Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“I am silver and exact. I have no preconceptions. Whatever I see I swallow immediately Just as it is, unmisted by love or dislike. I am not cruel, only truthful (…) Faces and darkness separate us over and over.
Now I am a lake. A woman bends over me, Searching my reaches for what she really is.”, Sylvia Plath, Mirror, 1961
As imagens que contam são aquelas capazes de gerar outras imagens. São imagens fluídas, confusas e inacabadas, que estão sempre em movimento e em mutação. São temporalmente incertas, indeterminadas e dispersas, revelam-se através de vários ângulos e perspetivas. E não pertencem necessariamente à categoria do belo, do atual, da assimilação completa, do perfeito e do excecional. Essas imagens alimentam para sempre a vida, são fontes de libertação.
Uma imagem deve viver sempre duma relação incessante com o sujeito. Assim que essa imagem se completa, se petrifica, desaparece ou é codificada deixa de originar outras imagens e passa a condicionar e a aprisionar o olhar sobre o mundo.
Vivemos rodeados de imagens. Nos dias de hoje, a fotografia é o meio mais instantâneo e eficaz para produzir uma imagem. Já não é só o espelho com a sua capacidade intrínseca e estática de refletir a pura verdade, e muito menos a água que ao estar sempre a correr ora deixa transparecer o fundo, ora reflete o nosso rosto e aquilo que nos rodeia.
Susan Sontag no livro On Photography escreve que de facto a fotografia ao ser uma imagem escolhida, truncada e encenada nunca revela o feio.
Sontag diz que o que move uma pessoa a fotografar é a procura constante por algo que valha a pena e que seja belo. E tão bem sucedido tem sido o papel da câmara ao embelezar o mundo, que a fotografia, em vez de revelar o mundo tal como é, se tornou o padrão plano do belo. Sontag explica que as fotografias nunca revelam a verdade: “The news that the camera could lie made getting photographed much more popular.” (Sontag 2019, 91)
Mas a fotografia aparece sempre associadas à necessidade de revelar a realidade de forma nunca antes escrita, pintada ou desenhada. Uma fotografia parece abissalmente real e a imagem que cria parece sempre corresponder à verdade pura. E por isso não nos conseguimos libertar delas, porque parecem sempre dizer respeito ao nosso mundo.
Talvez as imagens que mais suscitam criação são aquelas que conseguem ultrapassar o peso, a dureza e a opacidade do mundo mas que ainda guardam o segredo de cada ser.
As fotografias criam uma outra realidade constituída por infinitas unidades desconexas.
“To take a picture is to have an interest in things as they are, in the status quo remaining unchanged (at least for as long as it takes to get a ‘good’ picture), to be in complicity with whatever makes a subject interesting, worth photographing-including, when that is the interest, another person’s pain or misfortune.” (Sontag 2019, 12)
Num mundo inundado de imagens a todos os instantes, sobretudo através das redes sociais, vale a pena relembrar o que Susan Sontag escreveu acerca da fotografia. As suas palavras são provavelmente mais atuais do que nunca.
No texto In Plato’s Cave, Susan Sontag (Sontag 2019, 1-26) revela que as imagens fotografadas não são afirmações sobre o mundo, mas sim bocados dele. São miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer e adquirir.
As fotografias têm a reputação de mostrar a verdade, tal como um espelho. De facto, fornecem evidências mas, na opinião de Sontag são sobretudo o meio mais poderoso da distorção.
Para Sontag, as fotografias tem o poder de alterar e ampliar a ideia sobre o que vale a pena olhar e o que temos o direito de observar. São experiências capturadas e democratizadas. São uma gramática e uma ética de ver - e têm uma grande influência na imagem que construímos do mundo. Sem dúvida que, ao colecionarmos fotografias temos a intenção de colecionar o mundo inteiro.
“Photographs are perhaps the most mysterious of all the objects that make up, and thicken, the environment we recognize as modern.” (Sontag 2019, 2)
Mas a fotografia implica sempre uma relação de poder e de apropriação sobre o objeto fotografado. Tirar uma fotografia significa colocar o sujeito que fotografa numa certa relação de superioridade com o mundo porque sobre esse mundo se impõe um determinado conhecimento.
A fotografia altera a realidade, mas há sempre a suposição de que algo existiu e existe, tal como aparece na imagem. Quaisquer que sejam as limitações ou pretensões do fotógrafo, uma fotografia parece ter uma constante e inerente relação com a realidade visível, muito maior do que qualquer outro objeto mimético. Sontag afirma que a fotografia é a ferramenta derradeira utilizada na sociedade moderna, para vigilância e controlo.
Enquanto a escrita, a pintura e o desenho são sempre vistas como uma interpretação do que sentimos ou do que nos rodeia, uma fotografia é sempre tratada como uma transparência, uma revelação seletiva do real.
Porém apesar da presunção de veracidade total e de reflexo da pura realidade, que dá a todas as fotografias uma espécie de autoridade, interesse e sedução, os fotógrafos são sempre perseguidos por imperativos implícitos de gosto e de consciência. O fotógrafo ao escolher o que mostrar, ao decidir o que cortar e enquadrar, ao manipular a luz, a textura, a forma e a geometria, impõe sempre intenções aos seus objetos. Por isso, na opinião de Sontag uma fotografia será sempre também uma interpretação do mundo.
Fotografar é um ato de não intervenção - quem intervém não pode fotografar, quem fotografa não pode intervir. Porém embora a câmara seja um posto de observação, o ato de fotografar é mais do que um olhar passivo. O ato de fotografar encoraja e dignifica tacitamente o que quer que esteja a acontecer a continuar perpetuamente a acontecer.
Sontag faz notar que sempre que uma fotografia tenta ser totalmente indiscriminante e verosímil torna-se agressiva: “There is an aggression implicit in every use of the camera.” (Sontag 2019, 6)
A fotografia é sobretudo praticada como um entretenimento, um ritual social, um instrumento eficaz de poder, de nostalgia e de imaginária possessão. Há quem só conheça o mundo através do buraco da objetiva. Há quem viva a acreditar que a câmara é o instrumento último e viciante que faz e que mostra a verdade. Vivemos a acreditar que a fotografia é o único meio que certifica, completa, inaltera e imortaliza uma determinada experiência. Mas Sontag acredita que se só certificarmos uma determinada experiência através do ato de tirar uma fotografia, estamos sobretudo a recusar e a negar essa experiência - porque de repente essa experiência interrompe-se por um objeto que interfere e reduz-se a uma procura pelo fotogénico, pelo excessivamente embelezado e interessante, transforma-se numa mera imagem objeto, plana e nivelada e que pode ser possuída.
“While the others are passive, clearly alarmed spectators, having a camera has transformed one person into something active, a voyeur: only he has mastered the situation. What do these people see? We don’t know. (...) Taking photographs has set up a chronic voyeuristic relation to the world which levels the meaning of all events.” (Sontag 2019, 10)
Segundo Sontag, as fotografias não explicam o mundo, criam um outro mundo. São uma outra realidade opaca, manobrável, descontínua e constituída por infinitas unidades desconexas. Se o mundo for visto só através de fotografias transforma-se numa série de pequenas partículas independentes sem passado e sem presente, onde a verdade e a mentira se cruzam sem cessar.
Sontag declara que a fotografia implica que aceitemos o mundo tal qual como a câmara o apresenta. Mas o verdadeiro conhecimento começa só a partir do momento em que questionamos a ordem das coisas. Toda a possibilidade de compreensão está enraizada na capacidade de dizer não. Na realidade nunca entendemos nada só através de uma fotografia - as fotografias preenchem sim lacunas de imagens mentais do presente e do passado. As câmaras que reproduzem a realidade ocultam sempre mais do que revelam. Só o que narra nos pode fazer entender.
As fotografias têm a capacidade de captar sentimentalmente o que não é explicável e tudo o que é sedutor, tudo o que é passível de ser especulado e fantasiado. Testemunham o implacável passar de um momento. São bocados congelados do que já não é. São conhecimento e inventário. São evidências de vulnerabilidade e de transformação. São simultaneamente presença e ausência, ficção e informação, tangível e inatingível, concretização e desejo, distância e proximidade. A sua impressão faz-nos acreditar que dizem respeito a uma verdade derradeira, a uma confirmação do que existiu, a algo memorável. Mas é preciso não esquecer que são sempre uma fatia escolhida, descontextualizada, manipulada e encenada de tempo e de espaço e particular que sempre que repetida até à exaustão nos anestesia.
“The vast photographic catalogue of misery and injustice throughout the world has given everyone a certain familiarity with atrocity, making the horrible seem more ordinary - making it appear familiarity, remote (‘it’s only a photograph’), inevitable.” (Sontag 2019, 22)
Howard Hodgkin, o gesto demorado da memória mais íntima.
‘Life is not a problem to be solved, but a reality to be experienced.’, Soren Kierkegard
'You need things to look at, things to affect your feelings, and your intelligence and your heart.' Howard Hodgkin, 2001
Gestos espontâneos, repetidos, essenciais, prudentes, pacientes e contidos transportam para a tela intenções refletidas e memórias exatas. Um gesto de Howard Hodgkin (1932) pode demorar anos a tomar forma. A beleza aparentemente acidental das suas pinturas advém da demorada maturação de uma memória.
No início eram formas de contornos precisos e de cariz mais concerto. Hoje são pinturas objeto, compactas, densas, de texturas variadas, com uma paleta de cores vivas, luminosas e intensas.
Susan Sontag no texto ‘About Hodgkin’ (1995) escreve: ‘Each artist is responsible for creating his unique vision. A style is equivalent to a pictorial language of maximum distinctiveness: what declares itself as that artist’s language, and nobody else’s. To reuse again and again the same gestures and forms is not deemed a failure of imagination in a painter. Repetitiveness seems like intensity. Like purity. Like strength. And the extent to which everything by Hodgkin looks so unmistakeably by him.’
Advinham-se intensos contrastes entre a luz e a sombra, entre o íntimo e a grande escala, entre o delicado e o abrupto, entre o leve e o pesado.
'I hate painting most of the time it’s irrelevant. It doesn’t mean enough, ever, quite.', Hodgkin
A pintura de Hodgkin é a forma de expressão mais primária. É apoderação de espaços interiores íntimos, de naturezas mortas, de cenas ao ar livre, de retratos, de homenagens à história de arte. As pinceladas inacabadas e cruas sugerem narrativas – que se conseguem decifrar através dos títulos (In The black Kitchen, After Dinner, Discarded Clothes, Leaves, In Tangier, The Last Time I Saw Paris, Waterfall, Patrick Caulfield in Italy, After Degas, After Morandi…).
Cada bocado de cor pintada refere-se a um tempo particular, a um lugar específico, a uma determinada pessoa, a uma história submersa. São imagens que representam situações emocionais, que se relacionam com o eu criador e que tentam ser finitas, sólidas e objetivas, e que excluem o irrelevante e o confuso: ‘The idea is to put as much as possible, of color, of feeling, in each picture.’ (Sontag, 1995)
Enquanto pinta, Hodgkin ignora as diferenças entre o eu e o mundo, entre o escondido e o revelado, entre passado e presente, entre tela e moldura.
Sontag entende que Hodgkin não oferece um simples olhar sobre o mundo, não oferece somente uma impressão – isto porque uma situação emocional não é uma impressão. As pinturas de Hodgkin não se constituem por contornos distintivos e identificáveis. As formas (pintas, riscas, discos, arcos, faixas, setas, bandas, ondulações, pórticos) são alusivas mas intencionalmente representacionais. ‘Hodgkin aims to reinvent the sight of something after it has been seen, when it has acquired the heavy trappings of inner necessity.’, Susan Sontag.
'I’ve always thought that the first thing that painting should be is a thing – paintings should be like objects that exist firmly. Why is that so important – because everything else is so fleeting? Probably, yes. They have to be complete in themselves.’, Howard Hodgkin
Por vezes, as pinceladas transcendem os limites da madeira e transbordam para a moldura, outras vezes é a moldura que se duplica como que tentando conter o que não pode ser contido. São assim objetos autobiográficos delicados. São também evocações de sítios dos grandes mestres do passado: Índia, Itália, França, Marrocos, Egipto. A viagem é uma experiência ávida, intensificadora, incentivadora e assim necessária para Hodgkin – atua como filtro e distância ideal ao desejo de pintar. Há preferência pela contemplação das experiências mais íntimas mas que já acabaram – os quartos, os terraços, os jantares, os passeios noturnos, as visitas memoráveis.
‘The most common weather is rain; the season is invariably autumn; if a time of day is cited, it’s usually sunset. Art made out of a sense of regret… evoker of the sentiment of loss.’, Sontag
Hodgkin não desenha, não fotografa, confia antes plenamente no que a memória regista na sua profundidade emocional e pictórica. A matéria relevante para pintar é o que fica dentro e é transformada pela memória. As camadas e as pinceladas resultam de muitas decisões e são trabalhadas durante anos, de modo a encontrar a exata espessura da emoção transcendente. (Sontag, 1995)
'Art doesn't give me pleasure. Because I always think it should have been better. It shouldn't be as inadequate as it often seems to me to be. And yet, looking at the pictures behind you, I'm suddenly impressed.', Howard Hodgkin