falo do que é decidido sem ponderação da responsabilidade pelos actos, e só por critérios de conveniência) já custa aos contribuintes, anualmente, somas que também são retiradas a pobres e desvalidos - tudo isto nos obriga a um caminho espiritual de regresso à compreensão do amor e da responsabilidade. Ser necessariamente em relação, nenhuma pessoa humana pode agir inconsequentemente, como se aquilo que faz a si só diga respeito. Além de que somos também uma construção da memória, e a nossa densidade humana se cimenta pela lembrança, cuja expressão moral é o compromisso assumido. Há por aí muitos dramas atribuíveis à permissividade com que fomos consentindo o "amor líquido", como lhe chama Zygmunt Bauman... O matrimónio e a família são noções e instituições variáveis na história e na geografia, e os vários tipos definidos conheceram evoluções e crises, conformes às evoluções das mentalidades e das sociedades, às culturas circunstantes. Também surgiram desvios na ordem moral, muitas vezes pela confrontação entre sentimentos, deveres e interesses, como se vê nas cenas de escárnio  do casamento "burguês" (de aristocratas decadentes com novas-ricas) da série Marriage à la Mode, do pintor inglês William Hogarth. Mas os próprios acidentes de percurso foram servindo um caminho de libertação e recusa de considerações outras que não fossem o amor e o livre compromisso entre os esposos. Ora parece que é precisamente isto que, nos tempos hodiernos, se vai desfazendo. Penso, todavia, que não se trata de uma questão essencialmente moral, mas, mais profunda e dolorosamente, de uma desorientação existencial, à qual, aliás, não será estranha a solidão crescente - e concomitante dessolidarização - das pessoas pela materialização dos prazeres oferecidos (onde está a alegria íntima? o convívio?) e pela virtualização da comunicação entre elas. Mas não pretendo analgar aqui essas questões. Este soneto é tosco, é de amor mordido pelo alheamento, que é a forma mais desumana da alienação.

Camilo Martins de Oliveira

SONETOS DE AMOR MORDIDO

Clara e Robert Schumann.JPG
Clara e Robert Schumann


20. KREISERLIANA

 

Ufano, tão feliz, enchi o peito

do amor com que os teus olhos me quiseram

preso assim; e cativo me fizeram

de ti, para sempre, quase perfeito...

 

E quase sempre fui quase sozinho

e assim tu quase só cheia de mim...

E foi ouvindo não ao nosso sim

que juntos nos pusemos a caminho.

 

E neste quase ser, digo ao piano

como toureiro em lide, em mano a mano,

que, sem talvez, na vida há sim e não...

 

E tudo dança e sofre, tudo passa:

é sempre fugidia uma ameaça

e fortaleza a nossa imperfeição... 

 

P.S. - Quatro anos levaram Clara Wieck e Robert Schumann para conseguirem licença de casamento. Perante a ciumenta e feroz oposição do pai dela, tiveram de recorrer ao tribunal, que decidiu em favor deles. Casaram em 1840, numa igrejinha da aldeia de Shönefeld, perto de Leipzig. Durante esses anos de separação forçada, em que o pai Wieck ia obrigando Clara a viajar pela Europa, dando concertos ao piano, que tão excelentemente tocava - concertos em cujos programas ia incluindo composições do seu amado - Schumann viveu alternadamente períodos de entusiasmo e esperança, como de depressão e quase desespero, compondo muito, sobretudo música para piano. As Kreislerianatestemunham esses altos e baixos, esse galope de sentimentos de vários tons, tempos e ritmos... Escreve ele, em carta a Clara, de Maio de 1838:

 Reparei em que a minha imaginação nunca está tão viva como quando ansiosamente virada para ti. Foi assim ainda nestes últimos dias, e, na expectetiva de carta tua, compus o suficiente para encher volumes. Música extraordinária, ora louca, ora grave e sonhadora. Arregalarás os olhos quando a decifrares. Vê tu bem, tenho por vezes a impressão de que acabarei por estoirar de música, de tal modo as ideias se empurram e fervem em mim quando sonho com o nosso amor. ... Tocas às vezes as minhas Kreisleriana? Em certas páginas, está lá um amor mesmo selvagem.

 A atestar essa fúria fiel e forte está o próprio título dessas composições, inspirado na personagem de Kreisler, o mestre de música, de espírito e gestos muito agitados, dos contos de Hoffmann. Afinal sempre igual a si mesmo. 

 

Camilo Martins de Oliveira

SONETOS DE AMOR MORDIDO

Femme au corsage bleu, de Rouault..JPG
Femme au corsage bleu, de Rouault

 

19. À MULHER FATAL

 

Tropecei em ti como na vida

uma vez só se cai desamparado,

sem nunca ser por falta de cuidado

e sempre só por sina desmedida...

 

 Transpus o passo não considerado

corri a dar-te a chave do meu peito

por cego amor, não sei, sei que por preito

à sedução do teu olhar magoado...

 

Não era piedade, era respeito,

era essa rendição de que é feito

o amor, mais que o desejo de agradar; 

 

era, na tua dor, a redenção

de mim com ela, com paixão,

meu sacrifício posto no altar...

 

P.S. -  A paixão é uma sujeição ou submissão, seja ao sofrimento imposto e assumido, seja a uma fixação ou obsessão da alma ou dos sentidos. Etimologicamente, a palavra vem da latina passio, que significa padecimento e passividade. Por este seu cariz de entrega ou consentimento, a paixão sempre nos parece fatal, e amiúde a confundimos com algo que não quereríamos mas finalmente - por fraqueza, exaustão ou desejo - aceitamos e sofremos. E tanto chamamos Paixão à de Cristo, esse caminho da cruz ou via sacra, como à loucura de um homem ou mulher que tudo esquece - convenções, fortuna, família, religião, pátria, o que for a sua circunstância - para totalmente se render àquela ou aquele que ardentemente deseja... A esse objecto, quando pessoa, chamamos fatal. Porque não se luta contra o fado. Na alma sofremos todos de entre miopia e presbitia. O olhar do coração não mede distâncias, quase sempre vê melhor, de longe, o que está perto, e, de perto, melhor o que está longe... As razões do coração - de que Pascal falava - são lúcidas porque afectuosas, afectuosas porque lúcidas. Somos vocacionados para pensarsentir, e ninguém ama ou odeia só com a cabeça ou só com o coração. As paixões vulgares são uma derrota do querer bem pelo desejo, como quem se afoga por não saber nadar. A sedução imediata do prazer dá-se quando o nosso olhar não chegou ao outro porque se fixou na curteza da nossa satisfação. Olhar míope. E presbíopes somos quando não vemos, para além da névoa próxima ou da desfocagem do nosso olhar, a beleza íntima de outro ser humano. Só amamos - aprendemos a amar - quando nos encontramos com a interrogação - que é súplica essencial - do outro que, como nós, espera ser amado. Quando compreendemos que o amor é a fidelidade da resposta que damos. E assim todo o amor verdadeiro é paixão secreta e forte.  Ao longo da vida, fui deparando com aventuras e dramas passionais, desde os que lia nos romances (e, quando jovem, li muita literatura do século XIX, repleta de adultérios e extravagâncias sentimentais) ou encontrava na história real de heróis e reis, aos que me surpreendiam na roda de gente conhecida. Confesso que lhes ganhei medo, muito mais do que ao inferno com que nos ameaçavam vários sermões e que nunca me assustou. Cedo aprendi a confiar na misericórdia de Deus, e a pensar e sentir que o coração da misericórdia bate quando se reconhece o sofrimento. É-me difícil explica-lo, mas a verdadeira paixão amorosa não é, nem pode ser, exclusiva, pois é uma cegueira que se ilumina por dentro, ao encontro dessa graça que está na dor universal que se partilha.

 

Camilo Martins de Oliveira

SONETOS DE AMOR MORDIDO

Greogory Peck e Susan Hayward.JPG

Greogory Peck e Susan Hayward (em David and Bathsheba)

 

17. DE DAVID A BETSABÉ

         

Riste, sorri-te, seduzimo-nos,

juntos traímos Urias e Deus

pecaste, pequei, foram meus e teus

os caminhos ímpios que seguimos... 

 

Rasguei as vestes, de cinzas cobri

a cabeça, a saudade da tua chama;

no chão frio esqueci a nossa cama, 

a Deus pedi perdão por mim, por ti...


Mas nem o miserere que cantei

nos sete dias em que só chorei

desviaram o Juiz do seu castigo:

 

não te roubou a mim, levou o fruto

do pecado por que eu pusera luto;

e assim já livre me deixou contigo...      

 

18. DE BETSABÉ A DAVID

 

Salomão foi resposta ao teu tormento

é filho nosso e da misericórdia...

De Deus nunca sabemos a concórdia:

é maior do que o nosso entendimento...

 

Pois Ele não tem prazer no sacrifício

nem de holocausto algum agrado tira

só o nosso coração lhe acalma a ira

ais por dor sentida que por suplício...

 

Para pedir perdão não ofereceste

anhos, perfumes, templos; só lhe deste

teu coração sofrendo como amigo...

 

Gritaste miserere!, bem sabendo

que era silêncio o grito que em crescendo

a Deus levou a dor que era contigo...

 

INTERVALO V

 

O segundo livro de Samuel, nos capítulos 11 e 12, conta-nos a história do pecado e da redenção de David e Betsabé. O adultério do rei com a mulher do seu general Urias, o Hitita, vem envolto em manha e crime: para gozar de Betsabé em seu leito, David envia Urias para a guerra. Quando este regressa, a mulher já está grávida do rei que, para iludir o marido enganado, por duas noites seguidas o manda deitar- com ela , entretanto já posta de volta em casa. O Hitita recusa-se a cumprir o acto, pelo que David decide enviá-lo de volta à guerra, mas de modo a que não escape à morte. Assim acontece. Segue-se o aviso severo e a ameaça de castigo divino, que o profeta Natã profere contra o rei. Este poderá ser perdoado - se fizer penitência - mas o filho que lhe nascer da amante morrerá certamente. David penitencia-se, na esperança ainda de salvar o filho. Mas, ao sétimo dia de penitência ritual, o menino morre. Iniciar-se-á então uma vida nova para o rei David que, de Betsabé, já sua mulher, terá o futuro rei Salomão. Sempre achei esta narrativa, no plano factual, mais mundana do que religiosa, mais leviana, mesmo no plano religioso, do que mística ou simplesmente edificante. Até ter atentado melhor no salmo 51 (50), atribuído, precisamente, a David, quando sofreu o arrependimento destes pecados:  Miserere mei, tem dó de mim, ó Deus, em tua bondade! E que a tua grande ternura apague o meu pecado... Lava-me, inteirinho, do meu mal e purifica-me da minha culpa... ...Cria, ó Deus, em mim, um coração puro...   ...Dá-me a alegria da tua salvação... ...Porque não tens prazer algum no sacrifício, nem queres holocaustos. O sacrifício a Deus é uma alma magoada; não desprezarás, ó Deus, um coração ferido, destroçado... O arrependimento é a responsabilidade que nos leva a uma conversão interior. O perdão de Deus não se compra.       

 

Camilo Martins de Oliveira

SONETOS DE AMOR MORDIDO

Capela Sistina.JPG
Capela Sistina

 

16. DE ADÃO A EVA E VICE-VERSA

 

Quis-te, quis-te bem e queixei-me-te

de bem querer a quem me não queria

e ainda hoje não sei se amor sabia

que era só bem o encontrei-me-te...

 

Nem nus algo soubemos do entre nós,

sempre fomos desalinho e união,

desejo de posse e de dizer não,

rio correndo sem chegar à foz...

 

Em homem e mulher Deus nos criou,

por mulher e homem nos separou:

seremos um em dois ou dois só num?

 

Terá amado quem um dia olvida,

ou será esquecimento a própria vida?

Comi do fruto, fiquei em jejum...

 

Camilo Martins de Oliveira

SONETOS DE AMOR MORDIDO

 

Fernando Pessoa por Júlio Pomar

INTERVALO - IV

O soneto A Jesus  -  só mais tarde me dei conta  -  é, afinal, o par anterior do soneto que me digo na Oração de São Bruno moribundo, como se agora me deparasse com dois biombos japoneses que, um no outro, procuram sentido ou sequência. Pela ordem alfabética que lhes impus, começando o primeiro deles por N será o 13º, e o segundo o 15º (começa por P). Entre eles fica o começado por O, o14º, De Fernando Pessoa a Ofélia. Curiosamente  -  também só agora reparo  -  em todos eles reina, inspirador, o mistério inefável do amor. Mistério, sim, digo bem. Nunca nenhum de nós saberá, enquanto por cá andar, o que é essencialmente o amor. Talvez nem seja preciso sabê-lo : a interrogação diz tudo. De Tomás de Aquino a Florbela Espanca, de um modo ou de outro, enquanto vivermos, o amor será a íntima procura do além de nós... A Jesus terão rezado muitos homens e mulheres, e quantas mães choraram, quantas noivas ficaram por casar, para que fosses nosso, ó mar! O amor é sempre o sonho da plenitude possível e impossível, não é possível medi-lo . Volto a referir-me a Pessoa (já não ao Mar Salgado da Mensagem, mas a uma ode de Álvaro de Campos, onde, não sei porquê, sempre associei o amor à noite que se chama) :

          Vem, e embala-nos,

          vem e afaga-nos,

          beija-nos silenciosamente na fronte,

          tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam

          senão por uma diferença na alma

          e um vago soluço partindo melodiosamente

          do antiquíssimo de nós

          onde têm raiz todas essas árvores de maravilha

          cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos

          porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

          Vem soleníssima,

          soleníssima e cheia

          de uma oculta vontade de soluçar,

          talvez porque a alma é grande e a vida pequena,

          e todos os gestos não saem do nosso corpo

          e só alcançamos onde o nosso braço chega,

          e só vemos até onde chega o nosso olhar.

Fernando talvez nunca encontrasse Ofélia à sua medida, nem para além do alcance do seu braço, nem como Ricardo Reis, em Saramago, encontra impossivelmente Lídia ou se debruça sobre Marcenda. Mas na solidão sentiu a vocação do amor, esse inexplicável que nasce do antiquíssimo de nós... São Bruno de Colónia, fundador da Ordem da Cartuxa, nasceu por volta de 1030 e morreu a 6 de Outubro de 1101. Apesar de, pela nobreza do nascimento, pelo prestígio intelectual e pelo respeito que lhe granjeava a sabedoria de uma vida exemplar, ter podido subir na hierarquia clerical e social, foi mais tentado pela contemptatio mundi, e escolheu a via do silêncio e do isolamento monástico. Foi na Chartreuse (Grenoble, sul de França) que, com seis companheiros fundou a primeira cartuxa, designação derivada daquele topónimo. Vidas estranhas ao mundo, os amores cartuxos procuram, no silêncio de Deus, o encontro de todos os humanos com o seu Senhor. Traduzo livremente os passos iniciais de uma oração atribuída a São Bruno:

          A Ti, que és o meu Senhor,

          cuja vontade se prefere à minha,

          não me é possível encontrar

          palavras a contento

          para te dizer minha oração...

          Escuta o meu grito de silêncio

          suplicante como clamor imenso,

          Tu, de quem Tu só me constituis servo.

          Rogo-te, peço, insisto:

          Que venha a mim o teu favor!

          Nenhum bem da terra almejo,

          só te suplico o mais que pedir se pode,

          só Te peço a Ti...

É sempre difícil falar do silêncio. Doloroso falar com o silêncio de Deus. Mas talvez a noite seja a habitação do amor inexplicável. E ponho na boca calada de São Bruno, estes versos ainda de Álvaro de Campos:

          Vem, dolorosa,

          Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos

          Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,

          mão fresca sobre a testa em febre dos humildes

          sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.

Todos esses versos, incluindo aqueles meus três sonetos, dizem afinal que a nossa humana vocação é o socorro calado do amor. No íntimo do silêncio se abrirão as flores.

         

 

Camilo Martins de Oliveira

 

SONETOS DE AMOR MORDIDO

S. Bruno, Cartuxa de Miraflores, Burgos

15. ORAÇÃO DE SÃO BRUNO MORIBUNDO

 

          Pudesse ora ficar meu coração

          à sombra do silêncio do teu rosto,

          como se regressasse, pelo sol posto,

          ao resguardo da tua habitação,

 

          e, ao terminar do dia que é a vida,

          repousasse na noite que alumia

          o caminho percorrido. Tornaria

          já real, enfim, a visão perdida...

 

          Calado então diria o nunca dito,

          sequer ao teu segredo, quando, aflito,

          de nada, nem de ti, me socorria...

 

          Foi só de noite todo o meu caminho,

          só esperança sentir o teu carinho,

          só busca o teu amor, que me sentia...

 

         

Camilo Martins de Oliveira

 

SONETOS DE AMOR MORDIDO

      Ofélia Queirós

14. DE FERNANDO PESSOA A OFÉLIA

 

         Ouve, meu bem: nesta noite adormeço

          mágoas muitas, as tuas e as minhas,

          e as que não ouves e sempre adivinhas,

          e as que sei tuas e não reconheço...

 

          E assim, é nosso amor frustrado feito

          de ditas e desditas, de perdões,

          de talvez sim, ou nunca, de ilusões, 

          de feridas perdidas cá no peito...

 

          Por muito sentir-te, já eu me sinto

          tão perdido em mim, que não sei se minto

          ao te escrever, Ofélia, que te quero...

 

          Apenas sei que sou poeta e estranho,

          que tudo em mim é pequeno e tamanho,

          mas implacável, fingidor e fero...


PS. Este é o nº 14 - visto que o O é a 14ª letra do nosso alfabeto. O nº 13 já "saiu", como estarão lembrados os leitores, há uns tempos atrás: era A JESUS.

 

Camilo Martins de Oliveira