Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Em cima: Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira. Em baixo: António Pedro, Alexandre O’Neill e João Moniz Pereira
Na vida de Alexandre O’Neill há uma fotografia tirada em maio de 1948 no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, que simboliza um tempo em que coincidiam fatores contraditórios, mas plenos de sentido. A ditadura persistia, apesar dos ventos que sopravam na Europa e no mundo. Mário Cesariny, José-Augusto França, Marcelino Vespeira, António Pedro, O’Neill e João Moniz Pereira constituem o grupo. Alexandre faz-se representar provocatoriamente com um osso a sair da manga direita do casaco, como marca de controvérsia. O momento é, no entanto, fugaz. Maurice Nadeau escrevera a Histoire du Surrealisme no fim da Guerra. O’Neill, Cesariny, António Domingues e Moniz Pereira formaram, entusiasmados, o Grupo Surrealista de Lisboa, mais de vinte anos depois do manifesto de André Breton de 1924. Havia que aproveitar a oportunidade para trilhar caminhos novos. A Ampola Miraculosa, um romance-colagem, marca o contributo de Alexandre O’Neill para o movimento, preocupado com a reconstrução das palavras, enquanto Cesariny tratava do domínio das representações. Mas Cesariny e Moniz Pereira abandonam o grupo e o poeta de No Reino da Dinamarca encontra uma vocação própria (“Impossível tomar o íngreme caminho / da aventura mental”). Continuará, no entanto, atento a tudo de essencial que se fazia e escrevia.
A sua fábrica poética apresenta-se como inesgotável. Cada neologismo representa um modo de fazer da ironia uma denúncia da vidinha pobre e desprezível. “Às duas por três nascemos, / às duas por três morremos. / E a vida? Não a vivemos” (Poemas com endereço, 1962). Não se tratava apenas de ver a superfície, havia que ir ao fundo. “Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós.” (Feira Cabisbaixa, 1965). E por mais que se cite, ficamos sempre a pensar. É uma marca indelével. Como não procurar os símbolos muito nossos? O exemplo de Belarmino tornava-se um modo de nos entendermos melhor – “pugilista e poeta, campeões com jeito / e amadores da má vida”. Estava-se, afinal, num país relativo: “País purista a prosear bonito, / a versejar tão chique e tão púdico, / enquanto a língua portuguesa se vai rindo, / galhofeira, comigo. (…) / País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano. (…) / A santa Paciência, país, a tua padroeira, / já perde a paciência à nossa cabeceira” (id.). Portugal está sempre presente na sua reflexão, sem ilusões e sedento de ironia. Vinham à lembrança os encontros com Pascoaes no Café Central de Amarante. Longe das influências que lhe quiseram apontar, o poeta sempre deixou dito que mais do que Nicolau Tolentino ou do que o Abade de Jazente (hipotéticas sombras) havia que cuidar da realidade concreta e das suas particularidades. “Talento? / Tolentino? / Tolos.” O excesso e o divertimento eram necessários. E António Carlos Cortês tem razão quando salienta “que a originalidade de O’Neill passa pela pesquisa sobre um idioma que o poeta desconstrói e redescobre” – do amor ao humor, na melhor tradição do nosso lirismo. “Quanto a esse Tolentino, esse faceto, / devo dizer que nada lhe roubei / mas que podia ser seu neto” (id). Afinal, ao pesquisar a língua, do que se tratou sempre foi de tentar descobrir quem somos.
Recordo o pintor e crítico de arte Fernando de Azevedo, nascido no ano de 1923, em Vila Nova de Gaia, cofundador, com Marcelino Vespeira, António Domingues, João Moniz Pereira, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O’Neill e José-Augusto França, do Grupo Surrealista de Lisboa (1947-49).
O «SOBREREALISMO» EM AÇÃO
Neste ano de vários centenários, que nos leva a concluir como foi fértil 1923 numa antecipação ao “baby boom” do fim da outra grande guerra que sucedeu ao mal terminado conflito de 1914-18, referimos alguém que merece lembrança como artista que soube refletir sobre as grandes tendências do seu tempo, marcando pela sua presença e intervenção. A afirmação do Grupo Surrealista de Lisboa marcou a transição do pensamento social e político dos anos trinta e quarenta do século XX para a procura de novos caminhos no pós-guerra em que a liberdade e a valorização existencial abriram perspetivas inovadoras de diversidade e sentido crítico. O grupo assumiu o inconformismo sistemático, começando por romper com Cândido Costa Pinto, que tinha tido um papel simbólico importante no contacto com o patriarca do surrealismo André Breton. E a razão da rutura foi a participação daquele numa mostra organizada pelo SNI, organismo do Estado Novo, “quartel-general da demagogia a cores”. Como dizia a nota de rutura: “O super-realismo tem de seguir a linha da não transigência com as posições equívocas”.
A primeira iniciativa do grupo foi a realização de uma exposição, em 1949, no ateliê da travessa da Trindade, com a participação de António Pedro, onde se incluíam dois Cadavre Exquis, um de Vespeira e Fernando Azevedo e outro, de grandes dimensões, de António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Vespeira e Moniz Pereira. Fernando Azevedo teve, assim, uma participação muito ativa desde o início. A exposição seria, aliás, motivo de grande agitação e de ameaças policiais, até porque a primeira proposta de capa do catálogo inseria-se na campanha presidencial de Norton de Matos. “Depois de 22 anos de medo ainda seremos capazes de um ato de Liberdade – é absolutamente indispensável votar contra o Fascismo”. A censura não poderia, porém, autorizar esse texto e a capa seria substituída à última da hora por outra de cor branca riscada à mão por dois traços de lápis azul. Fernando Azevedo era um dos participantes mais ativos. O pintor tinha-se formado na Escola de Artes Decorativas António Arroio, inscrevendo-se depois na Escola de Belas Artes de Lisboa, que acabaria por abandonar, recusando as sombras do academismo. Começou por pintar dentro das orientações do Surrealismo, no entanto o seu percurso caracterizou-se pela evolução para o Abstracionismo. Tinha exposto pela primeira vez em 1943, com Vespeira e Júlio Pomar, acompanhando o início do movimento neorrealista em 1945-46, mas logo no ano seguinte foi cofundador do referido Grupo Surrealista (com objetivos demarcados dos do neorrealismo). Depois da exposição de 1949, que seria a única exposição do grupo, os seus membros consideraram não ter condições para continuar. Em 1952, participa na exposição realizada na Casa Jalco, em Lisboa, dedicada ao precursor do surrealismo em Portugal António Pedro - «Uma exposição de óleo, fotografia, guache, desenho, ocultação, colagem, linóleo, constituída por três «Primeiras exposições Individuais» de Fernando de Azevedo, Fernando de Lemos e Vespeira. No projeto “Unicórnio…, Pentacórnio, de 1951 a 1956, Azevedo é, com Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Eduardo Lourenço e o organizador José-Augusto França, totalista, ao participar em todos os cinco números, com um texto exemplar sobre o Surrealismo no Tricórnio.
TOTALIDADE E AUTENTICIDADE
O Surrealismo proclamava, pela pena de Fernando de Azevedo, a procura da totalidade e autenticidade do ser, através da entrega aos modos de erupção do inconsciente: o sonho, a trouvaille, a alucinação, a associação livre, a loucura, a magia, a alquimia, a mediunidade, o mundo infantil e o mundo da imaginação primitiva, mítica, artística, sonâmbula e automática”. Deste modo, o pintor assumiu uma criação pictórica de importância notável (“ocultações”) e uma frenética e persistente reflexão, em ligação com a participação em inúmeras exposições coletivas, tendo recebido um 1º Prémio de Pintura na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, em 1961. Desde a 1947 desenvolve atividade não apenas como artista, mas também como crítico (no “Mundo Literário” e em “Horizonte”); publicando, ao longo da sua vida, textos na imprensa, em catálogos, livros e revistas da especialidade, com destaque para na Revista “Colóquio-Artes” (editada pela Fundação Calouste Gulbenkian entre 1971 e 1996), da qual foi Consultor Artístico, e de facto grande impulsionador ao lado do seu amigo José-Augusto França e com Rui Mário Gonçalves. “Sabe hoje o pintor que a realidade exterior e a realidade interior têm dois perfis dados pela mesma linha comum” – afirmou o artista logo no início dos anos cinquenta, definindo com clareza os dois lados em que se assumia em si a vocação de cultor do “desejo partilhado e inadiável de liberdade”. E é esta coerência irrepreensível que encontramos no seu percurso de intelectual comprometido. Nessa missão de intérprete da arte como pensamento inconformista, ocupou sucessivamente os cargos de Assessor da Direção, Diretor-Adjunto (1989-92) e Diretor (1992-94) do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. E ainda exerceu a presidência da Direção da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses entre 1972 e 1974. Foi vice-presidente e presidente da Secção Portuguesa da AICA (1977-1979 e 1987-1994). Foi presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes entre 1979 e 2002.
Leonor Nazaré tem razão ao afirmar que Fernando de Azevedo foi figura central do surrealismo português “tendo empregado o seu entusiasmo e a sua criatividade artística na ação cívica e no preenchimento desse programa que se queria liberto de constrangimentos estéticos referenciais e políticos – em dissidência com os neorrealistas, com quem o grupo inicia o percurso artístico, mas de quem depois se separa”. Afinal, o artista soube sempre a importância de manter uma tribuna que era simultaneamente um modo de pôr em diálogo a receção e a criação. “A escrita abre um espaço próprio ao pensamento sobre as obras e os artistas (como insiste Leonor Nazaré), e esse espaço aberto lhe assegurava conceitos, razões, poesia, intuição e verdadeira relação com a arte, do ponto de vista da receção que quis manter ativo a par do ponto de vista da criação”. Arte e compromisso são as duas faces do pintor e do ensaísta, em busca de um caminho em que coubesse a medida do homem e não a sua imitação…
Celebram-se os cem anos de um dos principais homens de cultura portugueses do século XX.
Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu a 9 de agosto de 1923, em Lisboa. Foi poeta, pintor, tradutor e considerado um dos grandes Mestres do Surrealismo Português.
Frequentou a Escola António Arroio (1936-1943) onde conheceu António Domingues, Cruzeiro Seixas, Fernando de Azevedo, Fernando José Francisco, José Leonel Martins, Júlio Pomar, Pedro Oom e Marcelino Vespeira. Na companhia destes jovens artistas, que animaram entre nós o movimento surrealista, reuniu-se em tertúlia de características Dadá no Café Herminius, em Lisboa.
Em 1947, viajou até à capital francesa que lhe permitiu um encontro com os membros do grupo surrealista francês, nomeadamente, André Breton, Victor Brauner e Henri Pastoureau. Ainda nesse ano, integrou o chamado Grupo Surrealista de Lisboa com Alexandre O’Neill, António Domingues, António Pedro, Fernando de Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto França e Marcelino Vespeira, cujo objetivo era protestar contra o regime político que vigorava em Portugal e contra as poéticas dominantes da época. Após divergências com o Grupo Surrealista de Lisboa afastou-se e criou o grupo dissidente Os Surrealistas constituído por Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria, Carlos Eurico da Costa, Fernando Alves dos Santos, Fernando José Francisco e Henrique Risques Pereira. O grupo organizou duas exposições coletivas em Lisboa, na Sala de Projeções da Pathé-Baby (1949) e na Livraria A Bibliófila (1950). Mário Cesariny destacou-se no Surrealismo plástico pelo seu pioneirismo na introdução de novas técnicas, exploração de materiais e pela impregnação de humor, ironia, crítica, irreverência e drama. Apesar do afastamento dos grupos surrealistas, Mário Cesariny continuou a desenvolver um percurso brilhante, adotando uma postura de impulsionador e promotor de diversas exposições em Portugal e no estrangeiro, estabelecendo contactos internacionais, nomeadamente com o grupo Phases. O seu percurso individual e coletivo foi pautado por diversas exposições, salientando-se a organização das exposições Surrealismo e Pintura Fantástica (Lisboa, 1984) e Primeira Exposição do Surrealismo ou Não (Galeria S. Mamede – Lisboa 1994).
Publicou diversos títulos que o distinguiram como detentor de uma das obras literárias mais ricas e carregadas de complexidade do nosso tempo. Da sua extensa obra literária destacam-se: Corpo Visível (1950); Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952); Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953); Manual de Prestidigitação (1956); Pena Capital (1957); Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação Pelo Autor (1958); Antologia do Cadáver-Esquisito (1961); Antologia Surreal/Abjecion(ismo) (1963); A Intervenção Surrealista (1966); Titânia e a Cidade Queimada (1977).
Foi Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e foi distinguido com o Grande Prémio EDP (2002), com o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (APE)/Caixa Geral de Depósitos (CGD) e condecorado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. A sua obra e vida foram registadas nos documentários Autografia de Miguel Gonçalves Mendes (2004) e Ama como a estradacomeça, com guião de Perfecto E. Cuadrado (2002).
O artista e poeta proporcionou, à Fundação Cupertino de Miranda, Vila Nova de Famalicão, a incorporação por compra, doação e legado de uma grande parte da sua biblioteca e acervo artístico e documental. É com o intuito de lembrar e homenagear este nome da cultura portuguesa do século XX que, são realizados anualmente, no aniversário da sua morte, os Encontros Mário Cesariny.
Mário Cesariny de Vasconcelos faleceu a 26 de novembro de 2006, em Lisboa.
O Centro Nacional de Cultura homenageia a sua memória.
Agradecemos a colaboração da Fundação Cupertino Miranda.
O final da Segunda Grande Guerra, em 1945, trouxera à oposição política portuguesa uma rara oportunidade de intervenção. O MUD, significou uma espécie de oposição autorizada que dominava Exposições Gerais de Artes Plásticas (EGAP). Por isso, nesses anos, assiste-se a uma tentativa esforçada das artes plásticas em progredir e abraçar a vanguarda - assim poderá modificar a sociedade. As EGAP foram realizadas anualmente entre 1946 e 1956.
Nas primeiras observava-se uma clara potencialidade neo-realista, que aclamava Portinari, Orozco, Rivera e Siqueiros e reclamava pela transformação social. Este realismo social foi cultivado, com grande intensidade por Marcelino Vespeira ou por Júlio Pomar. Rapidamente, porém, a maioria dos melhores neo-realistas evoluiu noutros sentidos estético-formais.
O surrealismo era, porém, a corrente que apresentava no final de 40, a poética de libertação mais sedutora.
O Grupo Surrealista de Lisboa, nascido em novembro de 1947, era constituído por António Pedro, Mário Cesariny, Fernando Azevedo, Alexandre O'Neil, Moniz Pereira, António Domingues, Marcelino Vespeira e José-Augusto França - influenciado pelo novo impulso parisiense da Exposição Internacional do Surrealismo.
Divergências internas levariam à cisão do movimento em dois grupos, em 1949, com duas exposições rivais. António Pedro e Mário Cesariny formavam um grupo de pendor mais poético-literário- 'Os Surrealistas'. O contexto libertador do inconsciente seduziria outros jovens criadores como António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, Risques Pereira e Alves dos Santos - que formavam outro grupo. Ambos atualizavam-se numa infinita criatividade espiritual.
Em meados dos anos 50, surgia o debate sobre a pintura abstrata, dando continuidade às iniciativas da década de 40, protagonizadas por Fernando Lanhas e Nadir Afonso, que souberam contrariar a tendência figurativa da pintura portuguesa, realizando abstrações de carácter geométrico.
Em 1952, com a abertura da Galeria de Março, pela mão de José-Augusto França, a pintura abstrata parisiense dos 'Salons de Reálité Nouvelles' fazia a sua apresentação em Lisboa, influenciando artistas como Joaquim Rodrigo, Vespeira, D'Assumpção, Fernando Azevedo. Nascia um novo entusiasmo em torno da abstração paralelamente a uma neo-figuração de raiz lírica com João Hogan, Júlio Resende, Sá Nogueira ou Nikias Skapinakis e à obra dos artistas que constituíram o grupo KWY. (1958-64)
No plano da escultura temos a existência de uma linha oficial liderada pela estatuária neoclássica de Francisco Franco e Leopoldo de Almeida; registando um maior arrojo formal com Ernesto Canto da Maia.
No final dos anos 40, Arlindo Rocha, Jorge Vieira, Fernando Lanhas deram um sentido mais abstrato e formalista à escultura portuguesa. Jorge Vieira (autor do Monumento ao Prisioneiro Político Desconhecido em 1953) desenvolveu temáticas organicistas dentro de uma envolvência abstrata e surreal.
Há no surrealismo nomes no feminino que merecem referência. Exceções à regra estabelecida pelo cânone oficial masculino sempre existiram, como Sonia Delauney, Lyubov Popova, Aleksandra Ekster, Natalia Goncharova, Marianne Brandt, o mesmo sucedendo no movimento surrealista com Méret Oppenheim, Frida Kahlo, Leonora Carrington, Louise Bouirgeois e Dorothea Tanning. Mesmo se consagradas eram secundarizadas, se não mesmo omitidas, num mundo gerido esmagadoramente por homens. Apesar de mulheres como Elena Diakonova, conhecida por Gala, ser acusada de controlar a vida (amorosa e financeira) de Dalí, Peggy Guggenheim, norte-americana colecionadora, galerista e negociante de arte moderna ser abastada em homens, dinheiro e poder, e Gertrude Stein ser influente na vida artística de Paris.
Foi numa exposição de mulheres artistas, sugerida ousadamente para a época por Duchamp a Peggy Guggenheim, numa galeria desta, em Nova Iorque, em 1943, que sobressaiu Méret Oppenheim, com a obra Objeto (O Pequeno-Almoço em Pele), com uma chávena de chá, pires e colher revestidas de pele, de interpretações e referências de vária índole. Desde a sensação repulsiva ou agradável de uma chávena peluda levada à boca ou tocada, associações de culpa pelo uso burguês aleatório de pêlo de animais em falares fúteis de salões de chá, a conotações sensuais e sexuais explícitas, há toda uma metamorfose do agradável em desagradável, do prazer em desprazer e outras antinomias, num jogo com a ambiguidade semântica da obra. Também transformou sapatos de mulher em coxas de frango, pintou mesas com patas de pássaros, em metamorfoses surreais cheias de ironia, piadas picantes e algo sinistras.
Frida Kahlo foi a primeira artista mexicana do século XX a integrar a coleção do Louvre, em Paris, urbe onde era vista como uma curiosidade exótica, dada a sua origem. Optou por ser artista, e não médica, no decurso de vários meses hospitalizada e após um acidente de autocarro quando regressava da universidade, tendo ficado com a coluna vertical, clavícula e duas costelas partidas, sendo perfurada e trespassada por uma vara de metal e ferros do veículo, sofrendo onze fraturas na perna direita e ficando com o pé esmagado. Este sofrimento, a que sobreviveu, inspirou a obra A Coluna Partida, em que a autora surge com o corpo rasgado suportado por uma coluna de metal, tipo espingarda, que simboliza a sua coluna fraturada, cujos coletes de aço simbolizam os ortopédicos que usou para a fortalecer. A paisagem desértica envolvendo a sua figura é a continuação do seu sofrimento. Chegou a dizer: “Fui tantas vezes aberta, partida, repartida, recosida. Sou como um puzzle”.
Refutava o pensar de André Breton de que era surrealista, dizendo: “Nunca pintei os meus sonhos, pintei a realidade”. Mas consentiu que as suas telas fossem exibidas em mostras surrealistas, entre elas a sugerida por Duchamp. Onde não foram alheias as crenças, mitos e rituais da cultura nativa mexicana, onde o ideário surrealista foi beber influências e novidades, dada o ambiente escaldante, atrasado e exótico do México tido, para Breton, como o país mais surrealista do mundo. E apesar de Frida não teorizar nem partilhar em pleno os mesmos conceitos do surrealismo dominante, há obras suas em que estão presentes elementos surrealistas, a começar pelos elementos fantásticos atribuídos aos sonhos, mesmo quando não se desprende totalmente da realidade. É o que sucede com a sua tela O Sonho (1940), cujo título, em si, é paradigmático, onde o sono, o sonho e a morte, dor, sofrimento e feminilidade estão fortemente interligados com contornos e influências marcadamente surrealistas e da cultura mexicana. Há nela um esqueleto que dorme por cima de Frida, uma espécie de amante da sua vida real, segundo Diego Rivera, seu marido, dado que dormia com um de papel no dossel da cama. A cama flutua no céu e a morte no ar. Um ramo de flores (para campa) surge nas mãos do esqueleto. Ao invés dos arbustos cobertos de espinhos que rodeiam o corpo de Frida. O que talvez justifique a sua despedida, surreal, para muitos: “Espero que a saída seja alegre. E espero nunca mais voltar”.
Dúvidas não subsistem quanto ao surrealismo da britânica Leonora Carrington, amiga de Frida Kahlo, que após viver com o surrealista Max Ernst, passou de fugida por Espanha e Portugal, tendo conhecido em Lisboa Renato Leduc, escritor mexicano, com quem se mudou para o México, onde morreu.
A sua tela surrealista Self Portrait: Inn of the Dawn Horse (Auto Retrato: Cavaleiro da Madrugada), do Metropolitan Museum em Nova Iorque, é tida como a primeira e uma das mais significativas da sua carreira. Carrington, sentada numa cadeira, antecipa no tempo o futuro vanguardismo das cantoras pop da década de 1980, com uma cabeleira anarquicamente despenteada e um vestuário entre o masculino e o feminino (andrógino), tendo pela frente uma hiena fêmea cuja crina se assemelha com a dela, imitando a sua pose. Ao fundo há uma janela onde se visualiza um cavalo branco galopando numa floresta, cuja cor e galopar se repetem no de pau que salta sobre a cabeça da autora. O seu fidedigno interesse por animais transforma-a numa caçadora noturna dos seus sonhos, operando-se um metamorfismo de real e irreal, num surrealismo pleno de simbolismos, onde o seu branco cavalo galopa em liberdade, tal e qual ela nos seus sonhos. O Gato, O Grande Adeus e Labirinto são outras obras representativas do seu percurso.
Refira-se ainda a francesa Louise Bourgeois com a escultura Maman (1999), de dez metros de altura, em memória da sua mãe que foi tecelã. Ou a pintora, escultora e escritora norte-americana Dorothea Tanning.
Representavam o corpo e o desejo das mulheres à sua maneira, do modo que o imaginavam e sem medos, ao invés de surrealistas como Dalí e Miró que representavam o corpo feminino como objeto de desejo.
O artista belga René Magritte é tido como um pintor surrealista cerebral e do absurdo, em que nada é exatamente o que parece. A representação é uma possibilidade ilimitada de significados. A arte funciona na base de uma saudável mentira. A representação artística é uma mentira com verosimilhança. Em A Traição das Imagens (1929), tido como um ícone da arte moderna, a imagem é acompanhada pela inscrição Ceci n`est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), sendo-nos dada uma representação de uma coisa e não a sua realidade, dado que o cachimbo da tela não é verdadeiro e não pode ser usado para fumar. Há uma desconstrução da ilusão do real, remetendo a imagem para o que ela é. O que reconhecemos como a representação de um cachimbo, não é o que estamos a pensar, gerando-se um conflito de mensagens, uma vez que até à leitura da legenda o observador pensa tratar-se de um cachimbo. Na sua aparente simplicidade, remete-nos para um anúncio de publicidade, área que o autor dominava. Enfim, tudo não passa de uma ilusão, de um cachimbo de papel, explorando o surrealismo através da realidade, desafiando o observador a crer que está perante um cachimbo.
No quadro Golconde há homens imóveis vestidos com sobretudos e chapéus de coco chovendo do céu, parecendo gotas de chuva pesada ou balões flutuando, projetando a sua sombra quando se sobrepõem frente aos edifícios, tendo como fundo o azul do firmamento e prédios urbanos. Exibe de modo elementar o que há a mostrar, sem complicações cromáticas ou formais. Só que esses homens não são homens, apenas fotos deles. De novo a consciência da falsidade da representação. Na tela O Assassino Ameaçado há imagens misteriosas, macabras, perturbadoras, sinistras, ameaçadoras, banais, traumáticas, aparentemente reais e cada vez mais surreais quanto mais observamos, juntas de modo incongruente e inusitado no mesmo espaço, lembrando influências de Giorgio De Chirico.
Nas sua obras nada é exatamente o que parece, havendo uma fusão consciente da realidade em ficção, jogando com o humor e o absurdo em situações inesperadas, numa interpretação da realidade à luz de uma imaginação paradoxal e cerebral, extrapolando o mundo onírico e os desejos do inatingível com a ajuda do mundo publicitário.
Os objetos têm também um lugar importante no surrealismo. Se Miró criou quadros-objetos e Dalí inventou objetos fantásticos, Man Ray descobriu as raiografias e a solarização, chegando a queimar objetos fotografando-os nas diferentes fases de combustão.
Desistindo da tinta e concentrando-se na fotografia, Man Ray transferiu a sua sensibilidade pictórica para o processo fotográfico, na tentativa de criar imagens com o brilho e poder da tinta. O que resultou numa técnica que apelidou de raiografia. Era uma fotografia feita sem câmara, fora da máquina fotográfica e no estúdio de revelação. Quando colocava um objeto, tipo lápis, caneta, tesoura, no papel e acendia a luz, imprimia-se uma versão negativa daquele na folha fotográfica preta sob a forma de uma folha branca. Era uma técnica de produzir imagens fantasmas, tipo raios X, a que chamou pintura com luz.
Descobriria acidentalmente outra técnica fotográfica inovadora: a solarização. A sua assistente, involuntariamente, acendeu a luz da câmara escura durante a revelação de fotografias. Man Ray angustiado, apagou a luz e mergulhou os negativos no fixador para os tentar salvar. Não os salvou, estragaram-se, de uma forma artística. Em todas as fotografias o modelo feminino começara a derreter dos lados, como um gelado ao sol, produzindo uma imagem onde o real se transforma num estado fantasioso, onírico. O Primado da Matéria sobre o Pensamento (1929) é um exemplo, em que em conjunto com o primado da matéria corporal definida, os limites da cabeça e duma parte do corpo da mulher se vão diluindo e tornando imprecisas por efeito de fusão da técnica de solarização, representando o pensamento aludido no título.
Arp, por sua vez, apresenta em 1931 os seus papeis rasgados síntese da arte abstrata e do surrealismo. Dominguez propunha a decalcomania sem objeto preconcebido apoiando uma folha de papel sobre outra embebida em guache, criando paisagens enigmáticas. Paul Delvaux usa imagens oníricas em que jovens mulheres em hipnose deambulam por espaços intemporais e estranhos.
Outros nomes, nomeadamente no feminino, irão ser merecedores de atenção, como Méret Oppenheime, Frida Kahlo, Leonora Carrington, Louise Bourgeois e Dorothea Tanning.
Mas o espírito surrealista permaneceu até aos nossos dias, tendo vindo para ficar, apelidando-se de surrealista um artista ou vulgar cidadão se o rótulo for adequado. No cinema, mais recentemente, há nomes que recorreram (e recorrem) ao surrealismo para elaboração da sua narrativa visual, tantas vezes chocante e desconcertante. Exemplificam-no Hitchcock, Ingmar Bergman, Fellini, Wim Wenders, Jacques Prévert, Tim Burton, David Lynch, Terry Gilliam, David Cronenberg e Peter Greenaway.
O surrealismo surge em Portugal, a partir de 1936, com António Pedro e António Dacosta, expandindo-se e promovendo-se, desde 1947, com nomes como Mário Cesariny, Alexandre O`Neil, Vespeira, Fernando Azevedo, António Domingues, Cruzeiro Seixas, Carlos Calvet e José Augusto França. À tríade Deus-Pátria-Família, opunham Poesia-Amor-Liberdade.
A PARANOIA CRÍTICA DE DALÍ (II) E O SEU MISTICISMO
1. Expulsão do Movimento Surrealista
Breton era admirador, amigo e colega de Dalí. Um dia incompatibilizaram-se. Dalí criara uma obra intitulada O Enigma de Guilherme Tell (1933). Foi tida como uma tela difamatória de Lenine, que aparece desnudado e com a parte central posterior do corpo deformada e sustentada por um estilingue. É a banalização, desmistificação e dessacralização de um mito e símbolo revolucionário. Breton quando a viu, numa exposição, tentou destrui-la. Não conseguiu, dado que Dalí, propositadamente, a colocara tão alto, que inviabilizara o seu alcance. Tida como uma afronta grave à causa revolucionária, o seu autor foi convocado pelo líder do movimento surrealista para uma reunião em 5 de fevereiro de 1934, onde estavam presentes, além de Breton, Ernst, Brauner, Hugnet, Hérold, Oppenheim, Péret e Tanguy. Para Breton era imperdoável aquele quadro, chegando a exclamar: “Esconde esse traseiro anamórfico que sou incapaz de ver!”.
Reunido o areópago surrealista, Breton fez a sua exposição contra Dalí, sendo visto, por este, como o grande inquisidor ou procurador geral. Dalí ouvia-o e replicava, fazia-se de surpreendido, invocava o credo surrealista, ao mesmo tempo que com um termómetro na boca, encenando febre e gripe, se ia desvestindo, entre gargalhadas gerais, astutas e irónicas súplicas de compreensão e perdão. Terminou a sua defesa em tronco nu, respondendo que naquele quadro tinha feito um ato de surrealismo total ao pintar os seus sonhos em pormenor, fazendo jus do seu método da paranoia crítica de associações delirantes, através de uma interpretação livre e libertária dos sonhos, dizendo: “É o mesmo, meu querido Breton, se hoje à noite sonhar que fizemos amor, pois amanhã de manhã pintarei as nossas mais belas posições com grande riqueza de detalhes”. Era demais para Breton. Dalí seria excomungado e expulso do grupo.
Acusado de ser surrealista demais, tinha os seus acusadores e detratores como “intelectuais feitos de papel higiénico”, cujas acusações se baseavam em critérios políticos e morais desprovidos de valor em relação às suas convicções paranoico-críticas, pondo a sua arte acima da política, inaceitável para um grupo de pretensões revolucionárias em que inicialmente se integrou e de que divergiria para sempre.
Para a rutura e a expulsão também contribuiu o choque provocado pela pintura “O Jogo Lúgubre” (1929), em que se vê um homem de costas com matérias fecais, que Breton impunha que afirmasse ser um detalhe escatológico de uma máscara, sendo para o autor uma forma de se libertar dos seus terrores obedecendo aos seus impulsos inconscientes. Iconoclasta e sacrílego, talvez. Coprófago, como era acusado, não. Foi maioritariamente interpretado como representando o lado escatológico do ser humano via introdução da coprofagia nas suas obras.
Também o quadro O Grande Masturbador (1929) contribuiu para ser tido como insuportavelmente chamativo, irreverente e ofensivo, sem esquecer o texto com o mesmo título, publicado em 1930, que foi alvo de críticas contundentes do partido comunista francês, segundo o qual “a moral proletária” não se compadecia com indecências sexuais de “intelectuais pequeno-burgueses”, acabando por marcar uma clivagem não reversível entre surrealistas estalinistas (Aragon, Sadoul, Pau Éluard) e os demais, de Breton a Péret.
De integrista, na adesão ao movimento, a relapso e subsequente expulsão, Dalí desafiou todas as crenças, a que não foi alheio o seu egocentrismo, funambulismo, vaidade e aquilo a que hoje se chama uma personalidade politicamente incorreta.
Dizendo-se apolítico na arte, acusava os opositores de engajados a preconceitos de toda a espécie, em quem os arquétipos da moral clássica tinham depositado marcas inapagáveis. Tinha-os como medrosos, fazedores e cultores de medos inultrapassáveis e de que teoricamente se diziam libertos, quer por imbuídos de preconceitos e tabus recalcados no inconsciente, quer por os ter como contrarrevolucionários, embora se tivessem como revolucionários. Quanto mais temerosos, mais os obcecava com o que temiam. Em certo sentido e em bom rigor, era humano e real tudo o que criava, nas suas pinturas e paisagens oníricas, metáforas, fantasias e sonhos, baseado no método paranoico-crítico, via objetivação crítica e sistemática de associações e interpretações delirantes, mesmo que surreal ou mistura do real com o irreal, dada a realidade real com que todos nos confrontamos, queiramos ou não. O que tinha como transversal a proletários e burgueses, exploradores e explorados, conservadores e revolucionários, pessoas de toda a condição social, política ou outra. Por muito chocante que fosse a alegada indecência, fantasias eróticas e uma irreverente ausência de pudor. Nesta perspetiva, tinha inaceitável uma hierarquia de valores quanto aos sonhos e posturas políticas.
2. Pintura Mística e Religiosa
A arte e a personalidade dalinianas não ficariam por aqui. Além de colaborar no cinema (Buñuel, Hitchcock, Disney), escreveu livros (de ficção, diários, ensaios), fez fotografia, desenhos e imagens para joias, vestuário e objetos decorativos. Querendo assim ser um artista total, segundo uns. Ou um ganancioso ávido de dinheiro, adaptando-se consoante a oportunidade e circunstâncias, para outros. Breton apelidou-o de Avida Dollars, respondendo Dalí com A Apoteose do Dólar (1965).
E além de outras obras marcantes do seu surrealismo clássico, como A Metamorfose de Narciso (1937), há ainda a sua pintura mística e religiosa, numa fase posterior, como o Cristo de São João da Cruz (1951), que viu num sonho cósmico, optando por uma transcendental beleza metafísica, em que Jesus não está ferido, ensanguentado ou moribundo, surgindo sem coroa de espinhos ou pregos nas mãos e pés, descendo do infinito e olhando o mundo do alto do céu, com uma luz dourada iluminando o seu corpo. Um Cristo belo, vívido, anatomicamente perfeito e vivo, um Cristo Salvador, de Salvador Dalí, que queria que o seu Cristo tivesse mais alegria e beleza do que tudo quanto se tinha pintado até então. Onde há influências de leituras dos escritos dos místicos espiritualistas espanhóis São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. Incluindo um desenho de um Cristo de João da Cruz, embora crucificado.
Acusado de nas suas telas todas as mulheres terem o rosto de Gala, foi mais longe ao colocá-la no lugar de Cristo em O Sacramento da Última Ceia (1955). E no da mãe de Jesus na pintura A Madona de Port Lliglat.
Há quem veja nesta deriva pictórica o regresso a uma pintura de academia, raiando o virtuosismo, restaurando valores pictóricos do passado. Há quem vislumbre um derrube de todas as fronteiras e uma nova estrutura de pensar, não alheios ao surrealismo, atentos os seus efeitos transgressores em que o artista se libertou de convenções tidas como racionalmente usuais para se expressar. O real, se presente, é reforçado pela imaterialidade. A imaginação é sobrevalorizada, em desfavor da razão.
Há uma notória transgressão do universalmente aceite ao substituir-se Jesus por uma mulher no Sacramento da Última Ceia. Surreal, dir-se-á. Embora criativo e original. Há uma transgressão da versão convencionalmente aceite da imagética da crucificação, ao representar-se, à revelia do cânone tradicional, um Cristo não agonizante e não sofredor, nem martirizado, supliciado ou torturado. Um Cristo não convencional, em rebeldia com o senso comum, algo de surreal. Sem esquecer, nalgumas telas, o seu misticismo nuclear, numa mistura de real, irreal e detalhes surrealistas nas versões da Madona de Port Lligat.
Mesmo quando não se gosta, Dalí nunca nos deixa indiferentes, havendo que saber separar a arte em si do artista.
Rumo a uma arte livre criadora de uma linguagem do desejo sem preconceitos, expurgando aspirações marxistas e partilhando pesquisas psicanalíticas, em especial freudianas, emergem artistas como Salvador Dalí, com a teoria da paranoia crítica ou do método espontâneo de conhecimento irracional baseado na associação interpretativa-crítica dos fenómenos delirantes. Entrava em transe com o fim de alcançar um estado de paranoia crítica, ao invés das técnicas de associação espontânea e da produção de imagens automáticas de Miró e Ernst.
Residindo nas fantasias noturnas do sono a verdade real da existência humana, sendo só através do subconsciente que o ser humano atinge a liberdade absoluta, independente da razão, da vontade, dos tabus e imperativos sexuais, há uma realidade superior dos sonhos que Dalí vulgarizou como imagem de marca pública mais conhecida do surrealismo. Exemplificam-no o seu Telefone-Lagosta (ou Telefone Afrodisíaco), com uma lagosta no lugar do auscultador e um relógio flácido a derreter-se na tela A Persistência da Memória.
De personalidade ambiciosa, egocêntrica, excêntrica e exibicionista, vulgarizou o espírito, formulário visual e postura pública do surrealismo como bizarria, delírio, fantasia, irracionalidade, fazendo culto do seu exótico bigode desmesuradamente fino, pontiagudo e estratosférico, em poses chamativas, delirantes e provocantes de aparições públicas transformadas em espetáculos de marketing.
O seu método paranoico-crítico, baseado em picos de aflição e ansiedade pessoal que ele próprio criava, permitia-lhe associações delirantes, inusitadas e insólitas, através de sonhos, pesadelos e paranoias, chegando a aterrorizar-se com imagens bizarras e macabras, confundido o observador na distinção entre a imaginação e a realidade, criando pinturas oníricas de objetos reais com múltiplas interpretações.
Um exemplo é a célebre tela Persistência da Memória (1931). Começa por um litoral vazio do Mediterrâneo, junto à casa do artista, na Catalunha, onde uma sombra negra ameaçadora se espraia, tornando flácido e deteriorando tudo aquilo por onde passa. Consta que Dalí se inspirou num queijo cremoso derretido que se espalhou pelas bordas de um prato, quanto aos relógios deformados e moles, lembrando um queijo amolecido. Se o próprio tempo se curva perante o impacto da gravidade, por que não, e por maioria de razão, os relógios, maquinismos do tempo? Fim do tempo e da vida, como também o é um ser vulnerável, grotesco e impotente coberto por um relógio que se vai consumindo e degradando, no centro da obra, tido como sendo Dalí, a que acresce uma mosca no relógio à esquerda e um exército de formigas pretas rastejantes no de bolso cor de laranja, como símbolo de decomposição e putrefação. Entre relógios flácidos que dão à tela uma natureza de sonho alucinado e elementos de paisagem naturalista transfigurados numa perspetiva visionária, surge a implacabilidade do tempo e a inevitabilidade da morte, em imagens reais metamorfoseadas em surreais e, ao mesmo tempo, numa horrenda metáfora hiper-real. Há que reconhecer que esta obra surrealista integra o imaginário coletivo da arte mundial.
Memorizo, de há anos, uma entrevista televisa num documentário sobre a vida de Salvador Dalí, onde defendia que os génios não mereciam morrer, achando justo que pessoas geniais, como ele, eram dignas de viver eternamente, tendo a morte como indigna, não apreciando uma evolução natural e universal, segundo a qual todos, sem exceção, nascemos e morremos, o que também lhe valeu qualificativos de arrogante, darwinista e louco. Ele que, resguardando-se na publicitada loucura, afirmou: “A única diferença entre mim e um louco é que eu não sou louco”.
Mas não chegava, além de quadros controversos, a sua aparência estranha, narcísica e exibicionista, de atos e palavras tidos como desarrazoados e extravagantes. Nem ser tido como um transgressor da moral e dos bons costumes da época, no seu caso de amor com o poeta Federico Garcia Lorca. Um amor “surreal”, por certo, para aquele tempo. Ou ter colaborado com o cineasta Luis Buñuel em filmes apelidados de escandalosos, como O Cão Andaluz e a Idade do Ouro. Ter entrado em rutura, mais tarde, com Lorca e Buñuel. Ter tido um encontro com Gala, então mulher de Paul Éluard, que se tornaria, sucessivamente, sua amante, esposa e musa. A tudo isto soma-se a sua expulsão do movimento surrealista. Logo ele, tido por outros, e por ele próprio, o mais surrealista dos surrealistas.
1. A expressão surrealismo popularizou-se e entrou no vocabulário quotidiano sob a forma de um adjetivo: surreal. Estando para além do real, expressa o irracional, a desrazão, o fantástico, o oculto, o absurdo, o estranho, o excêntrico, o esoterismo, a alucinação, resultando da interpretação da realidade à luz do sonho, da imaginação e dos processos psíquicos do inconsciente.
Movimento literário e artístico nascido em Paris, em 1924, sob a teorização de André Breton no Primeiro Manifesto do Surrealismo, onde surge como: “um puro automatismo psíquico pelo qual se pretende exprimir, quer verbalmente, quer por escrito, quer por outro meio seja ele qual for, o verdadeiro funcionamento do pensamento. Um ditado do pensamento, sem que a razão exerça sobre ele qualquer controlo e para além de qualquer preocupação estética ou moral”.
Se como influências e modelos culturais podemos recuar às alucinações de Bosch, a Rimbaud, Lautréamont, ao simbolismo e alguns pintores expressionistas, é o dadaísmo e a metafísica de Chirico que agarram mais de perto, como precursores mais diretos, os ideais surrealistas, via associações e metáforas incoerentes, eventos estranhos, resultados absurdos, delirantes, extravagantes, sombrios e viagens excêntricas. Na pintura, por exemplo, o surrealismo foi beber inspiração aos ready-made de Duchamp e aos Interiores Metafísicos de De Chirico.
Mas enquanto o movimento Dadá era totalmente destruidor, negativo e nihilista, o surrealismo começou por ser um movimento comprometido politicamente com o partido comunista, entendendo que a missão dos intelectuais revolucionários num regime capitalista era a de condenar os valores burgueses, servindo os mesmos objetivos que os revolucionários políticos.
Mas existia uma contradição insanável entre o espírito boémio, libertário e liberticida, entre uma irrestrita liberdade de expressão, de pensamento e de imaginação dos surrealistas e o dogmatismo, autoritarismo e disciplina exigida pela ortodoxia cultural comunista. A aliança não foi duradoura, havendo cisões, dissidências, excomunhões e ruturas. Dos grandes escritores surrealistas apenas Louis Aragon permaneceu sempre fiel ao partido comunista.
O essencial, para os surrealistas, era explorar o mundo novo revelado pela psicanálise baseada na teoria psicanalítica de Freud, defendendo a autonomia da imaginação e a capacidade do inconsciente se exprimir sem limites, baseando a literatura e a pintura na associação de imagens produzidas pelo subconsciente dos artistas. Uma liberdade total de imaginação e expressão permitiu uma imensa diversidade e que este movimento não apresentasse um caráter unitário, com as suas influências anarquistas, marxistas e freudianas, em que estas últimas predominaram.
O papel do inconsciente já tinha sido explorado por artistas como Kandinsky, Malevitch e Mondrian, ao pretenderem provocar uma sensação de fantasia, quimera, sonho e utopia na nossa mente com o abstracionismo das suas telas. Só que os surrealistas queriam ir mais longe, exprimindo o seu subconsciente sem qualquer intervenção, limitação ou censura, confrontando-nos com imagens e palavras chocantes, indecorosas, macabras, subversivas, expondo cruelmente a depravação do nosso íntimo e das nossas mentalidades, destapando pensamentos e segredos íntimos que haviam sido decalcados e proibidos por uma questão de decência e pudor.
Embora apoiando ideias fundamentais do dadaísmo, como a destruição do sistema e a negação do fazer artístico e da arte pela arte, havia que ir mais longe, havendo necessidade de integrar, no que de original e contundente tinham os dadaístas, conceitos freudianos sobre o desempenho do inconsciente na conduta humana, que se revelava através dos sonhos e da escrita automática e espontânea da consciência. Superava-se, assim, o dadaísmo, já esgotado, pela adesão às descobertas da psicanálise e pela afirmação da importância do sonho na criação artística.
2. Afirmando que o surrealismoé um meio de libertação do espírito, os surrealistas representaram cenas absurdas, fantásticas, grotescas, macabras, sonhos e alucinações chamativas em excentricidade e insolência, libertando-se de tabus vigentes no campo da sexualidade, de interferências racionais, morais ou estéticas.
Os surrealistas franceses, por exemplo, criaram o jogo Cadavre Exquis (Cadáver Esquisito), em cada um dos intervenientes escrevia o que desejasse numa folha de papel em branco, que dobrava, ocultando o que escreveu. Entregava-a, parcialmente dobrada, ao segundo jogador, que escrevia o que queria, dobrava-a e entregava-a ao terceiro jogador, e assim sucessivamente, até ao fim da folha. Desdobrado o papel, as linhas e frases desunidas eram lidas por todos, desde o cume da folha, como se fossem uma única peça criativa. Seguia-se uma análise, por entre considerações cuidadas, humor e gargalhadas relacionadas com as associações absurdas obtidas, em comunhão com a real personalidade dos jogadores, tida por convincentemente manifestada. Dado que a primeira frase, da primeira vez que se jogou, foi “O cadáver esquisito beberá o vinho novo”, o nome do jogo resulta do primeiro dos cadáveres esquisitos conhecidos. Que viria a ser recuperado pelos surrealistas portugueses, a vários níveis, como o exemplifica a antologia de Mário Cesariny de Vasconcelos. Emergem, também aqui, influências da pintura metafísica, perante a ideia de desenvolver e misturar temas ao acaso. Bem como do dadaísta Tristan Tzara ao propor que se recortassem palavras de um texto de jornal e se juntassem ao acaso, tirando-as de um saco onde foram guardadas.
A passagem da folha escrita para a tela era mais complexa e menos imediata. Joan Miró é tido como um dos artistas que melhor o conseguiu, ao interiorizar o surrealismo através das suas imagens automáticas. A sua tela Carnaval do Arlequim, é um exemplo, com as combinações e formas aleatórias pautadas por uma imaginação infantil não racional, despida de uma estrutura explícita, em que bichos, peixes, insetos, balões, serpentinas, modelos biomórficos, notas e instrumentos musicais flutuam no ar e andam pelo chão, em que o protagonista é uma bola com bigodes (rosto), cujo pescoço comprido se desdobra numa guitarra decorada com a estampa axadrezada de um arlequim, numa hipotética festança de um dia de carnaval, em que não falta um inesperado olho aberto. Eis um universo mágico e lírico de códigos, signos e associações surreais.
Max Ernst exemplifica a sua produção automática na tela Célebes, em que peixes nadam no céu, um gigante elefante cinzento, tipo máquina, lembra um tanque de guerra, monopolizando a pintura, enquanto uma figura feminina decapitada levanta o braço direito na direção da tromba, em que uma coluna metálica, à direita, apresenta conotações fálicas.
Ernst viria a realizar, em 1935, as suas primeiras frottages, associadas à escrita automática, que implicava transferir a impressão de superfícies texturadas para o papel, friccionando-as com lápis ou lápis de cera, daí resultando formas nodosas ou espinhosas que representavam coisas estranhas, produzindo imagens tidas como uma forma de surrealismo automático. Mason realiza os seus primeiros desenhos automáticos e inventa os quadros de areia.
Porém, outros artistas que aderiram ao surrealismo, recriaram a atmosfera de indefinição e de uma arte livre criadora do desejo, sugerida e teorizada por André Breton.
«Apenas uma Narrativa» (1942) de António Pedro (1909-1966) é um marco na cultura portuguesa, deixado por alguém que foi pioneiro nos caminhos surrealistas entre nós e que foi uma personalidade de influência decisiva na afirmação do teatro moderno.
PERSONALIDADE DE MÚLTIPLAS VOCAÇÕES António Pedro, cujo cinquentenário da morte agora passa, foi uma personalidade de múltiplas vocações. Para a minha geração foi um homem de teatro e um interrogador de caminhos de vanguarda inéditos e precursores. Um dia disse sobre o seu código genético: «Esta metade galaico-minhota e irlando-galesa do meu sangue fez-me gostar de gaitas de foles, de instrumentos de percussão e da conquista do impossível. Como meus tetravós celtas, se eu pudesse, atiraria setas ao sol. Minha família, no entanto, é de gente burguesa e bem pensante». Isto significa que António Pedro se sentia muito português, ligado a esse misterioso fundo céltico, que é sinal distintivo do Portugal matricial. Aliás, falando de raízes, temos de referir a sua ligação a Moledo e um amor especial ao Norte: «Este Moledo do meu encanto, onde tinha uma casa e onde, desde a infância, vinha passar, sempre que podia, alguns meses por ano (…) De Moledo descobri o Porto. Foi uma grande descoberta. O Porto é uma cidade de província, mas de uma província que pertence à Europa»… E, se é certo que essas raízes eram muito marcadas, a verdade é que a ligação cabo-verdiana torna-o uma personalidade ligada ainda à viagem e à descoberta. Não por acaso, os estudiosos da sua vida e da sua personalidade falam do seu pendor experimentalista e da tendência para testar permanentemente a força da imaginação. «Ser é mudar. Mudar, como morrer, uma perpétua sequência de metamorfoses»… A ideia de vanguardas pensantes entusiasmava-o. Vemo-lo começar com os nacional-sindicalistas na «Ação Nacional», com Rolão Preto, mas, pelo inconformismo, depressa está em choque com o Estado Novo, partindo para Paris (1934-35), onde vai ao encontro do mais moderno e experimental se faz na Europa. Realiza na escultura ou na instalação o curioso «Aparelho Físico de Meditação», associa-se aos dimensionalistas, publica poemas visuais (15 Poèmes au Hasard) e em 1935, já em Lisboa, organiza na Galeria UP a primeira exposição de Maria Helena Vieira da Silva. Do dimensionalismo dirá: «a poesia precisa casa vez menos de palavras. A pintura precisa cada vez mais de poesia».
PULSÃO FUTURISTA Personalidade fervilhante, sente em si uma pulsão futurista. Graças a si, começa a falar-se em Portugal do surrealismo. No fundo, António Pedro deseja que o espírito de rutura de «Orpheu» se renove em termos diferentes. Daí a proximidade e a distância relativamente a Fernando Pessoa… Em 1940 na Casa Repe (Lisboa) organiza uma Exposição Surrealista com António Dacosta e Pamela Boden. No início dos anos quarenta, visita o Brasil, onde tem contacto com os meios da criação artística. Em 1942 publica «Apenas uma Narrativa» - de que Jorge de Sena dirá ser «uma bela e prática novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua». E, olhando o criador e o artista como um todo, ainda Jorge de Sena afirma: «António Pedro trouxe a visão de um pintor imaginativo para quem a intensidade da expressão iguala a pura compreensão das formas». De facto, não podemos apreciar a força criadora deste autor, sem ligarmos a poesia, a literatura, o teatro e as artes plásticas. Por isso, o teatro experimental foi para ele fundamental, uma vez que é a arte onde tudo se liga: texto, diálogos, expressão corporal, apresentação plástica, cenários, marcações… Assim, e naturalmente, começa a interessar-se pelo teatro, pelo público, pela capacidade de encenar e de representar, de ser autor e actor. Torna-se jornalista no início de 40, funda a revista «Variante» e é chefe de redação do «Diário Popular». Parte para Londres, onde trabalha para a BBC e relaciona-se com o surrealismo britânico. Defende nas suas crónicas radiofónicas de Segunda-feira a democracia inglesa e a causa dos Aliados – o que o torna suspeito aos olhos de Salazar e do regime. Adolfo Casais Monteiro dedica-lhe o poema «Europa», ilustrado por António Dacosta, referência fundamental na defesa de uma paz europeia assente na liberdade e na democracia. Em 1945, quando regressa a Lisboa tem dissabores com a polícia política. Em 1947, é um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa, com Alexandre O’Neill, Dacosta, Fernando Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto Franças e Vespeira, do qual se tornarão dissidentes: Mário Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa e Henrique Risques Pereira. «O que deles (dos surrealistas) me aproxima é o sonho, os dados irracionais como ponto de partida, e o encanto sobre todas as coisas de uma imaginação barroquisante, delirante se for preciso e possível, a única faculdade do espírito que, com certeza, só o homem possui à face da terra». Mais do que uma escola o que importava a António Pedro era uma atitude!
A PAIXÃO PELO TEATRO E o teatro torna-se a sua verdadeira paixão. Se desilusões várias o levam a retirar-se para Moledo, onde se dedica à cerâmica, o certo é que o vírus teatral e dramático torna-se decisivo, levando-o à direção do Círculo de Cultura Teatral – Teatro Experimental do Porto (TEP), sob proposta de Alexandre Babo e Eugénio de Andrade. Durante oito anos estará à frente do TEP, numa experiência inolvidável. Ninguém pode deixar de reconhecer o extraordinário encenador, o pedagogo de exceção e o homem dos sete ofícios da cena teatral. Era um homem de teatro verdadeiramente completo. A encenação de «A Morte de um Caixeiro Viajante» de Miller é ainda hoje lembrada como um grande momento da história do teatro português. Na RTP, são célebres as suas charlas sobre teatro, numa linguagem acessível e nova, sem tiques eruditos. Como se se tratasse de temas fáceis e acessíveis, António Pedro falava da modernidade em termos tais que levavam naturalmente os mais jovens a entusiasmarem-se pela força emancipadora do teatro. São momentos únicos de televisão que marcaram pela paixão do teatro as novas gerações. Sendo sempre fiel a si mesmo e à sua independência de espírito, António Pedro singularizava-se pela inteligência fina e acutilante. Tendo querido levar à cena no TEP «A Casa de Bernarda Alba» de Lorca não conseguiu fazer demover a interdição da censura, só levantada mais tarde, com restrições, em especial pela proibição do cartaz da autoria de José Rodrigues. Adolfo Casais Monteiro disse de António Pedro o que não podemos esquecer: «foi na hora própria a voz de todos os portugueses que não esqueceram a sua condição de europeus e cidadãos do mundo».