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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

INTERVENÇÃO DO ESTADO NA REDE DE TEATROS HÁ 250 ANOS

 

Fazemos hoje referência a um decreto destinado a garantir, na letra da lei, o incremento da atividade teatral e musical, tendo em vista designadamente a existência de espaços vocacionados para o espetáculo, ou pelo menos adequados a atuações de artistas, a partir de textos declamados.


E aí estará, precisamente, a essência do espetáculo teatral, que só existe quando um texto, mesmo diretamente improvisado, serve de base para a exibição/transformação em termos de espetáculo, e isto, mesmo quanto o público é escasso: pois o que tem de existir, isso sim, é a transmissibilidade direta para o espetador, a partir da atuação direta do intérprete, seja  ou não seja ele autor do texto em si.


O que importa é pois a transmissibilidade de quem cria para quem recebe: e nesse aspeto, deve-se frisar que a partir do século XVIII assiste-se em Portugal a uma sucessiva edificação de edifícios destinados direta ou indiretamente a criações ligadas à arte do espetáculo. A tradição histórica de certo modo remonta à época romana, mas pode-se considerar como tal o Pátio da Arcas, criado em 1590 pelo empresário (digamos assim) castelhano Fernão Dias de la Torre, que em 1590 o criou, na zona que hoje é a Rua Augusta!...


E é de notar que antes a atividade cénica realizava-se em palácios ou em edifícios destinados a outras finalidades!


Tenha-se aliás presente que este Pátio das Arcas surge por influência da corte filipina, no que é hoje a Rua Augusta: e podemos acrescentar outras iniciativas semelhantes como por exemplo (e não só) o Pátio das Fangas da Farinha, perto do Tribunal do Boa Hora, isto já nos inícios do século XVII.


Mas avancemos um século.


Em 1771, era presidente do Senado de Lisboa o filho do Marquês de Pombal, que mantinha o título originário de Conde de Oeiras. Por decreto de 30 de maio daquele ano, é criada a chamada Sociedade para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte. Era uma espécie de empresa municipal de capitais privados, o que na época não significaria grandes mudanças na gestão… Em qualquer caso, já tivemos ocasião de referir e analisar casos semelhantes.


Pois, tal como refere o decreto, a empresa destinava-se a “sustentar os mesmos teatros com aquela pureza e o decoro que os fazem permitidos”, assim mesmo!...


Porém, já tivemos ensejo, no estudo designado “Teatros de Portugal ” (ed. INAPA 2005) de referir que nos termos do decreto de 30 de maio de 1771 é instituída uma “Sociedade para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte”. E nos termos legais, a Sociedade, de âmbito municipal mas de capitais privados, se destina, e novamente citamos, «a sustentar os mesmos teatros com aquela pureza e decoro que os fazem permitidos», assim mesmo!


É questionável, como bem se entende, a linguagem jurídica utilizada.


E transcrevemos agora o que escrevi sobre este assunto em “Teatros de Portugal”:


“pura hipocrisia, pois a Sociedade, de efémera existência, destinava-se, isso sim, a garantir a permanência em Portugal da cantora italiana Ana Zamperini, do pai, da irmã e de numerosa companhia!”


E citamos para terminar este artigo, o que Helena Sacadura Cabral escreveu no livro “Os Nove Magníficos” (ed. Clube de Autor):


«O jesuíta Gabriel Malagrida apontava mesmo o dedo àqueles que iam aos teatros, às músicas, “às danças mais imodestas”, às comédias “mais obscenas” aos divertimentos e aos touros e que, depois,  não punham o pé nas Igrejas, nas festas sagradas, nos sermões ou nas missas apostólicas.


Ora, meses decorridos sobre o terramoto, os reis teriam assistido a representações em Salvaterra do Magos. Imagine-se assim o desconforto que estas palavras não teriam causado. Tão forte que acabou por se ordenar do desterro do jesuíta para Setúbal…»

 

DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DE SÃO CARLOS EM 1875 VISTO POR JÚLIO CÉSAR MACHADO

 

Há anos, referimos um livro publicado em 1875, programaticamente intitulado “Os Theatros de Lisboa”. É seu autor Júlio César Machado, figura marcante na época e de certo modo ainda hoje. E, como então escrevemos, a edição é valorizada por cerca de 250 ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro. Fica tudo dito quanto à relevância cultural e editorial.

O livro concentra-se na evocação histórica mas sobretudo da época em foi escrito, aí como na flagrante atualidade e na abrangência cultural e documental, não obstante a seletividade das salas e dos artistas referidos. E isto porque Júlio César Machado concentra a sua evocação no Teatro de São Carlos, no Teatro de D. Maria II e no Teatro da Trindade.

São ainda hoje como bem sabemos, grandes referenciais da arquitetura e da arte do espetáculo em Lisboa e no país inteiro: mas obviamente não eram os únicos “teatros de Lisboa”, longe disso. Efetivamente, pela mesma época e mais ano menos ano, funcionavam outros teatros. Citamos não exaustivamente o Teatro Taborda, o Teatro da Rua dos Condes, Salão do Conservatório, o Teatro D. Augusto, o Teatro do Ginásio, o Teatro-Recreio Wittone, o Teatro Avenida, o Teatro das Laranjeiras e mais salas de maior ou menor relevância e durabilidade.

Mas muito embora: os três Teatros referidos no livro de Júlio César Machado eram na época os mais relevantes.

E como já escrevemos, acresce que as 250 ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro, que consagra na capa a grafia da época (Raphael) obviamente valorizam e de que maneira a edição. E isto porque as ilustrações são extremamente variadas, constituindo no seu conjunto uma ampla documentação do próprio teatro e dos teatros em geral.

Com efeito, no conjunto da escrita e das gravuras, o livro mostra-nos o que era o Teatro em Lisboa na sua perspetiva global e abrangente, mas com um distanciamento irónico. Vemos lá cenas de peças, mas também inúmeras evocações do público dos autores, dos atores.

E tudo com um distanciamento descritivo e gráfico e uma visão irónica da vida teatral da época, mas sem de modo algum menosprezar, em crítica direta ou implícita, as virtudes e as lacunas, as qualidades e os defeitos, do meio teatral, cultural, profissional e mesmo social da vida de Lisboa, representada e concentrada nos três principais Teatros.

No que respeita aos Teatros, tem-se em vista sobretudo as programações, mas também, um sentido crítico da função cultural respetiva.

Veremos agora as referências ao Teatro de São Carlos. E não haverá exemplo mais flagrante do que a primeira frase do livro, que abre a longa análise crítica ao Teatro, ao público aos artistas do São Carlos.

Diz com efeito, logo no início, Júlio César Machado:

“Serve só de inverno, como os capotes. E em se espalhando por todos os lados a melancolia do inverno aí abre ele! (…) soberbo, magnífico, e ao mesmo tempo sem cerimónia (…)

 É o teatro da corte mas pode, quem quiser, ir vestido para ali como para o quintal.

 Bom edifício.

Sala magnífica.

Artistas que têm, entre outras, uma prenda muito agradável para quem não é empresário, serem caríssimos.

Nos camarotes, na plateia, tudo gente conhecida”…

E segue-se uma descrição detalhada e irónica da atividade operística do Teatro de São Carlos, ilustrada com cerca de 45 gravuras de cenas, de público e de artistas, de elementos de apoio, desde maestros e compositores, cantores, mas também filas de espetadores, entusiasmados ou nitidamente aborrecidos…!

Reconheça-se que entretanto muito mudou: mas não tanto como seria desejável!

E voltaremos ao assunto.

DUARTE IVO CRUZ