Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Ao ler a reedição de Sophia de Mello Breyner Andresen – Biografia de Isabel Nery (D. Quixote), quando celebramos os 500 anos do nascimento de Camões e os 50 anos da Revolução de Abril de 1974 devo salientar como na referência à autora de Mar Novo encontramos, em ligação estreita, a recordação do épico e a evocação perene da liberdade.
ESTA É A MADRUGADA QUE EU ESPERAVA Se lembramos como Camões tem sido ao longo da nossa história símbolo da liberdade, desde antes de 1640 ou no período final do século XIX, no centenário de 1880, temos de ter presente como Sophia simbolizou a voz corajosa de “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” e a proclamação inolvidável - “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Em que emergimos da noite e do silêncio / E vivos habitamos a substância do tempo”. Estão assim evidenciados os ecos da essência poética das nossas raízes, desde os trovadores até às mais recentes gerações, passando pela maturidade da língua na poesia de Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett ou Antero… “Sophia afirmou em várias entrevistas que foi feliz enquanto aluna do colégio, mas o que mais a marcou foram as aprendizagens recebidas dos avós – e das criadas. Sólida terá sido a experiência que a levou a memorizar a Nau Catrineta”. “Lá vem a Nau Catrineta / Que tem muito que contar / Ouvi agora, senhores, / Uma história de pasmar…”. “A transmissão oral dos versos, mesmo antes de saber ler, levaria Sophia a afirmar ter crescido a acreditar que a poesia tinha existência própria, depois de um primeiro contacto com as palavras de Antero de Quental e de Camões que o avô Tomás de Mello Breyner lhe ensinava. E que a pequena Sophia não compreendia ainda, mas reconhecia”. E o avô não lhe poupava elogios: “Admirável na maneira como recita”. “Um assombro”. E acrescentava: “Quando há dias estive no Porto via-a decorar um soneto de Antero de Quental depois de ouvir apenas três vezes. Que encanto de pequena!”. “Com apenas 10 anos, Sophia passeava-se com uma edição dos Lusíadas na algibeira e já fazia furor perante as visitas que ficavam de boca aberta quando a ouviam recitar”. Mais do que o natural orgulho do avô, que conhecera a geração excecional do próprio Antero e que se formara na valorização das raízes do Romanceiro de Garrett, a verdade é que sentimos desde cedo em Sophia a importância da vivência poética, cujo ritmo sentia intimamente, a ponto de afirmar que os três pontos cruciais numa escola deveriam ser: poesia, música e a consciência do corpo, pela ginástica e pela dansa, palavra que escrevia sempre com um s, para que não se perdesse o sentido do movimento. As artes constituíam, assim, o começo de qualquer aprendizagem. “todo o mundo é poético quando visto em verdade. Todas as coisas são maravilhosas quando as compreendemos. E a poesia limita-se afinal a iluminar a verdade, a beleza secreta que há em tudo aquilo que existe” – como afirmava Francisco Sousa Tavares, ao considerar Sophia como alguém “que se adivinha, adivinhando o mundo, para além das aparências e atinge o ritmo secreto, verdadeiro e universal da vida”…
DEPURADA PERSONALIDADE DE POETA Convergindo com a sabedoria inconformista do Padre Manuel Antunes, mestre da cultura clássica, Sophia encontra nele o elogio da unidade, da concentração e da intensidade de uma “poesia intemporal que revela uma forte e depurada personalidade de poeta”. E a própria esclarece: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é a arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência, nem uma estética, nem uma teoria. Pede-me apenas a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna (…). Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa, compacta” (Arte Poética II). De facto, há um evidente contacto entre o crítico da Brotéria e a artista: “A palavra é dada ao homem para traduzir, interpretar, dizer a realidade que está aí, na sua imediatez, bruta e elementar, diversa e una”. É a busca da coerência da vida que está em causa, tal como encontramos nos Contos Exemplares, quer na figura de Mónica, que em nome do sucesso não renuncia à poesia, ao amor e à santidade; quer em “O Jantar do Bispo” onde o padre (Varzim) diz: “Da nossa própria fome podemos dizer que é um problema material e prático. A fome dos outros é um problema moral”. A atenção e o cuidado eram marcas da coerência de Sophia, bem sentida na casa da Travessa das Mónicas.
UMA BUSCA APAIXONADA “Nuno Júdice recorda a busca por livros que não faziam parte do programa. Nos intervalos, no Liceu Camões, em Lisboa cambiavam-se conquistas literárias. Ora Guterres chegava dizendo, orgulhoso, que tinha acabado de comprar um exemplar de Sophia, Geografia, ora Cintra trazia o Livro Sexto de presente a Nuno Júdice, aniversariante no mesmo dia do amigo encenador. Procurávamos tudo o que fosse contra a ditadura. Livro Sexto que é importantíssimo, tem muitos textos com forte componente política. Sophia marcou toda aquela geração”. O Centro Nacional de Cultura, depois do encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, aquando da atribuição do prémio a Luandino Vieira, tornou-se um lugar de desassossego e de jovens poetas que seguiam o exemplo de Sophia e Francisco de Sousa Tavares. E ele mesmo tem a ideia de pedir a sua mulher que assuma a presidência do Centro, uma vez que havia que mobilizar uma nova geração de poetas e escritores, perante a afronta do regime contra a liberdade de criação e a cultura. E havia ainda que cuidar clandestinamente do apoio aos presos políticos, e Sophia era a melhor pessoa para poder assumir-se como necessário polo agregador. É um tempo decisivo que vai preparar a democracia que se anunciava. Numa dedicatória dirá exemplarmente: “Para o Francisco, que me ensinou a coragem, e a alegria do combate desigual”. E como ensinaram os teólogos do Concílio Vaticano II: “Gostar da Terra é gostar da obra de Deus”. E Eduardo Lourenço verifica que a mitologia grega lhe serviu de inscrição para os seus próprios santos, ao culto da beleza e do natural. “Porque é a ética que concilia a imanência e o presente (o instante e a eternidade), as nossas ações compõem o futuro depois da morte. Se não formos capazes de criar o paraíso no dia a dia ele nunca será encontrado”. A cada passo “a paixão helénica” enche o pensamento poético centrado no ser. Já falámos da centralidade da arte na educação, da ética no bem comum, da atenção e do cuidado, do exemplo e da experiência, e sentimo-lo intensamente quando fomos à Escola que tem o seu nome em Carnaxide, tendo Sophia pedido a professores e alunos que representassem de cor A Menina do Mar. E, ao ouvi-los, emocionada, compreendeu quanta esperança há na arte de educar, como modo de fazer da palavra a expressão do ser.
A primeira visita de Sophia de Mello Breyner a Teixeira de Pascoaes possui um sentido mítico. Ocorreu doze anos antes da morte do cenobita do Marão. Partindo de Amarante a cavalo, rumou a São João de Gatão, até à casa misteriosa e plena, que muitos de nós conhecemos. Contudo, Sophia perdeu-se entre nevoeiros nos “campos, caminhos e atalhos”, até que finalmente lhe apareceu a casa, de modo surpreendente, “grande, antiga, maravilhosa e branca”. E o espanto deveu-se ao facto de ter lá chegado pelo “lado de trás da casa”. A destemida jovem de então, esperava, como qualquer viajante comum, chegar à entrada brasonada do solar tão celebrado dos Teixeira de Vasconcelos, mas assim não aconteceu. O próprio Pascoaes ao recebê-la surpreendeu-se: “Por este caminho nunca chegou ninguém”. A literatura e o sonho misturam-se, naturalmente. Paisagem e poema tornam-se uma mesma realidade – como tantas vezes afirmou Gonçalo Ribeiro Telles, o paisagista por excelência. “Tudo naquele lugar era igual à poesia de Pascoaes”. E Sophia viu naquele surpreendente desvio um caminho que correspondia exatamente à leitura de um poema. Como diz Carlos Mendes de Sousa: “os textos sobre os poetas e a poesia estão muito próximos dos contos que escreveu, concretamente pelo efeito de surpresa e pela força das imagens, como a espantosa chegada a cavalo à casa de Pascoaes”. Isto, para não esquecer a evocação da descoberta do amigo Ruy Cinatti, a dizer versos sobre a beira de um tanque…
Sophia é um exemplo de amor à língua e à cultura, como essências de uma autêntica educação para as pessoas. Como candidata a deputada, nas campanhas eleitorais, em vez de discursos sobre a democracia e a liberdade, preferia ler poemas – “porque para mim a poesia é a liberdade”. E assim compreendia as pessoas simples do campo e os mais exigentes. “Havia sempre um silêncio especial, mais profundo e mais atento para ouvir poesia”. Por isso, afirmou na revista “Colóquio” que “a poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira”. Um dia, convidei Sophia para inaugurar a escola que tem o seu nome em Carnaxide. Respondeu-me, com a amabilidade habitual e a fidalguia que sempre lhe conhecemos, que só aceitaria na condição de alunos e professores da escola prepararem uma representação de cor do conto “A Menina do Mar”. Não calculam a alegria que senti da parte dos membros da comunidade escolar ao conhecerem a disponibilidade da poeta, e poucos dias depois confirmaram que tudo estava combinado e acertado. Mas, cética, Sophia confessou-me: “Dizem-me que se desaprendeu o método de decorar nas escolas, esquecendo-se, etimologicamente, o que é aprender com o coração”. Veio o dia aprazado, entusiasmo total, alunas e alunos, professoras e professores, famílias, grupos cantando mornas e coladeiras, tudo em festa. E a homenageada segredou-me: “Recebem-me como uma rainha” … A inauguração consistiu nesse entusiasmo. No ginásio, em vez de discursos, apenas a presença dos jovens – e de um modo perfeito, numa adaptação adequada, ouvimos, de cor, sem uma dúvida ou hesitação: “Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas”. Os jovens intérpretes figuravam o enredo. Nadavam e riam o polvo, o caranguejo, o peixe e a menina. Sophia estava surpreendida e feliz. E quando a protagonista disse “Agora a tua terra é o mar” e quando, no epílogo, o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, as palmas e os aplausos irromperam espontâneos e Sophia levantou-se com alegria juvenil: “Vejo que a língua e as escolas estão vivas”. Valera a pena o desafio. A educação precisa sempre da liberdade e da exigência.
“Evocação de Sophia” de Alberto Vaz da Silva (Assírio e Alvim, 2009) é a última das obras deixada por uma das referências essenciais do Centro Nacional de Cultura. Referimos a obra, como homenagem a Sophia, ao seu autor e ainda a Maria Velho da Costa.
A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA Naquela noite de sábado, depois de comemorar, à distância, com Amesterdão, os sete anos de um neto, feliz numa celebração auspiciosa, veio a notícia, entre os alertas que as novas tecnologias trazem, da morte de Maria Velho da Costa. Era uma amiga de confiança, Margarida Gil, que dava a notícia inesperada. Nessa tarde, falara com o Eduardo Lourenço, para lhe dar um abraço pelas suas noventa e sete primaveras, e estava longe de pensar que à noite iria relembrar as palavras premonitórias do seu prefácio a Maina Mendes, onde a personagem feminina emblemática simbolizava na mudez, a mudez de uma sociedade e a exigência de libertação de constrangimentos arcaicos. E relembrei as palavras do ensaísta, a ligarem a mestria literária e o grito de alerta humano… “É na trama de uma escrita densa e plural, de um virtuosismo sem exemplo entre nós, que Maina Mendes se encontra escrita e dispersa em múltiplos perfis, ‘puzzle’ voluntário organizado do interior (ou do lado invisível da trama) pela pressão uniforme do mundo recusado, mundo masculino, onde ele é a voz silenciada, negada ou submersa que se recusa à afonia definitiva”… E o certo é que para o ensaísta ninguém dos contemporâneos “redistribui com tanto sucesso as experiências mais criadoras da prosa portuguesa, de Fernão Lopes a Guimarães Rosa, paisagens atravessadas e recriadas, a par de outras, com uma originalidade absoluta”. Fui encontrando Maria Velho da Costa em diversos momentos e de diversas maneiras: antes do mais, na minha adolescência de leitor a acompanhar a geração de “O Tempo e o Modo”. Não esqueço a tradução de Opressão e Liberdade de Simone Weil, por Maria Velho da Costa para o Círculo do Humanismo Cristão da Morais – como Maria de Fátima Sedas Nunes – num texto significativamente encimado por duas citações, de Espinosa e de Marco Aurélio. Do primeiro: “No que diz respeito ao homem, nem o riso, nem as lágrimas, nem a indignação, mas o entendimento”. Do Imperador romano: “O ser dotado de razão pode transformar todo o obstáculo em matéria de trabalho, e dele tirar partido”. E aí Simone Weil partilha uma experiência espiritual emancipadora. Depois fui lendo e acompanhando os lídimos combates pela liberdade de ideias e de escrita – ao lado de duas outras amigas Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta… No final dos anos setenta, encontrámo-nos numa singular experiência com Maria de Lourdes Pintasilgo, Teresa Santa Clara Gomes e Helder Macedo. Fomos tendo contacto e lendo com gosto e interesse a sua obra, num sentido seguro de maturidade. Casas Pardas (1977), Lúcia-lima (1983), Missa in Albis (1988), Dores (1994)… Quando estava no Ministério da Educação, tive a honra de poder contar com a sua colaboração no meu gabinete, num projeto, em que pus especial empenhamento, de escritores e artistas em contacto com as escolas. Nada melhor do que garantir uma aprendizagem viva, baseada no contacto dos estudantes com os nossos melhores no domínio da criação. A ideia nasceu uma noite no ateliê da Graça Morais na Costa do Castelo – e contou ainda com Lídia Jorge, João de Melo, Gastão Cruz, Paulo Teixeira. No projeto também se integraria Maria Velho da Costa, num tempo em que Maria Isabel Barreno representava o Ministério da Educação em Paris (no que foi uma colaboração muito profícua designadamente com Jack Lang). Nesse sábado, dia 23 de maio, em que a notícia infausta veio, dei-me a lembrar esse tempo e a nossa última conversa telefónica, em que Maria Velho da Costa me pediu desculpa por não poder corresponder a um convite para falar numa sessão pública, por se sentir muito cansada…
UM DIÁLOGO APAIXONANTE Devo recordar, ainda, graças ao meu querido e saudoso Alberto Vaz da Silva, a lembrança de Sophia de Mello Breyner, a propósito de duas luminosas conferências feitas por ele no Centro Nacional de Cultura, no Porto e em Lisboa, que a Assírio e Alvim publicou, com o título Evocação de Sophia (2009), tendo na capa uma inesquecível fotografia de Sophia no Templo de Diana em Évora, da coleção de Alberto Lacerda e Luís Amorim de Sousa. Maria Velho da Costa fez um extraordinário prefácio, onde Sophia nos é apresentada, tal como era, num diálogo tocante que tanto nos sensibiliza, sobretudo escrito num tom que faz a prova do que Eduardo Lourenço premonitoriamente referiu a propósito de Maina Mendes. “Falávamos de noite, no alpendre quase morno, sem tom nem som. Nenhuma das duas era desesperadamente musical. Não havia música nem nos fazia preciso. Falávamos mais de todos do que de tudo; do tudo eram a arte e a poesia – nem política, nem mundos a mudar. Não era a prudência de pertencermos a fações políticas diferentes. Era a força da indiferenciação da noite, quando as mulheres falam. Falávamos de amores, de filhos. De amigos e desamigados. Desse mundo ginecêutico e caótico, onde tínhamos ambas de manter aparências. Brilhávamos na meia obscuridade como as estrelas que se viam no céu limpo, mortais e imortais, passe a solenidade. Porque não éramos solenes. (…) As estrelas reuniam-nos e aplacavam-nos, debaixo do alpendre de heras onde ressuscitavam as osgas do torpor do inverno. – Eu chamo-lhes Olgas, Sophia. Comem mosquitos e limpam o ar de moléstias. – Ah, Maria, dar um nome a um bicho é cativá-lo. É perigoso. Não se pode nomear um vírus, uma bactéria, um micróbio. Um cancro. Ia e vinha e perguntava a cada coisa que nome tinha. Não é verdade, respondeu ela quando a citei. Não é verdade, a poesia não pode tudo, a poesia não pode nada. Não pode nomear o mal”…
Estamos a vê-las, conversando serenamente, na quietude de uma noite algarvia. A lembrarem a astrológica injunção: Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe. E a Menina do Mar a dizer, “A minha terra é o mar”. Mas também fica na nossa retina a imagem do percurso matinal, “nesses dias rosados de Primavera na casa da Meia Praia”: “Seguíamos, a praia estava a metros, por um carreiro de terra argilosa, ela à frente, naquele passinho andarilho, até estacar e deixar-me acudir. É que ao longe, ouvia-se o latir dos cães vadios ou soltos, a aproximar-se. Eu enxotava-os, sem pau, de manso, Vão, vão para casa, vão embora. Eles não iam, mas estacavam também, fitos, a ver-nos ir pesarosos. – A Maria parece a Diana, a dos romanos. Olha para os cães e eles ficam com cara de pessoas…”. O diálogo entre Sophia e Maria era a modos que uma projeção do Olimpo no nosso mundo. E isso torna-se evidente quando Maria recorda que um neto seu se assustou quando ela lhe recordou uma passagem belíssima de Sophia: Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar”. A criança disse: “Que horror! Um fantasma na praia. - Não é. É o que disse a Menina do Mar, uns tempos que teve de viver cá fora. - Ah. Prontos. Está bem então, avó. - É um fantasma lindo que cabe na palma da mão. Pois é. Na mão do coração”. Maria Velho da Costa trouxe-nos na sua obra algo que nos permite compreender o mundo à nossa volta com gente de carne e osso, demonstrando, como fez em Myra (2008) “que há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja”…
Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exilio E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade
Meia verdade é como habitar meio quarto Ganhar meio salário Como só ter direito A metade da vida
O demagogo diz da verdade a metade E o resto joga com habilidade Porque pensa que o povo só pensa metade Porque pensa que o povo não percebe nem sabe
A verdade não é uma especialidade Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo É preciso expor Partir do olhar da mão e da razão Partir da limpidez do elementar
Como quem parte do sol do mar do ar Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre - Sob o ausente olhar silente de atenção -
Para construir a festa do terrestre Na nudez de alegria que nos veste.
Sophia de Mello Breyner Andresen | "O nome das coisas", 1977
Muito recentemente evocamos aqui Sophia de Mello Breyner Andresen, a propósito designadamente do Colóquio realizado na Fundação Calouste Gulbenkian por iniciativa da Fundação e do Centro Nacional de Cultura. Assinala-se o centenário da escritora, e os artigos que então publicamos, na sequência aliás de textos já antes divulgados, contêm uma visão pessoal da figura e da obra da escritora. Mais do que isso, constituem de certo modo uma síntese do Colóquio que reuniu para cima de 30 comunicações, inaugurado por Guilherme d´Oliveira Martins.
Precisamente, referimos hoje o vasto programa que ao longo do ano evocará Sophia, em colóquios, exposições, debates e até num concerto evocativo no Teatro Nacional de São Carlos. De tudo isso se irá dando noticia. E mais se evoca o depoimento de Miguel Sousa Tavares sobre Sophia, sua mãe, publicado no Diário de Notícias e que constitui uma impressionante evocação pessoal-familiar.
Mas hoje fazemos referência ao filme-documentário do Manuel Mozos, intitulado precisamente “Sophia na Primeira Pessoa” exibido na Culturgest para estudantes e no Cinema São Jorge para o público em geral. Não vamos fazer crítica cinematográfica, note-se bem, mas sobretudo dar uma opinião sobre a visão do conteúdo respetivo na abordagem da vida, obra e espólio cultural abordado e divulgado.
E nesse aspeto, há que referir a qualidade do filme em si mesmo, e o interesse do debate que se seguiu à exibição. Desde logo, porque deu gosto ver a sala cheia e sentir o interesse do público. E para além disso, há que ressaltar a sequência de depoimentos de Sophia, recolhidos em sucessivas intervenções e entrevistas, filmadas e gravadas ao longo da vida da escritora.
Salientamos que esse conjunto de depoimentos documenta a qualidade, inteligência, perspicácia, cultura e sensibilidade de Sophia, e isto ao longo de dezenas de anos e nas mais variadas circunstâncias.
E deve-se referir então a recuperação dos documentos, sobretudo tendo em vista o interesse e modernidade dessas sucessivas intervenções: todas revelam, da parte de Sophia, atualidade e sentido crítico que abrange um universo da cultura, na época e hoje.
E nesse aspeto, há que elogiar e muito o programa das comemorações do centenário. Envolvem um concerto no Teatro de São Carlos, exposições de fotografias no Centro Cultural de Lagos e no Quartel do Carmo em Lisboa, ciclos de conferências no Porto e novamente em Lisboa: alem da inauguração de um Projeto de Intervenção Artística Sophia/Menez, envolvendo a produção e execução de um monumento designado “Espaço Entre a Palavra e a Cor”, da Galeria Ratton, em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa.
Já fizemos referências ao centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e às celebrações no Centro Nacional de Cultura, onde tiveram lugar sucessivas evocações e análises biográficas e literárias da sua vida e obra.
Nesse contexto, assinala-se agora a edição do livro de Isabel Nery sobre Sophia, que no mês de lançamento (maio de 2019) alcançou duas edições.
A qualidade desse vasto estudo de Isabel Nery cruza a extensa e intensa biografia pessoal e familiar com a obra criacional e com o contexto político e literário, numa perspetiva que, no ponto de vista do teatro e dos teatros, e também das entidades culturais e de quem as presidiu, constitui um notável panorama do contexto da vida e da sociedade portuguesa.
E nesse aspeto há que assinalar a evocação e descrição do Centro Nacional de Cultura a que Sophia presidiu e que mantém uma ligação institucional e cultural, amplamente descrita e documentada, que se prolonga, no livro.
Merecem destaque as referências que são feitas por Guilherme d’Oliveira Martins, tanto à obra de Sophia em si, como às implicações políticas e judiciais que, durante décadas, foram aludidas.
São sucessivas transcrições de poemas que conciliam a extraordinária qualidade literária com a afirmação histórica, politica e ideológica que sempre marcou a vida e obra de Sophia e do marido Francisco de Sousa Tavares. Conciliando o progressismo com uma visão ideológica ligada à modernização da História e dos regimes políticos.
Em todos estes aspetos entronca a ligação de Sophia e de Francisco ao Centro Nacional de Cultura, amplamente documentada neste livro de Isabel Nery, que, além do mais, refere não só o CNC como cita fases e sucessivas direções até à atual. E transcreve intervenções sobre política cultural, designadamente na AR.
E na lista de publicações, surgem referências a traduções de Claudel, de Shakespeare, de Eurípedes, que marcam também a intervenção de Sophia de Mello Breyner Andresen no âmbito do teatro, como aliás referimos nos artigos anteriores sobre Sophia.
(Isabel Nery - “Sophia de Mello Breyner Andresen” ed. A Esfera dos Livros 2019)
No artigo anterior, referimos o Colóquio sobre Sophia, entretanto realizado numa iniciativa conjunta da Fundação Calouste Gulbenkian, onde teve lugar, e do Centro Nacional de Cultura. Trata-se então do II Colóquio Internacional sobre Sophia: e houve ensejo de retomar a referência não só à escritora em si, como a textos apresentados e debatidos no Colóquio anterior que teve lugar tal como este na Gulbenkian.
Em ambos os Colóquios, ouviram-se intervenções de Guilherme d’Oliveira Martins como Presidente das duas entidades (FCG e CNC) e de Maria Andresen Sousa Tavares, bem como de dezenas de oradores, e isto para além dos intervenientes nos debates que se seguiam às intervenções.
Referimos então agora especificamente este II Colóquio Internacional.
As intervenções e os debates, num total de mais de 30 temas, constituíram no seu conjunto uma notabilíssima abordagem da figura e obra de Sophia, mas mais do que isso: propuseram e permitiram uma visão amplamente analisada e debatida de aspetos variados da obra em si, da identidade e personalidade, e na literatura e cultura portuguesa e universal: e com destaque específico para referências a países e/ou culturas como a Grécia, a Espanha, a Inglaterra, a Dinamarca ou o Brasil. E isto, envolvendo também intervenções de entidades e individualidades ligadas a esses países mas também aos EUA, Itália, Alemanha, França.
Cita-se a propósito o início do Prólogo da peça “O Colar”:
“Esta História aconteceu/Num país chamado Itália/Na cidade de Veneza/Que é sobre água construída/E noite e dia se mira/Sobre a água refletida.//Suas ruas são canais/Onde sempre gondoleiros/Vão guiando barcas negras/Em Veneza tudo é belo/Tudo brilha e cintila”...
Essa internacionalização do temário documenta de forma eloquente a própria internacionalização da arte e da literatura criada por Sophia. Aliás, é de assinalar que em 2003 Sophia foi agraciada com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, o que documenta e reforça o prestígio internacional. E isso significa, note-se bem, a profundidade dos valores de cultura inerentes e bem presentes na sua vida e obra.
Num artigo publicado no último número do Jornal de Letras (8 a 21 de maio de 2019) Guilherme d’Oliveira Martins procede a uma análise vasta e detalhada da vida e obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Aí se informa acerca de um conjunto de iniciativas que, ao longo do ano, se irão realizar, em Portugal, Itália, Brasil e Macau.
Celebra-se este ano o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), já devidamente assinalado e objeto de intervenções diversas, designadamente no Colóquio da Fundação Calouste Gulbenkian, inaugurado em 16 de maio por Guilherme d’Oliveira Martins, ao qual faremos referência.
Justifica-se pois esta sucessão de textos que, ao longo do ano, nos propomos efetuar sobre Sophia, tendo em vista a relevância da escritora em si mesma, inclusivé como dramaturga, mas ainda a sua intervenção cultural e cívica, num conjunto de ações e de criações ligadas também ao teatro e designadamente ao Centro Nacional de Cultura.
Daí que se dê o óbvio destaque aos aspetos criacionais da sua personalidade e criatividade, numa abrangência que largamente justifica ou mesmo se impõe nesta série de artigos, mesmo que se liguem mais ao autor-dramaturgo do que aos espaços em que a sua obra se concretizou ou, o caso concreto, certamente ainda mais se concretizará.
E nesse aspeto, que desta vez se liga ainda mais à literatura do que à arquitetura e ao espaço teatral, importa desde já referir as peças de Sophia. Citamos designadamente “O Bojador”, “O Colar”, “O Azeiteiro”, “Filho de Alma e Sangue”, “Não Chores Minha Filha”.
Para além destes títulos, referem-se textos e intervenções criativas e/ou críticas, num conjunto geral de ligações ao teatro e aos Teatros, que muito marcou a vida e obra de Sophia.
E há mais intervenções ligadas ao teatro. Citamos designadamente a recriação poética da “Medeia” de Eurípedes. É de assinalar aliás que essa tradução/adaptação não surge isolada no conjunto da sua obra, trata-se aqui não tanto de uma “tradução” mas sobretudo de uma recriação que se inscreve no conjunto de obras desta autora tão singular e tão coerente na vastidão, qualidade e heterogeneidade de vida e obra.
E mais: ao longo do mês, assinala-se a adaptação do conto de Sophia intitulado “A Menina do Mar” devidamente dramatizado e transformado em espetáculo no Teatro LU.CA – Teatro Luís de Camões, em Lisboa.
Ora bem: já várias vezes referimos aqui este Teatro, que oportunamente valorizou e valoriza uma tradição de salas de espetáculo e muito adequadamente se ajusta à celebração do centenário de Sophia de Mello Breyner Andersen.
E veremos outros aspetos da vida e obra de Sophia.
Realiza-se nos próximos dias 16 e 17 de maio na Fundação Calouste Gulbenkian o II Congresso Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen.
UM EXEMPLO DE CIDADANIA O centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen é especial, muito para além de mera comemoração. O exemplo de cidadania, de talento, de ligação natural entre a ética e estética é fundamental. De facto, estamos perante uma personalidade extraordinária que é lembrada como referência única, como um exemplo que fica, que persiste. Era a “pura liberdade” que lhe importava – e, por isso, temos de lembrar o “espaço de liberdade” que animou com Francisco de Sousa Tavares e foi lugar de debate e de acolhimento de jovens intelectuais e artistas, que tomaram como referência a sua presença, a sua palavra e o seu gesto. “No Centro Nacional de Cultura (CNC) fiz de tudo” – dizia Sophia de Mello Breyner… E nesse tudo, estiveram os cargos estatutários, mas sobretudo tudo o que decorria de uma solidariedade saudável e comprometida. “Discuti, li versos, fiz limpezas quando faltava a mulher-a-dias, organizei festas de Carnaval com rissóis e bebidas, mascarei-me, dancei e – coisa que mais do que detesto – fiz conferências. Não havia dinheiro para nada e era tudo improvisado e cada um fazia o que podia, o que sabia ou o que era preciso. Era um tempo de fervor e de dedicação gratuita. A amizade era concreta. E acima de tudo discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era”… Pode dizer-se que Sophia e Francisco foram, num tempo decisivo, almas de um clube de ideias que soube persistir e fazer da liberdade a sua marca indelével, perante todas as dificuldades. E quando vemos as imagens a preto e branco da saída dos presos políticos de Caxias, pouco depois da revolução, é com muita emoção que presenciamos o entusiasmo e a alegria de Sophia, o zelo profissional e cívico de Francisco, acompanhados de seu filho Miguel, ao lado de Jorge Sampaio, José Manuel Galvão Teles, Francisco Salgado Zenha ou João Bénard da Costa… E Nuno Teotónio Pereira com tantos outros a sair da prisão e a manifestar uma enorme esperança no novo tempo que se iniciava. Ele que animara no CNC tantas reuniões clandestinas que pugnavam pela liberdade, pelo direito à informação e pela autodeterminação dos povos. Naquele momento em que os portões se abriram estava viva a imagem do encontro entre os que tinham lutado pela liberdade, não apenas com palavras vagas, mas com gestos concretos de coragem e determinação. Os que saíam e os que os acolhiam tinham uma causa comum – a liberdade, a democracia e os direitos humanos. Para quem conhece a história do CNC sabe que aqueles abraços, aquela genuína manifestação de solidariedade correspondiam a um trabalho generoso e persistente, conseguido através de um percurso longo e difícil, que Sophia lembrava: “Às vezes a Pide aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico. Em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardina abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido; ‘poker faced’”.
RESISTÊNCIA COMO MODO DE AÇÃO Não por acaso, contamos com muitos dos seus escritos e poemas como referências essenciais da resistência: levantou a sua voz em defesa do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes; mas também contra a injustiça da desclassificação do monumento para Sagres “Mar Novo”, de João Andresen, Barata Feyo e Júlio Resende, que assinalaria a memória das Navegações portuguesas: na vigília do Dia Mundial da Paz de 1969 na igreja de S. Domingos disse com firmeza: “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” – e com que genuína emoção: ouvimos o poema, dedicado a Francisco: “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude / Para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo mas tu não”. Cada palavra desse poema é uma marca firme contra a indiferença e a pusilanimidade, é uma lição cívica e ética. E daí a autoridade plena com que Sophia pôde dizer em Abril: “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. E quando ouvimos as suas palavras na Constituinte sobre a liberdade da cultura, vemos que se mantêm sem ruga nem mácula.
UMA INICIATIVA ABERTA Deste modo, o CNC correspondeu ao apelo de Maria Andresen (do mesmo modo que acolheu o espólio, hoje na Biblioteca Nacional de Portugal) para apoiar a afirmação do legado cultural que Sophia deixou. Não poderia ser de outro modo. Muito mais do que um momento, do que se trata é de dizer que Sophia deve ser lembrada nas diversas facetas em que se singularizou – tendo a sua obra de ser considerada na globalidade, não esquecendo quantos inspirou. Assim, as iniciativas a realizar ou realizadas são múltiplas. E há uma preocupação da apoiar a liberdade e a criatividade. A consulta do sítio centenáriodesophia.com permite compreender a diversidade de temas e de participações, devendo perceber-se que não é exaustivo, já que não pode esquecer-se a multiplicidade de outras iniciativas, que correspondem à adesão espontânea de muitos admiradores da autora de Livro Sexto. Os colóquios de Lisboa na Gulbenkian, do Porto, de Lagos, de Roma, do Rio de Janeiro (sobre Sena e Sophia), de Macau, da Casa Pessoa e da Fundação de Mateus correspondem à reflexão multifacetada sobre a apaixonante obra da autora. O Conto Musical “A Menina do Mar”, do LU.CA Teatro Luís de Camões, com direção musical de Martim Sousa Tavares, traz-nos o famoso conto de Sophia transformado em voz e música e feito espetáculo sobre a amizade entre as coisas da terra e as coisas do mar. O livro Almadilha – Ensaios sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, de Frederico Bertolazzi; a mostra “Olhares Mútuos: Maria Helena Vieira da Silva e Sophia” na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva; o espetáculo “Na Substância do Tempo” – eco da poesia de Sophia no mundo visível da dança de Vasco Wellenkamp e da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo; a Exposição Itinerante “Lugares de Sophia” com fotografias de António Jorge Silva, Duarte Belo e Pedro Tropa; ou o Concerto de 6 de novembro, no Teatro Nacional de S. Carlos com o “Orfeu e Eurídice” de Cristoph W. Gluck são exemplos de um ano pleno de iniciativas, em que há sobretudo uma preocupação de homenagear com a maior dignidade e diversidade alguém a que a cultura portuguesa tanto deve. Afinal, nunca esquecerei o dia em que na atribuição do seu nome à Escola Básica Sophia de Mello Breyner, de Carnaxide, pediu expressamente que os alunos representassem de cor “A Menina do Mar” e, numa tarde fantástica, com centenas de pessoas a aclamá-la, emocionou-se ao ver aqueles meninos e meninas das mais diversas origens geográficas, cumprirem à letra o seu pedido e serem extraordinários atores, sem falhas nem hesitações… E todos entendemos o que significa dizer: “a minha terra é o mar”, como definição da nossa cultura.
Guilherme d'Oliveira Martins
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LEMBRANDO ANNA MASCOLO E A ARTE DE DANÇAR… 2 de abril de 2019
Hoje quero recordar Anna Mascolo e a sua extraordinária influência na Educação Artística em Portugal. Conheci-a bem. Foi, durante toda a vida, uma lutadora. Quem com ela contactou sabe como tinha ideias ambiciosas e arrojadas. Mas nunca era de desistir. Quantas vezes construiu generosos castelos no ar, mas nunca se deixava abater. Tinha a sabedoria necessária para encontrar uma alternativa, que lhe permitisse chegar por outro caminho ao destino que tinha idealizado. Não é possível falar-se no Portugal do último meio século sem contar com os seus projetos, as suas ideias, os seus exemplos e os seus discípulos. Era exigente, era determinada, era rigorosíssima, mas procurava pôr em prática uma visão ampla e generosa, aberta e cosmopolita de Humanidades. E com ela podíamos compreender a essência de ser artista. Arte é fazer como ninguém mais faz. Arte é realizar a beleza de modo irrepetível. Hoje, as neurociências provaram muito do que Anna Mascolo defendeu em termos práticos. No desenvolvimento da infância, as Artes estão em primeiro lugar. Tudo começa no exercício dos sentidos e a capacidade criadora tem a ver com o movimento e com a nossa relação com o corpo. Não há domínio de si mesmo sem recorrer ao valor da Arte. E em homenagem a Anna Mascolo, deixo um poema de Sophia de Mello Breyner e os fragmentos de uma entrevista… Nunca esquecemos que para Sophia dança se deveria escrever com S. Só assim se entenderia o movimento! Só assim se entenderia a singularidade… E assim oiçamos Sophia,
Inventei a dança para me disfarçar. Ébria de solidão eu quis viver. E cobri de gestos a nudez da minha alma Porque eu era semelhante às paisagens esperando E ninguém me podia entender.
Sophia de Mello Breyner Andresen | "Coral", 1950
E ainda a propósito da dança, Sophia disse em entrevista de Maria Armanda Passos:
Maria Armanda Passos - Desde quando este interesse pela dança e como? Desde sempre. A dança é um elemento dionisíaco ligado ao ritmo e à despersonalizacão. (…)
MAP - Chegou a dançar, a aprender bailado? Eu vivia no Porto quando era pequena e não havia nenhuma escola de ballet. Inventava danças sozinha. Anos depois não perdia os bailados que apareciam. Mas era tarde para aprender. Dançava muito sozinha e, quando os meus filhos eram pequenos, dançava para eles.
MAP - Às vezes ainda dança, Sophia? ...Muitas vezes imagino bailados e argumentos para bailados.
E a Eduardo Prado Coelho disse:
«E quando eu era ainda muito pequena, quando estava em Lisboa, logo de manhã ia para o escritório do meu avô - que eram três grandes salas seguidas, cheias de livros, de quadros, de retratos, de mapas e de mil coisas misteriosas - um lugar onde eu entrava em bicos de pés - e o meu avô punha sempre a tocar um disco de Bach - talvez por isso a música de Bach foi sempre a que melhor entendi. E na Granja, à tarde, o José Ribeiro tocava violoncelo, nuns outonos de tardes oblíquas. E quando estava no Porto ia para Matosinhos para casa do Eduardo e do Ernesto Veiga de Oliveira e ouvíamos Das Lied von der Erde do Mahler, que nesse tempo ainda não estava na moda. E em casa do António Calém a música estava sempre no centro de cada encontro».