Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Era muito ténue a madrugada, mal despontava a alba, quando a passarada desatou sinfonias bem sonoras: surpresa anunciando surpresas? Certo é que a canícula seca destes últimos dias não me deixara prever a súbita libertação de águas celestes que, mal os pássaros se calaram, foi abençoado refresco... Só não sei se tantas aves canoras a pressentiram ou, simplesmente avisadas, celebraram, anunciando-a. Esta manhã, a alegria precedeu o nascer do sol. E logo o peso de outro dia quente me reavivou a memória de imagens tremendas, o choro magoado de tanta gente que o incêndio raivoso de Pedrógão Grande privou de entes queridos e de bens estimados pelo valor do trabalho que os criou. Eis que agora apenas o silêncio dos pássaros me habita, e fecho os olhos: não quero ver a explicação que não encontro. Talvez espere que a contemplação do mistério de tudo me volte a reconciliar. Talvez esse fado da meninice que diz: É tão bom ser pequenino / ter pai, ter mãe, ter avós, / ter confiança no destino / e ter quem goste de nós... Se possa cantar assim: É tão bom ser pequenino, / tão fracos, tão pobres, tão sós, / sem sabermos do destino, / querer quem goste de nós! Ninguém sabe como se ressuscita, a fé encontra-se no que devemos esperar.
Aqui há dias, lia no Philosophie Magazine alguns artigos glosando o mote Quel part d´enfance gardons nous? - e encontrei várias citações de autores celebrantes da infância, momento construtor do nosso ser, talvez por ser a idade da esperança, aquela em que um olhar ou um sorriso ainda pode apagar desgosto e tristeza, por vir ao encontro do indestrutível núcleo de qualquer de nós, dessa força vital que é a tal esperança. Recorda-se o sentido evangélico da palavra de Jesus que diz se não fordes como estes pequeninos não entrareis no Reino, ou o ensinamento taoista - que contrariamente ao confucionismo, para o qual a infância é uma situação que deve ser abandonada, por ser o estádio das nossas incapacidades - a considera, não algo para ser deixado para trás, mas um objetivo, um fim a atingir, como nos explica Alexis Lavis, da Universidade de Rouen: Abra-se o livro atribuído a Laozi, o Dao De Jing. Em vários passos, Laozi, "o Velho Mestre", se serve da infância como imagem com valor de modelo. Ali se lê que " o sábio é semelhante ao menino nu. Enquanto os adultos complicam inutilmente a vida, o menino é um símbolo de simplicidade, de despreocupação. Para nos realizarmos, não precisamos de capitalizar saberes nem de entrar no jogo das interações sociais, mas de regressar a essa inocência primeira. Laozi até chega a comparar-se a uma criança de mama. Num trecho espantoso, diz de si mesmo: "ainda mamo na minha mãe"... ...Não se trata, é evidente, de um apelo à regressão, à infantilização absoluta. A "mãe", aqui, remete para o que os taoistas chamam o "Dao", ou Tao, a "Via", que é o fundamento de tudo o que é, o princípio de todo o movimento. O sábio "mama" porque se alimenta nessa fonte da vida - está numa relação de intimidade com o Dao. Em cartas antigas, Princesa de mim, também te falava do Shinto nipónico - essa Via dos Espíritos - tal como te referi o amae, palavra japonesa que resume a doçura do amor, da dependência da mãe, e afinal nos diz essa saudade fundadora da nossa pessoa. Lembro-te ainda duas expressões, uma de Gilles Deleuze, outra de Charles Baudelaire, neste Philosophie Magazine (junho de 2017): Só a infância é capaz de reanimar um adulto como se reanima uma marionete, injectando-lhe conexões vivas... E ...O génio mais não é do que a infância reencontrada à vontade. É, digo eu, essa nossa capacidade de renascer e recriar.
No meu pensarsentir, ser criança é ser ainda capaz de acreditar em que tudo poderá ser melhor, nós e os outros e o universo inteiro, pois que tragédia mesmo é só o inexplicável e há muitas, muitas coisas que só entenderemos quando formos "crescidos". E nenhum de nós sabe quando será nem se nos será então dado o apocalipse. A esperança não é, não pode ser, a pretensão de poder definir e decidir o destino do que se quer que seja, é apenas, autenticamente, a confiança infantil de que o porvir sempre virá por bem. Tal é quase impossivelmente aceitável pela nossa geração, tão convencida ela está de que tudo é controlável, ao ponto de tão facilmente apontar a outros culpas e responsabilidades pelos desastres que nos escapam... Não se prevê, precavê ou investiga, é sempre mais fácil a gente descartar-se.
Dois grandes escritores e pensadores europeus, Stefan Zweig e Georges Bernanos, estiveram exilados no Brasil, onde o segundo, aliás, recebeu a visita do primeiro na sua casa, em Cruz das Almas. Conta Geraldo França de Lima que Bernanos acolheu Zweig com amiga ternura e grande compaixão pelo drama interior que o judeu austríaco atravessava naqueles atribulados anos 40 do século passado. O escritor católico francês admirava nele o espírito europeu, europeísta e pacifista, e ainda a sua marcada defesa dos perseguidos e humilhados. Sentimento com raízes certamente muito profundas no autor do Journal d´un Curé de Campagne, Les Grands Cimetières sous la Lune, ou desse diário que, considero, será a sua mais bela obra: Les Enfants Humiliés. Os humilhados foram também personagens muito afetuosamente queridas por Stefan Zweig, um homem mundano que, todavia, nas suas novelas, se coloca sempre, como que por dever ético, do lado dos humilhados. Jean-Yves Masson, curiosamente, aponta ainda outro aspeto que, no contexto desta carta, gostaria de te mostrar: Um dos textosque mais me tocou foi uma das suas primeiras novelas, O Segredo Ardente. Uma criança é testemunha duma aventura entre a sua mãe e um homem. Mas nada diz, protege sua mãe. Encontramos aí o fascínio de Zweig pelo segredo, pelo que não se deve nem pode dizer. É também um grande texto sobre a infância.
Stefan Zweig suicida-se em Petrópolis (Brasil) no ano de 1942. À pergunta que lhe foi feita por Le Monde, sobre se o escritor austríaco não teria tido forças para recomeçar a sua vida no Brasil, de que tanto gostava,o mesmo professor da Sorbonne, Jean-Yves Masson, responde: ... Esse suicídio é misterioso... porque, afinal ele estava salvo, não estava na miséria. Mas tinha nele mesmo, há muito, um permanente fascínio pelo suicídio. Não como gesto de protesto, mas como gesto de liberdade, um modo de levar em conta o facto de que pertencia a um mundo que já não renasceria. A um mundo perdido, que ele viu acabar-se. Não quis ver o que se seguiria, o renascimento noutro mundo. Seria então um estrangeiro, não por feito do espaço, mas por feito do tempo. O que era verdade.
As pessoas, como as instituições, sejam estas nações, estados ou igrejas, existem enquanto assim podem, mas só são conforme forem capazes de ressurreição que, subjetivamente, é a confiante esperança da infância. Quando, logo após o suicídio de Stefan Zweig, que tantas elegias provocou, Bernanos escreve no brasileiro O Jornal (6 de março de 1942) um texto sobre as Apoogias do suicídio. Diz: Léon Bloy escreveu que devemos a verdade aos mortos. Desse lugar de repouso - locum refrigerii, lucis et pacis - donde doravante lhe é dado observar o mundo que a nossos olhos aparece como a exposição permanente de todas as formas da ignorância ou do ódio, mas de que certamente saberemos um dia que está perdido na imensa piedade de Deus, como um pequeno seixo no mar, o Sr. Stefan Zweig vê a verdade melhor do que nós, e tenho a certeza de que preferiria o silêncio a certos panegíricos sobre o seu acto desesperado... E mais adiante explica: O suicídio do Sr. Stefan Zweig não é, aliás, um drama privado. Mesmo antes e ter sido lançada a última pazada de terra sobre o caixão do célebre escritor, já as agências transmitiam a notícia ao público universal. Milhares e milhares de homens que tinham por mestre o Sr. Zweig, e como tal o honravam, podem ter pensado que esse mestre tinha desesperado da causa dele, e que essa causa estava perdida. A cruel deceção desses homens é um facto ainda muito mais lamentável do que o desaparecimento do Sr. Stefan Zweig, porque a humanidade pode dispensar o Sr. Stefan Zweig ou qualquer escritor, mas não pode ver, sem angústia, reduzir-se o número de homens obscuros, anónimos, que, sem nunca terem conhecido as honras nem os proveitos da glória, se recusam a consentir na injustiça, e vivem do único bem que lhes resta, uma humilde e ardente esperança. Quem toca nesse bem sagrado, quem arrisca a dissipar uma parcela dele, desarma a consciência do mundo e despoja os miseráveis.
Penso e sinto muito, minha Princesa de mim - agora que te escrevo uma carta que não terá continuação tão cedo, já que outros trabalhos proximamente me aguardam - esta minha união a Les Enfants Humiliés do Georges Bernanos, pelo poder da saudade da infância como esperança regeneradora, talvez a força que me faz escrever, bem pior do que ele, como acreditando que, afinal, ainda tudo está ao nosso alcance. Dou-lhe a palavra:
Falar uma linguagem cristã, uma linguagem que toque os corações, ganhe corações - não quero dizer uma linguagem somente ortodoxa, aprovada pelos censores, irrepreensível, mas uma linguagem cristã, Deus meu!... Quantas vezes, desde a vossa infância, ouvistes realmente falar cristão?... ... Não sei para quem escrevo, mas sei porque escrevo. Escrevo para me justificar. - Aos olhos de quem? -- Já vo-lo disse, mas desafio o ridículo de o redizer. Aos olhos da criança que fui. Que ela tenha deixado de me falar, ou não, que importa, não me acomodarei ao seu silêncio, responder-lhe-ei sempre. Quero mesmo ensiná-la a sofrer, não a desviarei do sofrimento, prefiro vê-la revoltada do que desapontada, pois a revolta, o mais das vezes, mais não é do que um passo, enquanto que a deceção já não pertence a este mundo, está cheia e densa como o inferno.
Por muito que me tivesse doído escrever-te tudo isto, sobretudo pelo receio de não me entenderes, dou graças a Deus e fico com saudade maior do menino que fui.
Não conheço Vanda Cabrito, apenas li, num jornal português, que é aluna da Universidade Europeia e que declarou: Senti que o mundo perdeu as suas barreiras e os estrangeiros deixaram de ser estrangeiros e passaram a ser vizinhos. Achei bem dito, e confesso que, pelos tempos que correm, me soube bem ouvir uma jovem afirmá-lo. Sabes como penso que o nosso mundo já terá chegado a um ponto de globalização irreversível, que só nos conduzirá a melhor situação se formos capazes de entender os modos de convivência necessários à paz e ao progresso aberto a todos. Caso contrário, corremos o risco de barbaramente em conjunto cairmos num barranco de cegos.
Vivemos já assustados por vendavais de morte, que nos vão varrendo, desde a Promenade des Anglais, em Nice, às águas do Mediterrâneo e a tantas cidades da Síria e do Iraque. E não só. Há guerra, terrorismo e outros atentados - mais ou menos generalizados, tantas vezes promovidos ou consentidos, até em nome da "higiene" ou por simples preferências egoístas - há um surto de xenofobia que, em certos casos, como nos das potências emergentes, ou saudosas de soberbas antigas, que nada auguram de tranquilizador para um mundo em que todos já somos omnipresentes e ubíquos.
Vem isto a talho de fouce por ter reencontrado hoje - logo depois de ter lido a frase de Vanda Cabrito - uma referência ao "meu" Stefan Zweig. Passo a contar-te. Le Monde des Livres, suplemento semanal, saiu hoje com uma edição especial intitulada Lectures pour temps troublés, que assim justifica:
«Le Monde» solicitou a escritores, artistas e homens de ciência que lhe dissessem que autores os ajudam a «aguentarem-se» num período tantas vezes percebido como sendo difícil de compreender e que é ameaçador. De acordo com eles, que livros poderiam dar um sentido àquilo por que passamos, transmitir-nos força, esperança ou alegria?
Uma das respostas é de Roland Gori, psicanalista e escritor, autor, entre outros livros, de De quoi la psycanalyse est-elle le nom? e de L´Individu ingouvernable. Com Stefan Chedri, fundou o movimento Appel des appels, «coletivo nacional para resistir à destruição voluntária e sistemática de tudo o que tece os laços sociais»... E fala-nos de Stefan Zweig, tão cruelmente lúcido. Recenseia um livro que o autor austríaco publicou em 1936 (repara bem na data), cujo título, na versão francesa de Alzir Hella, é Conscience contre violence. Começo por te traduzir o primeiro parágrafo da resenha de Roland Gori:
No momento em que, no claro-escuro das crises, renascem os monstros dos fanatismos cruéis, dos nacionalismos cínicos, dos recuos identitários friorentos, é preciso reler Zweig! Todo Zweig, o escritor das paixões, o Europeu das Luzes, o cidadão do mundo, o judeu apátrida, o apaixonado pela diversidade brasileira, única "terra de aventura", num mundo caótico que por tempo demasiado alinhou a classificação dos povos pelo seu poderio industrial, financeiro e militar. É preciso reler o seu elogio de um Brasil, um tanto ou quanto imaginário, transformado em modelo de comunidade humana em que a cultura nasce da mistura de raças, da fusão dos particularismos religiosos, étnicos e históricos. É preciso reler Zweig, os seus apelos aos Europeus, a sua «luta pela fraternidade espiritual», a única que poderá «curar» o Velho Continente da «doença mortal» dos nacionalismos nascidos da deslocação dos mundos submetidos aos imperialismos mercantis, à fragmentação dos povos hipnotizados por ideologias fanáticas.
Fala depois do livro, cujo título francês (Conscience contre Violence) traduz parcialmente a segunda parte do título original alemão: Castellio gegen Calvin, oder, Ein Gewissen gegen die Gewalt ("uma consciência contra a violência"). A edição inglesa lê The Right to Heresy - Castellio against Calvin. A portuguesa, da Livraria Civilização, apenas Castélio contra Calvino. Deixo-tos todos, porque todos juntos dizem do que o livro trata: da oposição de um saboiano, Sebastio Castellio (1515-1563), humanista amigo de Erasmo, e que também o foi de Calvino (ambos tinham sido discípulos de Cordier) com quem rompeu, precisamente em razão de pretender, contra o ditador da reforma protestante em Genebra, que a heresia é também um direito, e não é lícito matar um hereje: Queimar um homem não se chama "defender uma doutrina", mas "cometer um homicídio". Contra a violência de João Calvino e Guilherme Farel (padre revolucionário e terrorista) - que, como escreveu Voltaire mais tarde, perpetraram o primeiro assassínio religioso da Reforma - e perante a execução de Michel Servet, além de muitas outras perseguições ideológicas e religiosas, Castellio não se calou. Por isso Zweig lhe chama soldado desconhecido da grande guerra de libertação do género humano.
Eis o que todos nós deveríamos ser. Hoje também, mas num mundo que já não é o de Castellio nem Erasmo, nem sequer o de Stefan Zweig. Este enquadrava, e bem, a figura independente e tolerante do católico Erasmo na Europa dividida pelos movimentos da Reforma e da Contra Reforma - um homem que escreveu em latim, língua comum da cristandade europeia ocidental - como aquele que foi, de facto, de todos os escritores e autores ocidentais, o primeiro europeu consciente, o primeiro "combatente pacifista", o defensor mais eloquente do ideal humanitário, social e espiritual […] Erasmo via na intolerância o mal hereditário da nossa sociedade. Tinha a convicção de que seria possível pôr fim aos conflitos que dividem os homens e os povos, sem violência, por mútuas concessões, porque eles dependem todos do domínio humano; estava persuadido de que quase todas as questões poderiam regular-se por via transacional, se os condutores e excitadores não viessem constantemente deitar azeite ao lume [...] Pôr harmoniosamente de acordo os contrastes do espírito humano - tais foram a missão e o sentido da vida de Erasmo. Possuía, para empregar a expressão de Goethe, que se parecia com ele na igual aversão aos extremos, "uma natureza comunicativa" [in Erasmo de Roterdão, de Zweig, na versão portuguesa de Alice Ogando, Livraria Civilização, Porto, 1950].
Como já algures te disse, Princesa de mim, no seu comovente Die Welt von Gestern - Erinnerungen eines Europäers, mais do que brevemente nomear Erasmo, Zweig quer nele incarnar-se, agora num tempo de entre duas grandes guerras, em que ele mesmo se sente já "um vencido da vida", tal como o humanista de Roterdão, parte inteira de uma elite europeia que, afinal, nada pode fazer. Logo no prefácio desse livro de saudades do mundo de antes de 1914 e de angústias face ao que os anos 30 entretanto tinham trazido, a carregar o horizonte, escreve, a abrir: Nunca atribuí tanta importância à minha pessoaque me sentisse inclinado a contar aos outros a história da minha vida. Muito mais teve de acontecer, infinitamente muito mais do que aquilo que geralmente cabe a uma geração - ocorrências, catástrofes, provações - até eu ganhar coragem de iniciar um livro que tem como personagem principal, ou melhor, como tema central, o meu próprio eu.
Adiante, noutros passos, vai confessando:
A minha atitude natural em todas as situações de perigo foi sempre a de evitá-las e não foi só nessa ocasião que tive de aceitar como justa a acusação de ser indeciso, tão frequentemente feita também, noutro século, ao meu venerado mestre Erasmo de Roterdão...
...Nas minhas novelas é sempre quem sucumbe ao destino que me fascina; nas biografias, é a figura de quem tem razão, não no espaço real do êxito, mas única e exclusivamente num sentido moral: Erasmo e não Lutero, Maria Stuart e não Isabel, Castellio e não Calvino [...] eu andava a ler as provas do meu livro sobre Erasmo, onde tentava apresentar um retrato espiritual do humanista que, tendo embora compreendido mais claramente o absurdo do seu tempo do que os profissionais que querem mudar o mundo, por uma fatalidade trágica, não fora capaz de, com todo o seu bom senso, lhe barrar o caminho. Quando tivesse concluído essa apresentação encapotada da minha própria pessoa... [tradução de Gabriela Fragoso, em O Mundo de Ontem - recordações de um europeu, Assírio e Alvim, Lisboa, 2005].
Falo-te destes exemplos de outros tempos e circunstâncias, Princesa, lembrado sobretudo das barbaridades cometidas durante e depois das guerras de Espanha e 2ª Mundial. E de muitas outras. Mas quero sobretudo chamar-te a atenção para o esforço doloroso da consciência moral: refletirmos é pensarmos sobre o real e o possível, decidirmos é pensarsentir e escolher entre desviar caminho ou agir como o samaritano.
Em próxima carta voltarei, com a ajuda de pensadores nossos contemporâneos, ao tema da expressão, tão acertada e profética, da Vanda Cabrito: já não são estrangeiros, são nossos vizinhos. Mas, nesta ainda, deixo-te um pequeno texto de Véronique Nahoum-Grappe, antropóloga francesa, filha do célebre Edgar Morin (judeu sefardita, cujo nome de nascença era Edgar Nahoum) discípula de Emmanuel Le Roy Ladurie, celebrado professor de História, e da antropóloga Françoise Héritier, que sucedeu a Claude Lévy-Strauss no Collège de France, onde hoje também já é professora emérita:
Quando circunscrevemos o tema dos refugiados à crise atual, tornando-o em sintoma de doença, esquecemos que a história humana é feita de tais migrações. Os Estados Unidos são um país de imigração fundado sobre o massacre de populações indígenas. A Europa invadiu todos os continentes, cuja demografia e economia mudou com o trato industrial das populações africanas. Como podemos nós hoje dizer aos migrantes que atravessam mares e fronteiras para escapar a condições de vida insustentáveis: "voltem para casa"? Distinguir a boa migração política da má migração económica não faz sentido. Migrar, a partir de países como a Síria, é antes do mais salvar a pele. Os franceses mais hostis aos refugiados fugiriam do mesmo modo, se estivessem na miséria e debaixo de bombas. O medo e a luta pela sobrevivência são forças poderosas, que põem os humanos em pé de igualdade.
Descobri, num livro da coleção Nouveaux Regards (Le Magazine Littéraire) dedicado a Stefan Zweig, trechos de uma conferência que o escritor austríaco proferira em Florença, em 1932, sobre O Pensamento Europeu no seu Desenvolvimento Histórico. Ao que parece, esses textos constam do livrinho que, sob a orientação do seu antigo reitor, Gabriel Fagnière, o Colégio da Europa, em Bruges, editara em 1993, com o título Stefan Zweig, ou espérer l´Europe à en mourir. Achei graça ao facto de, já lá vão quase oitenta e cinco anos, se ter refletido e debatido um tema que insistentemente me persegue, como sabes... Aliás, ele está subjacente a passos da última carta que te enviei. Leio e traduzo Stefan Zweig: A História, esse oceano de acontecimentos aparentemente sem maré, obedece na realidade a uma lei rítmica imutável, a uma espécie de jogo de ondas que divide as suas épocas em fluxos e refluxos, em avanços e recuos; como poderia ser de outro modo se ela é feita pelos homens e as leis psíquicas apenas refletem as do indivíduo? Em cada um de nós existe esta dualidade; o processo a que chamamos vida mais não é, afinal, do que uma tensão de polo a polo. Seja qual for o nome que dermos a essas duas forças opostas, que uma seja a centrífuga e a outra a centrípeta, ou, na linguagem da nova psicologia, que elas sejam a introvertida e a extrovertida, ou, na da moral, a egoísta e a altruísta, sempre e em toda a parte é sob tal forma que se exprime a dupla tendência que está em cada um de nós: por um lado, isolar-me do mundo enquanto eu; pelo outro, ligar o meu eu ao mundo. Nós queremos conservar a nossa individualidade, e mesmo reforça-la, mas somos simultaneamente impelidos a dissolve-la na comunidade. Eis como as nações, esses indivíduos coletivos, estão também sujeitas a essa tendência alternativa, consistindo em ora afirmar a sua personalidade intelectual e moral, ora em procurar comunidades supranacionais mais altas, que as fecundarão, mas às quais deverão abandonar uma parte do seu fundo e da sua individualidade. Ao longo da história, estas duas tendências de atração e repulsão, de paz e de guerra, a concêntrica e a expansiva, opõem-se incessantemente. Ora se formam grandes edifícios estatais e religiosos, ora se dissolvem; períodos de hostilidade sucedem a períodos de reconciliação e amizade; mas, no fundo, a humanidade, considerada de um ponto de vista cada vez mais elevado, tende constantemente para uniões cada vez mais altas e fecundas. Em todo este texto vibra uma corda emotiva, a de um homem que, um dia, já não poderá ser austríaco na sua terra, por ser judeu, e, depois, no exílio, quando se naturaliza britânico, também perceberá que facilmente o classificam com desconfiança, por ser austríaco, pertencer à esfera inimiga germânica. Em 1932, parece que adivinha. E agarra-se então a uma certa ideia de pertença, quase poderá dizer, parafraseando Pessoa, que "a minha pátria é a cultura europeia": Quero tentar, deitando um olhar sobre o desenvolvimento intelectual da Europa, dar-vos uma curta história desse eterno desejo de unidade de sentimento, de vontade, de pensamentos e de vida, que em dois mil anos criou o magnífico edifício comum que briosamente chamamos cultura europeia. E vai então buscar à Bíblia o conto que, a seus olhos, melhor diz como, afinal, esse desejo de unidade é um desafio gigantesco: a torre de Babel. Para Zweig, o projeto da sua edificação deve-se ao facto de que homens - ou a humanidade - viam um céu acima deles e, como eram homens, já sentiam o desejo do sobre humanoe do inacessível, pelo que pensaram: "Construamos uma cidade e uma torre cujo cimo atinja o céu, a fim de ganharmos nome para a eternidade"... ... Mas Deus viu do alto dos céus - assim conta a Bíblia - esse esforço ambicioso, e deu-se conta do crescimento grandioso da obra. Reconheceu o poder do espírito que ele próprio tinha posto nos homens e a força imensa que existe, irresistível, nessa humanidade enquanto ela se mantiver unida. E para que a humanidade não se enchesse de orgulho e o atingisse, a Ele, o Criador na sua solitária altura, decidiu impedir a obra e disse: "Perturbemo-los, para que nenhum compreenda a linguagem do outro..."
O recurso a esta parábola é estimulante de reflexões que farei adiante. Mas, antes disso, Princesa, deixa-me dizer-te que a visão do "desenvolvimento intelectual da Europa", que Zweig nos propõe, traz a marca do seu tempo, da sua classe social, do seu elitismo. Quando, por exemplo, ele escreve, sobre o humanismo renascentista europeu: Na era do humanismo, é completamente indiferente estudar-se em Bolonha, Praga, Oxford ou Paris. Os livros são em latim, os professores falam latim. O mesmo tipo de discurso, de pensamento e de conversa é comum a todos os intelectuais da Europa. Erasmo de Roterdão, Giordano Bruno, Espinoza, Bacon, Leibniz, Descartes, todos se sentem cidadãos da mesma república: a dos sábios. A Europa sente de novo que trabalha para uma obra comum, para um novo futuro da civilização ocidental. É também interessante observar como o gosto clássico, e o sentimento de estar acima do vulgo, o leva, por exemplo, a afirmar, de modo encomiástico e parcial: a verdadeira unidade política e intelectual da Europa, a história universal, só começa com Roma, com o Império romano. Aí, pela primeira vez, surge, de uma cidade, de uma língua, de uma lei, a vontade resoluta de dominar e administrar todos os povos, todas as nações do mundo de então, conforme a um só esquema, genialmente elaborado - domínio conseguido não só, como até então, pela força das armas, mas baseado num princípio espiritual, domínio não como fim em si, mas como organização inteligente do mundo. Eis como, em toda a parte, se insinua uma qualquer tentação totalitária. Stefan Zweig, judeu e pacifista, fugido ao nazismo, consentia que o seu elitismo sonhasse com uma "organização inteligente do mundo", pelo modelo europeu, ça va sans dire. E, assim, defendia uns Estados Unidos da Europa, na convicção de que uma "União Europeia" seria a pátria da cultura por excelência, a nação superior. Ter-lhe-á escapado o risco da construção de uma superburocracia, controlada por interesses poderosos, ignorante de outras variedades de pessoas e soluções, legislando, regulamentando e governando quase tudo de acordo com regras concebidas por uns poucos... Mas devo ressalvar, com aplauso, que foi ele que disse: Mesmo a mais pura verdade, quando é imposta pela violência, se torna num pecado contra o espírito. O pior é que, pegando no exemplo do Império romano, o domínio do tal "princípio espiritual" se impõe na sequência de uma autoridade assegurada pela força das armas e da ocupação. Sobram casos históricos para o ilustrar e, se hoje tanto se tem falado de choque de civilizações, é porque acreditamos pouco no poder de convicção universal de uma ideia, mas, com pessimismo, vemos que mais facilmente se vai tomando partido por esta ou aquela, pretendendo, aliás, que, sendo superior, a nossa se imponha às outras.
Assim estamos, Princesa, de volta à torre de Babel. Prefiro pensar comigo que o que Deus Nosso Senhor quis castigar não foi a natural aspiração dos homens a chegar até Ele - Deus não tem medo - mas algo que eu chamaria "o orgulho do princípio de Peter" ou - para não entrarmos por análises da incompetência - a soberba como desafio da sabedoria, e, mais simplesmente, o orgulho de mandar. Na tradição cristã, a narrativa da torre de Babel é, depois da queda e expulsão de Adão e Eva, e da história de Abel e Caim, ou da proliferação do pecado que o dilúvio fustiga universalmente, uma ilustração dos conceitos de transgressão e castigo. Todavia, ela é posterior às outras, que são antediluvianas. Como se quisesse relembrar a permanência teimosa do pecado, mesmo na humanidade nova, que as águas do dilúvio purificaram. Para melhor entender Babel (se assim me posso exprimir), parece-me importante considerar o capítulo 9º do Génese, em que Deus reúne Noé e os seus filhos, para lhes repetir o conselho dado a Adão: Sede fecundos, multiplicai-vos, pululai sobre a terra e dominai-a. E com eles firmará uma aliança, cujo sinal será o arco do próprio Deus, posto nas nuvens. O Criador está acima das nuvens do céu, transcendente, mas presente e atento, amigo da humanidade nova. E esta, em paz com Deus, fala toda a mesma língua. No capítulo 10º, conta-se que Kush, filho de Cham, filho de Noé, gerou Nemrod, que foi o primeiro potentado sobre a terra, sendo a cidade de Babel um dos pilares do seu império. Nemrod foi lendário caçador e guerreiro, conquistador de Babilónia, cidade em cuja arquitetura - recorda, Princesa, os zigurates, torres que subiam alto, ladeadas de rampas de acesso ao templo ou observatório astronómico lá no topo - se inspiraram as representações cristãs de Babel, nome que significa Porta dos Deuses, mas que se pode aproximar do verbo hebraico que diz misturar, perturbar. Creio que Santo Agostinho, na Cidade de Deus, a opõe, cidade da perturbação, a Jerusalém, cidade da paz. [Lembro-me bem do quadro de Pieter Brueghel, o Velho, que hoje está no Kunsthistorisches, em Viena]
O que me seduz, em tanta divagação, é precisamente o mistério permanente dessa alternativa entre a unidade e a diversidade, entre a ditadura e a anarquia, entre a imposição da subserviência e a liberdade da convivência. O problema da concórdia. Será que a solução se encontra no respeito da diferença? Facto é andarmos muito desentendidos, chego a perguntar-me se por Deus assim nos ter feito à nascença, ou por tal e qual nos ter querido pôr mais tarde, como conta a Bíblia. E, pelos vistos, só com alguém a mandar em todos entramos na ordem (na ordem de quem manda e pode, claro), e mesmo para tanto será preciso alguém poder mandar, geralmente depois de andar à pancada aos opositores. Praticamente, enquanto não nos passar o sentimento de superioridade e, sobretudo, de detentores exclusivos ou privilegiados da "verdade", não estaremos aptos a abrir espaços de convivência e concórdia. Curiosamente, o cristianismo alarga à humanidade inteira a boa nova da salvação de todos, pela graça de Deus em Jesus Cristo, chamando-nos ao cumprimento do mandamento novo: amai-vos uns aos outros. E a tradição cristã encontrará no Pentecostes a resposta redentora da maldição de Babel: Todos ficaram então cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito os fazia exprimirem-se... ... a multidão reuniu-se e ficou admirada: cada um os ouvia falar no seu próprio idioma... ... ouvimo-los anunciar, na nossa língua, as maravilhas de Deus! Sabemos, Princesa, que nem sempre a Igreja considerou adequadamente (e esta é fórmula eufemística) a diversidade religiosa e cultural como propiciadora de outros modos de escutar a vocação de Quem, esse mistério de sermos, antes e depois de nós. O Papa Francisco, pela naturalidade com que pisa o chão de todos ao encontro deles, traz luz e alegria à esperança de que será possível, num mundo ainda tão cheio de divisões e ameaças, irmos construindo a casa comum, onde a diferença de línguas, não lance a confusão, mas enriqueça a concórdia.
Um estudo recente, feito em França pela Comissão Nacional Consultiva dos Direitos do Homem, mostra que, hoje em dia, 90% dos franceses pensa que todas as raças humanas valem o mesmo, ou que não existem enquanto diferenças. 71% defendem um combate contra o racismo, 68% contra o antissemitismo, 63% contra os preconceitos relativos a muçulmanos. No dia em que te escrevo esta carta, os eleitores londrinos vão depositando nas urnas os seus votos que, provavelmente levarão a Lord Mayor da capital britânica um muçulmano, cidadão do Reino Unido, mas de família oriunda do Paquistão, chamado Sadiq Khan. O pai dele é motorista de autocarro, mas parece que tal não o impedirá de ganhar as eleições ao candidato conservador, eurocético e ecologista, Zac Goldsmith, filho do multimilionário judeu, franco-britânico, Jimmy Goldsmith. Sinais dos tempos... Seja quem for o vencedor, terá de ser aceite por todos, por ser legítimo e legal Lord Mayor de Londres. Seja qual for a sua etnia, religião, origem social ou ideológica, terá simplesmente de exercer o seu mandato de acordo com o que a lei manda e lhe permite. Nenhum londrino terá de o considerar como judeu ou muçulmano, homem de cor ou branco, rico ou remediado, adepto do Arsenal ou do Chelsea, com raízes na imigração recente ou saxão de gema. Ele será, simplesmente, aquele que foi escolhido pela maioria dos oito milhões de londrinos (dos quais, dois milhões são muçulmanos) para seu Lord Mayor. A Europa hodierna, mais circunstanciadamente a União Europeia, vê-se ao espelho e surpreende-se mais como construção comercial, económica e financeira, interveniente e reguladora, do que como projeto humanista de uma sociedade transnacional fraterna e justa. E repara em como assim se vem tornando materialista, com diminutiva consciência moral e pouca respiração mística. Assusta-se com os estranhos povos e culturas que a habitam, pois que, tendo vindo a perder a sua alma, carece de fortaleza de cultura para conviver com a diferença. É sinal dos tempos a atribuição, hoje, 6 de Maio de 2016, do prémio Carlos Magno, ao papa Francisco: abafada em preconceito, egoísmo e falta de visão, a Europa oficial vira-se para um líder que apela à generosidade do reconhecimento da humanidade comum a todos, à fé que não exclui os outros e até abraça a multiculturalidade, e não se furta a acolher os desvalidos. A Europa precisa de abrir janelas, e deixar entrar ar fresco. E todos precisamos da alegria do amor e de com ela celebrarmos a graça da vida em comum.