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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
SOPHIA: MEMÓRIA – 2 DE JULHO DE 2004


1 - 
Começa a ser sina. De cada vez que me afasto, em peregrinações minhas longamente preparadas, toca o telemóvel com uma notícia terrível. Munique, agosto de 2002, Cumes, maio de 2003, Génova, julho de 2004. Mortes ou outras coisas que sabemos. Sabia que iam acontecer. Esperava-as. Mas não ali, onde parecem tão súbitas, tão sozinhas, tão desamparadas como se eu não fizesse falta nenhuma. "Por isso eu escrevi" - escreveu-me Sophia há mais de sete anos - "Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo." E esse poema continua: "Mal de te amar neste lugar de imperfeição / Onde tudo nos quebra e emudece / Onde tudo nos mente e nos separa." É isso que faz mais medo: a mentira, a separação. Já não vale a batota das palavras.


2 - 
Era o dia - aqui o recordei - em que passaram cem anos sobre a morte de Tchekov. A seguir a um almoço muito tardio numa fruste esplanada de madeira, subi e desci ruas quentes e íngremes até uma igrejinha românica (fundada no século VII, reconstruída no século XII) chamada Santa Maria di Castello. Lá, num claustro evanescente, está pintado um fresco representando a Anunciação. Data de 1451 e é obra de um tal Justo da Alemanha (sic) de quem nunca ouvira falar. Sob ogivas, um grande arco de volta inteira cobre o Pai e o Espírito Santo, no tecto de um espaçoso quarto. A Virgem, de pé, de manto azulíssimo e mãos cruzadas sobre o peito, está à direita, submissíssima. À esquerda, o arcanjo, dourado e muito mais volumoso, dá-lhe o Avé. Mas reparei que, ao fundo, do lado de Maria, existe um lava-louças. Da torneira salta um peixe. No fundo da bacia, meia de água, jaz outro peixe, morto. A simbologia crística do peixe é conhecida. Mas nunca a tinha visto figurada assim, em recapitulação tão elíptica e tão envolvente. 


Não havia mais ninguém. Mas, quando me vinha embora, apareceu um padre. Perguntei-lhe se não haveria reproduções. Disse-me que sim e pedi-lhe duas, uma para mim e outra para oferecer. Deu-mas e recusou qualquer pagamento. Da igreja desci até ao Vico dei Giustiniani. Virei à direita, depois à esquerda e cheguei ao Duomo, consagrado a São Lourenço, que, segundo a lenda, teria sido assado vivo naquele local ("Virem-me do outro lado, que eu deste já estou assado"). A fachada, construída entre os séculos XIII e XV, em mármore policromado, é magnífica. O interior, muito modificado, bastante mais pesado. Depois, desci para o bairro medieval e para o porto. Ao fim da tarde, o calor horrível começou a abrandar e perdi-me nas ruas estreitíssimas e de casas altíssimas, onde só havia sombra. Foi nelas que, pela primeira vez, me lembrei conscientemente de Sophia e daquele poema (do "Mar Novo") que se chama "Marinheiro sem Mar", e que é sempre um dos meus favoritos dela. "Todas as cidades são navios / Carregados de cães uivando à lua / Carregados de anões e mortos frios." E mais adiante (deve ser um dos poemas mais longos de Sophia, que, em toda a história da literatura portuguesa, ninguém excedeu no verso curto): "E sobe por escadas escondidas / E vira por ruas sem nome / Pela própria escuridão conduzido / Com pupilas transparentes e de vidro / Vai nos contínuos corredores / Onde os polvos da sombra o estrangulam / E as luzes como peixes voadores / O alucinam." Foi a pensar em Sophia que cheguei, já começava a entardecer, à Piazza San Matteo, a mais bela e perfeita praça de Génova, onde as casas de Branca Doria ("'lo credo' diss'io lui, 'che tu m'inganni; ché Branca Doria non mori unquanche/ e mangia e bee e dorme e veste panni'", disse Dante ao irmão Alberigo no Canto XXXIII do "Inferno", antes de amaldiçoar os genoveses, "uomini diversi") de Lamba Doria (vencedor da batalha de Curzola) e de Domenicaccio Doria abrem alas de rosa e branco para o verde pálido da Igreja de San Matteo e dos mosaicos da fachada dela. "Como é estranho não saber", disse Sophia no último verso dos nove "Poemas de um Livro Destruído", poemas que Sophia conservou inéditos por mais de vinte anos. Ali, sentado no chão, nos degraus da casa de Lamba Doria, em frente da igreja (já fechada) eu julgava saber alguma coisa. Suadíssimo, descamisadíssimo, sentia uma grande paz e não havia vivalma ao meu redor. Por isso, apanhei um susto quando o telefone tocou (esqueço-me sempre de o desligar). Uma espécie de mau presságio. Mas era um banal recado da Cinemateca, pormenores de programação. Estranhei não me irritar com a interrupção e, enquanto olhava, (olhava sempre) mantive uma longa conversa, com instruções para mudar o filme A para o dia Z e o filme Z para o dia B. Tudo muito calmo, muito quotidiano, como se estivesse à secretária da Barata Salgueiro. Depois de desligar, deixei-me ainda ficar muito tempo por ali, muito longe de maldizer os genoveses ou de pensar no Cócito. Nenhuma vontade de fazer mal a alguém por cortesia. Se houvesse na praça um restaurante, tinha jantado por ali, para ver como a noite lhe ficava. Não havia e por isso dei ordem às pernas para o que lhes queria: regressar ao hotel, tomar um bom banho, mudar de roupa e voltar a sair para jantar bem.


3 -
 Foi quando cheguei ao hotel, bastante esfalfado, já tinha na mão a chave do quarto, que o telefone voltou a tocar. Desta vez, nenhum sobressalto nem nenhuma surpresa. Era o meu genro Pedro. Demorei uns segundos a reparar no tom grave da voz. A Maria, filha da Sophia, tinha telefonado a pedir que me avisassem, que eu gostava de saber. 
Desisti dos meus planos e fiquei no hotel, numa grande casa de jantar quase deserta. Tentei falar com a Maria ou com os irmãos, mas não consegui. Também não consegui falar com a pessoa em quem mais pensava. Começaram, sim, a falar gentes dos jornais, a pedir comentários, "depoimentos" (o que eu odeio os jornalistas nessas alturas!). Inevitavelmente, pensei no poema de que toda a gente se lembrou quando ela foi morta. E ouvi-a distintamente, como no velho disco de 45 rotações que havia lá em casa, dizer: "Outros amarão as coisas que eu amei." Estúpida vaidade, ou o contrário disso, pensei que, naquela tarde em Génova, 2 de julho de 2004, eu teria sido um dos primeiros desses outros, pois que certamente Sophia amou, ou teria amado, o fresco do claustro de Santa Maria di Castello ou a Piazza San Matteo, se acaso os viu, se acaso os visse.


4 -
 Mas será verdade, como Sophia tão fundamente acreditou, que tudo continuará "como se eu não estivesse morta"? "Será o mesmo brilho, a mesma festa / Será o mesmo jardim à minha porta"? Vezes sem conta discuti isso com Sophia. Para ela, "sempre a poesia foi uma perseguição do real". Quando recordou a "maçã enorme e vermelha" "poisada em cima de uma mesa", "num quarto em frente do mar" (e era a coisa mais antiga de que ela se lembrava), não recordou "nada de fantástico" "nada de imaginário". "Era a própria presença do real que eu descobria." Por isso, cem vezes ou mais, na sua poesia, associada à morte, surge essa crença na continuidade do real, independentemente dela ou de qualquer humano. "Também morre o florir de mil pomares / E se quebram as ondas no oceano." Ou: "Um dia quebrarei todas as pontes / Que ligam o meu ser, vivo e total / À agitação do mundo do irreal / E calma subirei até às fontes." Cito ao acaso, de memória. Podia citar mil poemas em que ela diz o mesmo. Mas para mim (e a questão é filosófica e tão velha como os primeiros filósofos) esse radical realismo é-me estranho. Sophia ou Génova, para não sair do tema desta crónica, só são ou foram reais quando e enquanto me foram aparições. "Quando o meu corpo apodrecer e eu for morto" não estou nada certo que Sophia e Génova continuem como continuam hoje, porque eu estou vivo e eu me lembro delas. Um amigo observou-me um dia, a propósito de uma destas crónicas do PÚBLICO sobre Itália (era sobre Lecce), que eu não escrevia sobre Lecce escrevia sobre mim, como se, perdido eu, Lecce deixasse de poder ser vista como eu a vira. Tem toda a razão. Foi assim e é assim. Sem mim, não sei de eu. Isto não significa - muito ao contrário - que eu não acredite na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna, amém. Esta crónica, bem lida, é um dos múltiplos sinais. Mas só a fé que tenho em não desaparecer me faz acreditar que ninguém ou nada do que amei desaparecerá também. Se eu fosse ateu, poderia repetir, sem remorso ou vacilação, o "après moi le déluge". Não concebo qualquer real independente de mim. Como não concebo que o Kouros do Egeu seja para mais alguém, como foi para Sophia, "Sorriso sem costura / Inocência de caule / Retrato nu do liso." É verdade? É. Tão, tão verdade. Mas ninguém nunca mais inventará esses seis substantivos ligados por um único adjectivo. O mais longe que vou é ao que Sophia escreveu no mágico poema chamado "Veneza", do livro "Ilhas".


"Dentro deste quarto um outro quarto 
Como um Carpaccio nas ruas de Veneza 
Segunda imagem sussurro de surpresa 
E um pouco assim são as ruas de Veneza  
Em fundo glauco de laguna ou vidro  
E um pouco assim em nossa vida o duplo  
Espelho sem perdão do não vivido  
Caminha destinado a ser perdido


5 -
 Acima falei dos nove "Poemas de um Livro Destruído", que, escritos entre "Coral" e "No Tempo Dividido" (ou seja, entre 1950 e 1954, tinha Sophia trinta e poucos anos) só foram inseridos em 1985 na segunda edição do último desses livros. 
Sophia falou-me deles em 1969 ou em 1970 e disse-me que lhe faziam um medo enorme, porque lhe pareciam alheios, sendo dela como se não fossem dela. Pedi-lhe que me escrevesse aquele que começa com "Não procures verdade no que sabes" e, desde esse dia, guardo esse poema ao lado das imagens mais minhas, como o retrato dela em Agrigento que o Alberto lhe tirou. Em Génova, naquela noite, ouvia a voz dela, ouvia os poemas dela ditos por ela, e via-a a ela e à poesia dela. Tudo tão real quanto fantástico. Como ela o foi, como ela o é. Mesmo quando nada restar da poesia dela, mais do que um verso ou um fragmento. Não foi só isso que nos ficou de tantos poetas da Grécia antiga? Mas, porque outros os amaram como alguns amaram Sophia, esse resto é quanto basta. Porque "a arte é filha da memória". Sophia, eu lembro-me.

 

João Bénard da Costa
6 de agosto 2004 in Público

O TEMPO TODO INTEIRO

 

Na proximidade da Estação Fluvial de Belém, deparamo-nos com o belo memorial que homenageia Sophia de Mello Breyner e Menez – Espaço entre a Palavra e a Cor, Sophia / Menez. Perante a obra de azulejos, compreendemos que se trata de um encontro singular em que a sensibilidade artística de dois nomes maiores da cultura contemporânea se completam naturalmente. Como lembra Maria Andresen, citando Arte Poética I: “Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar”. E assim se cruzam cidade, rio e mar, na praia donde partiram as “Navegações”. Se a pandemia impediu a justa cerimónia de inauguração do memorial no centenário de Sophia, a verdade é que ficámos com uma bela referência da poesia e da pintura, na luminosidade dos azulejos, que projetam o “luzir de azul e rio”, na cidade “oscilando como uma grande barca”. A leveza do monumento no traço e na cor é um apelo à leitura e à releitura de uma obra que sempre se renova.


Neste tempo natalício em que se lembram boas leituras, contamos com o volume Prosa (Assírio e Alvim) de Sophia de Mello Breyner Andresen, com organização e prefácio de Carlos Mendes de Sousa e posfácio de Maria Andresen de Sousa Tavares. Trata-se de um precioso repositório da autora, abrangendo Contos Exemplares, Histórias da Terra e do Mar e O Nu na Antiguidade Clássica, bem como os célebres A Menina do Mar, A Fada Oriana, O Cavaleiro da Dinamarca ou O Rapaz de Bronze. São textos memoráveis bem presentes na memória de várias gerações. E o autor do prefácio inicia a apresentação, recordando o fabuloso primeiro encontro de Sophia com Teixeira de Pascoaes, misto de enigma e de sonho. No termo de uma viagem de Amarante até ao Solar de S. João de Gatão, sozinha a cavalo, Sophia ter-se-ia perdido entre nevoeiros “nos campos, caminhos e atalhos”. Finalmente, a casa apareceu-lhe “grande, antiga, maravilhosa e branca”. Chegou ao destino pelo lado detrás e recorda-se do que o poeta lhe disse: “Por este caminho nunca tinha chegado ninguém”. E a casa é uma aparição, como a chegada de Sophia também o é. “Paisagem e poema tornam-se indistintos: tudo naquele lugar era igual à poesia de Pascoaes: era como se eu avançasse através de um poema de Pascoaes”. É o fascínio da poesia através da prosa. É o culto misterioso do sentido poético, como invocação lendária. O mesmo se passaria com Ruy Cinatti, “guru”, “arauto de todas as modernidades”, numa lembrança de juventude, em retrato “para sempre associado aos fins de tarde de uma primavera antiga, quando foi visto, “caminhando em equilíbrio sobre a beira do tanque”, a proclamar “ao sol e à brisa poemas de Ezra Pound”. Tem, assim razão Carlos Mendes de Sousa ao dizer que “toda a prosa de Sophia está profundamente impregnada por uma essencial matriz poética”. Basta lermos os seus textos (até os de pendor cívico e político) para verificar o reconhecimento da absoluta “unidade entre a poesia e a vida”. Como afirmará na revista da Gulbenkian, Colóquio, em 1960, de modo lapidar: “a Poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira”.


E em Vila d’Arcos surgem os “jardins onde reconhecemos que a vida é um sonho do qual jamais acordamos, um sonho onde irrompem aparições prodigiosas como o lírio, a águia e o inesquecível rosto amado com paixão, mas onde tudo se transforma em esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber…”. Os exemplos são múltiplos e tocam-nos especialmente, como em O Jantar do Bispo, no momento em que tudo se desvanece por encanto depois da revelação de um negócio em que o telhado de uma igreja fora trocado pela dignidade do abade de Varzim. E cada palavra representa um sinal de justiça.

GOM

UM «DEPOIMENTO» ESQUECIDO E ENTERRADO

Sophia - foto de António Pedro Ferreira.jpg

 

«Esta é a madrugada que eu esperava | O dia inicial inteiro e limpo | em que emergimos da noite e do silêncio | e vivos habitamos a substância do tempo» são versos para lá de famosos e repetidos – e com razão – de Sophia de Mello Breyner Andresen, mas embora a sua oposição ao anterior regime seja hoje bastante conhecida, a escritora marcou numa outra ocasião de grande introspecção moral – e política – uma igualmente vincada posição ética de que, todavia, todos os ensaios biográficos, estudos literários, entrevistas e artigos avulsos se esqueceram, ou quiseram fazer esquecido.

A 20 de Novembro de 1956, conjuntamente com o poeta e grande amigo Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes e o advogado e jornalista Francisco de Sousa Tavares, com quem se casara havia dez anos certos – todos católicos e monárquicos ligados ao Centro Nacional de Cultura -, Sophia assinou na primeira página do Diário Popular um veemente «Depoimento» em repúdio frontal à violência soviética contra a revolta libertária húngara, esmagada duas semanas antes, e em resposta ao apelo internacional dos intelectuais daquele país.

Intervenções russas desse calibre e pinta abriram conhecidas rachas e dissensões nas fileiras «humanistas» europeias, como não podia deixar de ser, mas dificilmente se compreende que o documento que adiante se divulga – um caso sem tradição na cultura portuguesa -, não tenha sido registado ou comentado na biografia de Isabel Nery (Esfera dos Livros, 2019), e inútil se torna folhear as actas do colóquio internacional promovido pelo Centro Nacional de Cultura em 2011, ou números monográficos de revistas literárias. Tão-pouco Peter Stilwell o menciona no seu magistral A Condição Humana em Ruy Cinatti (Presença, 1995) ou dele vi sinais na recolha de textos políticos de Francisco de Sousa Tavares organizada por seu filho Miguel (Escritos Políticos, 2 vols., Figueirinhas, 1996). Maria Carneiro de Sousa também não o notou no livro subintitulado Obra de 1944-1962, precursora do Concílio Vaticano II no contexto político e eclesial português (2004), nem mesmo quando avalia os seus «pontos de contacto» com o poeta de O Livro do Nómada Meu Amigo, saído em 1958 pela Guimarães Editora, com um poema-prefácio de Sophia de Mello Breyner.

No seu livro Um Combate Desigual. Ensaios de Sociologia Portuguesa, impresso em edição de autor em 1960, quatro anos depois deste «Depoimento», Francisco de Sousa Tavares escreveu: «O totalitarismo fascista e a tirania marxista foram no mundo moderno as grandes explosões políticas duma atitude filosófica verdadeiramente anticristã. […] A democracia é o regime que exige dos homens maior nível moral; que requere educação, autodomínio, respeito íntimo e profundo pela dignidade dos outros. Sem o absoluto duma lei moral e dum direito natural, a democracia arrastar-se-á prostituída pelas ruas, à mercê da massa e do tirano. A disciplina democrática é de dentro para fora e não de fora para dentro. Tem de existir na consciência dos homens para que possa viver na consciência da cidade» (pp. 186-87).

Por omissão, cumplicidade ou indiferença – que persistem -, o libelo de Sophia, Cinatti e Sousa Tavares não terá tido reverberações na sociedade portuguesa, enfeixada também ela entre duas dominações. O antifascismo tornou-se narrativa única, e não precisamos de ler Júlio Pomar. O Pintor no Tempo de Irene Flunser Pimentel (2018) para o perceber… Mas talvez agora, relendo este depoimento, ganhem outra tonalidade os versos do poema «Exílio», que em 1962 Sophia incluiu no seu Livro Sexto, e clamam assim: «Quando a pátria que temos não a temos | Perdida por silêncio e por renúncia | Até a voz do mar se torna exílio | E a luz que nos rodeia é como grades»…

Vasco Rosa

*

A tragédia da Hungria: depoimento

1956. Crepúsculo sangrento de um ano que a saudade não conserva. Com o cair das folhas neste Outono frio e inundado de sol, a horrível tragédia de Tróia e de Cartago, o grito lancinante das cidades mortas, de novo se desdobra e clama na terra martirizada da Europa antiga.

De novo o Mundo assistiu, cobarde e quieto, ao massacre do pudonor gentil de uma raça, ao estrangulamento frio e fundo do humano grito de liberdade ou morte. Encharcada no sangue dos seus filhos, sagrada pelo martírio incrível de uma geração, a terra plana da Hungria avulta aos nossos olhos como a viva imagem da tortura moral e física do homem escravizado pelo homem, massacrado pela força, atingido na sua dignidade, na sua honra e no seu sentido de justiça.

O Zero e o Infinito. O esmigalhamento da personalidade e do sonho humano de uma cidade em que os homens sejam livres e seguros, em que a lei seja a trincheira que defende todos e cada um do monstro abstracto e sem alma em que pode degenerar o poder dum Estado político.

O grande, o inanarrável drama que sintetiza e explica para a História o século XX – o drama do poder totalitário do Estado – encheu mais um capítulo de horror na História moderna; mais uma vez o diálogo mortal do direito e da força subiu à tona do destino humano, iluminado pelos clarões de uma cidade agónica e de um povo em desespero. O silêncio pesado e brutal amortalhou os últimos clamores da festa magnífica em que um povo inteiro celebrou, embriagado, o direito de ser livre, o direito de ser senhor da sua vida, do seu destino e… do seu governo.

A Hungria morreu. Mas o sangue derramado em jorro sobre as pedras antiquíssimas de Buda e de Pest, o sangue que tingiu a água ocidental e europeia do Danúbio não pode ser perdido. Como semente de heroísmo, como módulo da determinada e estóica resistência individual à tirania da força, cimenta em cada um de nós, ocidentais e europeus definitivos, a profunda vontade de estruturar a nossa liberdade cívica e vital e a nossa cristã dignidade de homens, em termos claros e iniludíveis, em termos de repugnância instintiva a toda a forma de prepotência ou de arbítrio contra a lei.

Baudelaire dizia que o poeta não é de nenhum partido, pois se o fosse seria um simples mortal.

Independentemente de qualquer partido, as terríveis violências praticadas na Hungria põem de luto a inteligência e a alma de todos aqueles que esperavam que o seu tempo não fosse um tempo de suplícios, de traição e de mentira.

Põem de luto a alma de todos aqueles que, com a sua inteligência ou a sua arte, tentaram encontrar a verdade de um universo puro e de uma ordem real.

E, na fúria anormal e desumana com que a liberdade da Hungria é esmagada, o regime russo mostrou que não trazia em si nenhum ideal, mas unicamente política. Unicamente um partido.

E ninguém pode suportar o horror de um mundo onde um homem não é um homem mas unicamente um número que, quando convém, pode ser suprimido.

A violência e o abuso que estão sendo praticados na Hungria são o resultado natural de uma maneira de ser onde, sem respeito pela individualidade, pela solidão e pela diginidade humanas, os homens chamam uns aos outros camarada. A palavra camarada, palavra que exprime promiscuidade e desidentificação, é uma palavra que tende a destruir aquele dado essencial de toda a poesia de que cada homem é em si um valor único e insubstituível. É uma palavra que serve de máscara e de incentivo àquela antiga perversão do instinto de espécie que faz com que o homem seja o lobo do homem.

Nenhuma inteligência objectiva pode aceitar uma justificação para a repressão da revolução húngara. Nenhum poeta pode deixar de chorar sobre a esperança e a claridade destruídas.

Quisemos prestar esta homenagem à grandeza e ao heroísmo da mocidade cobardemente assassinada. Nela ressurgiu o sentido esquecido da palavra homem. E não pudemos calar o eco solitário e impotente que em nós levantou o apelo angustiante dos intelectuais húngaros; temos horror de pertencer a um Mundo em que esse grito se perdeu sem que a indignação levantasse as almas e os homens se erguessem para a morte, porque a vida fica sem destino e sem leveza quando já nada se defende nem nada se combate. Ao grito dos nossos irmãos perdidos e abandonados, a todos os heróis mortos por nós, pela nossa liberdade e pelo nosso destino, nada temos para dar além deste testemunho de admiração, de piedade e de tristeza imensa.

Não podemos aceitar o massacre de uma cidade.

Não podemos aceitar nenhuma confusão de planos entre o massacre da Hungria e a luta do Suez. Porque, nesta, a inteligência, a sensibilidade e o conhecimento histórico se podem dividir em possibilidade dialéctica. Sobre o cadáver de uma cidade martirizada nenhuma discussão é possível. E, sobretudo, não aceitamos essa confusão de planos quando ela é feita por aqueles que na literatura constantemente invocam a palavra humano, e se esquecem do homem, filho de Deus, na realidade concreta.

Pelo homem húngaro, achincalhado e morto, sem discussão e sem perdão, aos assassinos nos erguemos em claro, definitivo e revoltado protesto.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
Ruy Cinatti e Francisco de Sousa Tavares
Diário Popular, Lisboa, 20 de Novembro de 1956, pp. 1, 6

Depoimento A.JPG

Depoimento B.JPG

 

 

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Nota
Inicialmente publicado a 28 de novembro de 2020 no jornal digital Observador, a quem o Centro Nacional de Cultura e Vasco Rosa agradecem a possibilidade desta reprodução.

 

 

NO BRASIL, COLÓQUIO SOBRE TEATRO PORTUGUÊS

Sena & Sophia_cartaz.png

Referimos hoje a celebração, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro - URFJ, de um colóquio sobre o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andersen e de Jorge de Sena, ambos como bem sabemos escritores e dramaturgos de grande prestígio. Intitulado justamente “Sena & Sophia: Centenários”, o colóquio é uma oportuna iniciativa do Real Gabinete Português de Leitura e precisamente da Cátedra Jorge de Sena da referida Universidade: e é interessante referir esta dualidade temática, Sophia e Sena, a partir insista-se, do centenário do nascimento de ambos os escritores, sendo certo que Sena falece em 1978, e Sophia em 2004.

Já aqui evocamos o teatro de Sophia, em três artigos recentes, onde analisamos a dramaturgia desta extraordinária escritora que tanto prestigiou a criatividade poética, literária e dramatúrgica da literatura de língua portuguesa. Para esses artigos remetemos, salientando, entretanto, uma vez mais, a relevância e projeção que o colóquio representa, tendo em vista o âmbito prestigiado e prestigiante da UFRJ.

Mas veja-se agora que é interessante e prestigiante para as entidades organizadoras e também obviamente para a cultura portuguesa em geral, esta evocação da obra e da personalidade de Jorge de Sena. E então, merece o maior destaque a circunstância de que a iniciava se deve à precisamente designada Cátedra Jorge de Sena, da Faculdade de Letras da UFRJ, o que demostra a relevância do escritor.

E dado que esta rubrica se constitui precisamente num conjunto de análises a partir da arte cénica, referiremos então sobretudo a dramaturgia de Jorge de Sena, sem esquecer, note-se, a heterogeneidade e qualidade da sua obra geral, que noutra ocasião poderemos analisar.

Efetivamente, Jorge de Sena, apara além de um ato breve inicial de expressão mais realista, “Luto” (1938), inicia em 1945 uma renovação das expressões do teatro-texto, através algo paradoxalmente de reestruturação do teatro de temário histórico, com “O Indesejado - António Rei” (1945). E logo aí ressalta a modernização/inquirição dos temas e do estilo dominante do teatro: trata-se efetivamente de uma tragédia anti sebastianista, digamos assim, que como tal rompe com uma tradição clássica secular no teatro português...

E mais escreveu para a cena Jorge de Sena, perdoe-se a quase redundância, através de uma série de textos dramáticos que vão buscar a temas por vezes de evocação histórica como que uma análise crítica da realidade do seu tempo: assim temos “Amparo de Mãe” (1948), “Ulisseia Adúltera” (1948), “A Morte do Papa” (1964), “O Império do Oriente” (1964), “O Banquete de Dionísios” (1969), “Prometeu ou o Homem que Pensava demais” (1971).

Mas não ficou por aqui a intervenção do Jorge de Sena no teatro. Na verdade, colaborou com António Pedro e nos relevantes - na época pela renovação e culturalmente ainda hoje - Companheiros do Pátio das Comédias e Teatro Experimental do Porto. E mais: de junho a setembro de 1948, Jorge de Sena adaptou para a rádio nada menos do que 13 romances policiais emitidos no então importante Radio Clube Português num programa produzido por António Pedro, com quem aliás colaborou no Teatro Experimental do Porto.

Tal como como escreveu Luis Francisco Rebello, parte das peças de Jorge de Sena “direta ou indiretamente se reconduzem á estética e à ética do surrealismo”. (in “O Jogo dos Homens” 1971). E tal como eu próprio escrevi, e seja-me permitida as auto citações, “Jorge de Sena representa a mais acabada continuidade e complementaridade entre o Surrealismo e o Classicismo”, no contexto de “uma visão muito ácida e crítica da sociedade portuguesa…” (in História do Teatro Português” ed. Verbo 2001 e “Teatro em Portugal” ed. CTT 2012).

 

DUARTE IVO CRUZ

   

A VIDA DOS LIVROS

De 18 a 24 de março de 2019

 

Este ano, as “Correntes d’Escritas”, na Póvoa de Varzim, partiram de versos e frases de Sophia de Mello Breyner, nomeadamente, para três conversas, esta: “a cultura é cara. A incultura acaba por sair mais cara. E a demagogia custa sempre caríssimo”.

 

 

O VALOR INCOMENSURÁVEL DA CULTURA
O tema deu pano para mangas, e permitiu glosas diversas para o mesmo mote. Naturalmente, que havia que lembrar a primeira lição de economia, que muita gente esquece. De facto, o que tem mais valor é o que não tem preço. Isto significa que se queremos compreender as relações humanas e sociais, somos obrigados a entender a dificuldade das escolhas que somos obrigados a fazer. O mercantilismo cego tem levado a cairmos nas armadilhas do imediatismo e do curto prazo. Por isso, Sophia dizia, como se estivesse a ver o que a cada passo nos circunda, que a demagogia custa sempre caríssimo. Se é verdade que nem tudo o que reluz é ouro, o certo é que a corrida atrás do que é fácil e imediato só leva a exacerbar egoísmos e consumismos, numa corrida desenfreada para a destruição do que melhor recebemos por parte das gerações que nos antecederam. E regresso ao velho tema da exigência de não deixar ao abandono o património cultural em todas as suas vertentes.

 

DO QUE FALAMOS? 
De que cultura falamos? Da arte, onde tudo começa, já que a educação da criança se inicia pelos sentidos e pela admiração, curiosidade e espanto por tudo o que é belo, seguindo a maravilha dos números, que nos permitem unir e distinguir, e continuando na magia das letras e das palavras. Voltando à poeta de “Mar Novo”: “A Arte deve ser livre, porque o ato de criação é em si um ato de liberdade. Mas não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a Arte não é livre, o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade da liberdade. Onde o artista começa a não ser livre o povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e abstrata. Se o ataque à liberdade me preocupa tanto é porque a falta de liberdade cultural é um sintoma que significa sempre opressão de um povo inteiro”. Eis o que está em causa. A liberdade corresponde a uma dimensão pessoal e comunitária. Lembro-me bem de Sophia a invocar estas duas palavras, do mesmo modo que Francisco de Sousa Tavares demarcando-se dos entendimentos totalitários que partiam da lógica transpersonalista. Em tantos debates no Centro Nacional de Cultura essa questão tornou-se pedra de toque. Liberdade e diferença, igualdade e responsabilidade – eis o que obrigava a partirmos para uma democracia de pessoas, como nos ensinaram na sala histórica da António Maria Cardoso: Gabriel Marcel, José Bergamín, Schillebeeckx, Padre Manuel Antunes, Maria de Lourdes Belchior, Almada Negreiros, Fernando Amado, Gonçalo Ribeiro Telles… Todos por lá passaram, militantemente. E a liberdade era defendida na encruzilhada da raiz e da utopia – ou como queria Bergamin, na capa da sua revista “Cruz y Raya” como mais e menos. Só poderemos ser livres, se a justiça não for parcial, unidimensional e abstrata. Daí esses dois sinais gráficos da adição e da subtração. Que é a cultura senão essa capacidade de distinguir o que acrescenta e o que diminui. A vida é isso mesmo. E a criação cultural corresponde à aproximação das pessoas concretas – numa relação que tem de ser estabelecida olhos nos olhos… Os criadores são pessoas de carne e osso que partilham a sua capacidade de fazer da arte um valor para todos. Como ainda dizia Sophia: “Existe uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado através dos meios de comunicação social”. Os aedos cantaram nos palácios, os rapsodos nas praças públicas, e com Homero, a arte foi posta em comum – e por isso os gregos inventaram a democracia. E que é a Arte? Um dom pelo qual acrescentamos valor ao que a natureza nos faculta. Como diz Eduardo Lourenço, “o sentido real da cultura é a produção de coisas valiosas e de valores”. Quando pomos em diálogo os poetas, os escritores, os pintores, os escultores, os músicos, os artesãos, os atores, os dramaturgos, os cientistas – é o mundo e a natureza que pomos a falar.

 

A QUE PREÇO?
A cultura é cara? Sim, porque corresponde ao que tem mais valor. Àquilo que não cabe nos cânones do mercado. E falamos de uma noção ampla e rica, a cultura que não pode ser deixada ao abandono. Não é mercadoria, do mesmo modo que a educação e a ciência o não são. Por isso, estamos perante um investimento reprodutivo, transversal e abrangente. Os públicos da cultura formam-se nas escolas. A criatividade do artista e do cientista, do músico ou do artesão têm raízes comuns. Falamos das identidades como realidades dinâmicas, diversas e abertas. Falamos de fundamentos e raízes que temos de enriquecer permanentemente. Falamos de pessoas, de hábitos e costumes, de pedras vivas, mas também de monumentos, de vestígios arqueológicos, de pedras mortas, que têm significado para o nosso ser. E falamos do património genético e do digital, do genoma e da inteligência artificial, bem como da natureza e da paisagem, e igualmente da capacidade criadora de hoje e de sempre. É este o sentido comunitário que foi bandeira cívica de Sophia e de Gonçalo Ribeiro Telles, num combate sem tréguas contra a ilusão e a indiferença. Que são Humanidades? Nunca domínios fechados, mas diálogo vivo de saberes. Lembramo-nos do trivium e do quadrivium medievais. Lá está tudo o que importa, e sobretudo os horizontes abertos: a Gramática, a Lógica e a Retórica, e ainda a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música. E como não lembrar a fantástica figura de Leibniz? Não há melhor cultor das Humanidades. Foi filósofo, matemático, escritor, historiador, cientista, figura máxima de todas as artes liberais. Eis por que razão ao falar de cultura, não falamos de uma tribo fechada sobre si. Falamos de educação, de ciência, de comunicação, de artes. E ao falar de educação, referimos o fator essencial de desenvolvimento humano - que é a aprendizagem. Luísa Dacosta insistia na ideia de que a educação é sempre uma troca, desde tenra idade… E esta leva-nos ao exemplo e à experiência. Cultivar a pergunta e a capacidade de ver o que nos rodeia e saber responder – eis o essencial. O espírito científico significa cultivar a atenção, e saber ligar os saberes; ter a humildade suficiente para reconhecer que o valor do conhecimento obriga a saber acrescentar. E só compreendemos se soubermos comunicar, distinguindo o trigo do joio. Tornar a informação conhecimento e o conhecimento sabedoria. E assim temos de nos prevenir contra o erro, a manipulação e as notícias falsas, já que o sentido crítico, sendo indispensável, corresponde a entender os limites. A cultura como dom leva-nos a perceber que só vamos mais além se vencermos passo a passo. E a incultura representa um enorme desperdício.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

SOPHIA: MEMÓRIA – 2 DE JULHO DE 2004


1 - 
Começa a ser sina. De cada vez que me afasto, em peregrinações minhas longamente preparadas, toca o telemóvel com uma notícia terrível. Munique, agosto de 2002, Cumes, maio de 2003, Génova, julho de 2004. Mortes ou outras coisas que sabemos. Sabia que iam acontecer. Esperava-as. Mas não ali, onde parecem tão súbitas, tão sozinhas, tão desamparadas como se eu não fizesse falta nenhuma. "Por isso eu escrevi" - escreveu-me Sophia há mais de sete anos - "Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo." E esse poema continua: "Mal de te amar neste lugar de imperfeição / Onde tudo nos quebra e emudece / Onde tudo nos mente e nos separa." É isso que faz mais medo: a mentira, a separação. Já não vale a batota das palavras.


2 - 
Era o dia - aqui o recordei - em que passaram cem anos sobre a morte de Tchekov. A seguir a um almoço muito tardio numa fruste esplanada de madeira, subi e desci ruas quentes e íngremes até uma igrejinha românica (fundada no século VII, reconstruída no século XII) chamada Santa Maria di Castello. Lá, num claustro evanescente, está pintado um fresco representando a Anunciação. Data de 1451 e é obra de um tal Justo da Alemanha (sic) de quem nunca ouvira falar. Sob ogivas, um grande arco de volta inteira cobre o Pai e o Espírito Santo, no tecto de um espaçoso quarto. A Virgem, de pé, de manto azulíssimo e mãos cruzadas sobre o peito, está à direita, submissíssima. À esquerda, o arcanjo, dourado e muito mais volumoso, dá-lhe o Avé. Mas reparei que, ao fundo, do lado de Maria, existe um lava-louças. Da torneira salta um peixe. No fundo da bacia, meia de água, jaz outro peixe, morto. A simbologia crística do peixe é conhecida. Mas nunca a tinha visto figurada assim, em recapitulação tão elíptica e tão envolvente. 

Não havia mais ninguém. Mas, quando me vinha embora, apareceu um padre. Perguntei-lhe se não haveria reproduções. Disse-me que sim e pedi-lhe duas, uma para mim e outra para oferecer. Deu-mas e recusou qualquer pagamento. Da igreja desci até ao Vico dei Giustiniani. Virei à direita, depois à esquerda e cheguei ao Duomo, consagrado a São Lourenço, que, segundo a lenda, teria sido assado vivo naquele local ("Virem-me do outro lado, que eu deste já estou assado"). A fachada, construída entre os séculos XIII e XV, em mármore policromado, é magnífica. O interior, muito modificado, bastante mais pesado. Depois, desci para o bairro medieval e para o porto. Ao fim da tarde, o calor horrível começou a abrandar e perdi-me nas ruas estreitíssimas e de casas altíssimas, onde só havia sombra. Foi nelas que, pela primeira vez, me lembrei conscientemente de Sophia e daquele poema (do "Mar Novo") que se chama "Marinheiro sem Mar", e que é sempre um dos meus favoritos dela. "Todas as cidades são navios / Carregados de cães uivando à lua / Carregados de anões e mortos frios." E mais adiante (deve ser um dos poemas mais longos de Sophia, que, em toda a história da literatura portuguesa, ninguém excedeu no verso curto): "E sobe por escadas escondidas / E vira por ruas sem nome / Pela própria escuridão conduzido / Com pupilas transparentes e de vidro / Vai nos contínuos corredores / Onde os polvos da sombra o estrangulam / E as luzes como peixes voadores / O alucinam." Foi a pensar em Sophia que cheguei, já começava a entardecer, à Piazza San Matteo, a mais bela e perfeita praça de Génova, onde as casas de Branca Doria ("'lo credo' diss'io lui, 'che tu m'inganni; ché Branca Doria non mori unquanche/ e mangia e bee e dorme e veste panni'", disse Dante ao irmão Alberigo no Canto XXXIII do "Inferno", antes de amaldiçoar os genoveses, "uomini diversi") de Lamba Doria (vencedor da batalha de Curzola) e de Domenicaccio Doria abrem alas de rosa e branco para o verde pálido da Igreja de San Matteo e dos mosaicos da fachada dela. "Como é estranho não saber", disse Sophia no último verso dos nove "Poemas de um Livro Destruído", poemas que Sophia conservou inéditos por mais de vinte anos. Ali, sentado no chão, nos degraus da casa de Lamba Doria, em frente da igreja (já fechada) eu julgava saber alguma coisa. Suadíssimo, descamisadíssimo, sentia uma grande paz e não havia vivalma ao meu redor. Por isso, apanhei um susto quando o telefone tocou (esqueço-me sempre de o desligar). Uma espécie de mau presságio. Mas era um banal recado da Cinemateca, pormenores de programação. Estranhei não me irritar com a interrupção e, enquanto olhava, (olhava sempre) mantive uma longa conversa, com instruções para mudar o filme A para o dia Z e o filme Z para o dia B. Tudo muito calmo, muito quotidiano, como se estivesse à secretária da Barata Salgueiro. Depois de desligar, deixei-me ainda ficar muito tempo por ali, muito longe de maldizer os genoveses ou de pensar no Cócito. Nenhuma vontade de fazer mal a alguém por cortesia. Se houvesse na praça um restaurante, tinha jantado por ali, para ver como a noite lhe ficava. Não havia e por isso dei ordem às pernas para o que lhes queria: regressar ao hotel, tomar um bom banho, mudar de roupa e voltar a sair para jantar bem.

3 - Foi quando cheguei ao hotel, bastante esfalfado, já tinha na mão a chave do quarto, que o telefone voltou a tocar. Desta vez, nenhum sobressalto nem nenhuma surpresa. Era o meu genro Pedro. Demorei uns segundos a reparar no tom grave da voz. A Maria, filha da Sophia, tinha telefonado a pedir que me avisassem, que eu gostava de saber. 
Desisti dos meus planos e fiquei no hotel, numa grande casa de jantar quase deserta. Tentei falar com a Maria ou com os irmãos, mas não consegui. Também não consegui falar com a pessoa em quem mais pensava. Começaram, sim, a falar gentes dos jornais, a pedir comentários, "depoimentos" (o que eu odeio os jornalistas nessas alturas!). Inevitavelmente, pensei no poema de que toda a gente se lembrou quando ela foi morta. E ouvi-a distintamente, como no velho disco de 45 rotações que havia lá em casa, dizer: "Outros amarão as coisas que eu amei." Estúpida vaidade, ou o contrário disso, pensei que, naquela tarde em Génova, 2 de julho de 2004, eu teria sido um dos primeiros desses outros, pois que certamente Sophia amou, ou teria amado, o fresco do claustro de Santa Maria di Castello ou a Piazza San Matteo, se acaso os viu, se acaso os visse.

4 - Mas será verdade, como Sophia tão fundamente acreditou, que tudo continuará "como se eu não estivesse morta"? "Será o mesmo brilho, a mesma festa / Será o mesmo jardim à minha porta"? Vezes sem conta discuti isso com Sophia. Para ela, "sempre a poesia foi uma perseguição do real". Quando recordou a "maçã enorme e vermelha" "poisada em cima de uma mesa", "num quarto em frente do mar" (e era a coisa mais antiga de que ela se lembrava), não recordou "nada de fantástico" "nada de imaginário". "Era a própria presença do real que eu descobria." Por isso, cem vezes ou mais, na sua poesia, associada à morte, surge essa crença na continuidade do real, independentemente dela ou de qualquer humano. "Também morre o florir de mil pomares / E se quebram as ondas no oceano." Ou: "Um dia quebrarei todas as pontes / Que ligam o meu ser, vivo e total / À agitação do mundo do irreal / E calma subirei até às fontes." Cito ao acaso, de memória. Podia citar mil poemas em que ela diz o mesmo. Mas para mim (e a questão é filosófica e tão velha como os primeiros filósofos) esse radical realismo é-me estranho. Sophia ou Génova, para não sair do tema desta crónica, só são ou foram reais quando e enquanto me foram aparições. "Quando o meu corpo apodrecer e eu for morto" não estou nada certo que Sophia e Génova continuem como continuam hoje, porque eu estou vivo e eu me lembro delas. Um amigo observou-me um dia, a propósito de uma destas crónicas do PÚBLICO sobre Itália (era sobre Lecce), que eu não escrevia sobre Lecce escrevia sobre mim, como se, perdido eu, Lecce deixasse de poder ser vista como eu a vira. Tem toda a razão. Foi assim e é assim. Sem mim, não sei de eu. Isto não significa - muito ao contrário - que eu não acredite na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna, amém. Esta crónica, bem lida, é um dos múltiplos sinais. Mas só a fé que tenho em não desaparecer me faz acreditar que ninguém ou nada do que amei desaparecerá também. Se eu fosse ateu, poderia repetir, sem remorso ou vacilação, o "après moi le déluge". Não concebo qualquer real independente de mim. Como não concebo que o Kouros do Egeu seja para mais alguém, como foi para Sophia, "Sorriso sem costura / Inocência de caule / Retrato nu do liso." É verdade? É. Tão, tão verdade. Mas ninguém nunca mais inventará esses seis substantivos ligados por um único adjectivo. O mais longe que vou é ao que Sophia escreveu no mágico poema chamado "Veneza", do livro "Ilhas".

"Dentro deste quarto um outro quarto 
Como um Carpaccio nas ruas de Veneza 
Segunda imagem sussurro de surpresa 
E um pouco assim são as ruas de Veneza  
Em fundo glauco de laguna ou vidro  
E um pouco assim em nossa vida o duplo  
Espelho sem perdão do não vivido  
Caminha destinado a ser perdido

5 - Acima falei dos nove "Poemas de um Livro Destruído", que, escritos entre "Coral" e "No Tempo Dividido" (ou seja, entre 1950 e 1954, tinha Sophia trinta e poucos anos) só foram inseridos em 1985 na segunda edição do último desses livros. 
Sophia falou-me deles em 1969 ou em 1970 e disse-me que lhe faziam um medo enorme, porque lhe pareciam alheios, sendo dela como se não fossem dela. Pedi-lhe que me escrevesse aquele que começa com "Não procures verdade no que sabes" e, desde esse dia, guardo esse poema ao lado das imagens mais minhas, como o retrato dela em Agrigento que o Alberto lhe tirou. Em Génova, naquela noite, ouvia a voz dela, ouvia os poemas dela ditos por ela, e via-a a ela e à poesia dela. Tudo tão real quanto fantástico. Como ela o foi, como ela o é. Mesmo quando nada restar da poesia dela, mais do que um verso ou um fragmento. Não foi só isso que nos ficou de tantos poetas da Grécia antiga? Mas, porque outros os amaram como alguns amaram Sophia, esse resto é quanto basta. Porque "a arte é filha da memória". Sophia, eu lembro-me.

 

João Bénard da Costa
6 de agosto 2004 in Público