Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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NO DESERTO CRESCE O MEU DESEJO por Camilo Martins de Oliveira
Meti a última carta do Marquês de Sarolea à Princesa de... pelo meio das outras - daquelas que já publiquei e das que irei publicando - por razões difíceis de explicar, a menos que me atreva a revelar uma intuição minha. Vale o que vale, mas cuidei de ver se seria ligeira ou temerária; creio que não é, antes se foi afirmando ao meu "pensossinto" (como diria Camilo Maria)... Ao reler, à luz dessa última carta (a que só mais tarde tive acesso), não só todas as que foram enviadas, como as endereçadas a "Minha Princesa de mim" e que nunca seguiram, ocorreu-me o sentimento fortíssimo de que a Princesa de... era, sim, a destinatária de todas as confidências, mesmo daquelas que se refeririam a outra (outras?) mulher. Camilo Maria - que era metódico e pontual - não gostava de viver no tempo. Considerava a sua circunstância, e comportava-se nela com o respeito devido aos outros e, sobretudo, aos seus próprios compromissos, mas criara para si um espaço de liberdade interior, onde respirava e vivia fora do tempo... Tudo o que aqui digo se encontra, latente ou patente, conscientemente escrito nas suas cartas. Nunca se casou com a "sua" Princesa, nunca viveram juntos, e só eles poderiam saber das intimidades que pudessem ter tido. Ele nunca falou disso, aliás era discreto e, apesar de ser homem por quem - dizia-se - muitas senhoras teriam caído, nunca ninguém lhe ouviu uma insinuação, um canto de galo. Conhece-se-lhe o fundo desgosto que lhe deu a morte prematura do filho único, e o amor carinhoso com que nunca faltou a sua mulher, cedo levada por essa grande dor que, de uma ou de outra maneira, um dia toca a nossa vida. Mas cartas de amor... não sei se escreveu outras! Só lhe conheço estas. Soam-nos no coração como confissões íntimas, ou como se fossem ditas no impulso de um mergulhador quando chega à tona de água e abre a boca. É certo que falava de tudo, tudo lhe interessava e gostava de partilhar. Mas quando falava de si, dirige, a uma única pessoa, lembranças, sentimentos, visões, esperanças íntimas, coisas que se poderiam ter passado ou ser ditas a outras, mas ele só sabe dizer à que, ele mesmo, chamou "misterioso, inesperado encontro"... Era, ou não era, essa pessoa, a destinatária das cartas? Recebeu-as pelo correio, certamente: a ela eram endereçadas. Tê-las-á recebido na alma? Terá a Princesa entendido que aquele amigo lhe dizia: "Preciso de ti, não sei porquê, pus em ti uma confiança essencial à comunicação que sempre quis ter e nunca alcancei..." Com esta confissão, começava Camilo Maria uma carta cronologicamente anterior à última que enviou à "Minha Princesa de mim". E continuava: "Despi-me, para ti, de qualquer defesa e, por ti, cobri as distâncias todas que me deixariam invulnerável. Eis-me. Não escondo, não minto, não disfarço, não calculo, não peço compensação. Espero, como quem grita nas montanhas do meu Tirol e aguarda o eco. Amor é o nome que damos ao que não tem idade e vem da fé cuja esperança é a recompensa invisível, que não se merece nem obriga. Nasceu connosco, no coração da existência. Como condenação a não sermos condenados. O amor humano é procura e sinal. Como no "Cântico dos Cânticos", poderia dizer-te o grito que lanço a Deus:
"No deserto cresce o meu desejo, por ti tantas vezes destemido. És a minha fome e o meu pedido de ver-te, Senhor, a quem não vejo...
Minha sede é seres, e só procuro a fonte da sede que me dás: no desejo de ti, vivo e duro, na sede da sede que me traz
este deserto em que sou despojo, lixo de ser graça do teu nojo... Esqueleto ebúrneo me levanto,
branco de areia, de morte e espanto, e de mim te grito a minha fome! E sei que te chamo pelo teu nome!"
Ecce homo! Mas ele não é o que a turba vê, ou julga ver. É, tão simplesmente, esse pobre de tudo que os olhos do nosso coração poderão acolher no coração de Deus. Recordo os versos finais da "Elegia do Amor", do poeta português Teixeira de Pascoaes, que o Alberto proclamava ser o mais lindo poema de amor do mundo: "Vivo a vida infinita, / Eterna, esplendorosa. / Sou neblina, sou ave,/ Estrela, azul sem fim, / Só porque um dia, tu,/ Mulher misteriosa, / Por acaso, talvez, / Olhaste para mim." Depositada esta carta de Camilo Maria, corro a outras, que contam factos do mundo exterior e mais maravilhas.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 06.08.13 neste blogue.
O futuro de Portugal, em Teixeira de Pascoaes, centra-se no seu passado.
A intenção nacionalista de Pascoaes é operar a reconversão do espírito decadente português num espírito glorioso e vencedor, exemplar para os restantes povos europeus, dignificando, deste modo, a imagem de Portugal sobre si próprio, contrariando a imagem de exterior à margem do progresso e de inferiorização que a consciência nacional tinha de si própria.
Embora não conteste a noção de decadência, deslocaliza o ponto de focagem, deslocalização essa em função da qual ganha um outro sentido a construção dessa imagem. Os descobrimentos deixam de ser vistos, como até aí, exemplo do único, verdadeiro e real apogeu de Portugal, para serem tidos como mero sinal material, visível, da que será, de facto, a verdadeira aventura de Portugal: a aventura espiritual. Em A Era Lusíada, escreve: “Sim a alma lusitana tem de completar a sua obra iniciada com as Descobertas. (…) Ela precisa, enfim, de concluir espiritualmente o que materialmente iniciou, porque a vida corpórea é o meio, mas a vida espiritual é o fim”.
Reconhece ao povo português duas grandes qualidades: o Génio Aventureiro e o Temperamento Messiânico. No tempo em que o poder de aventura se media em função do território conquistado, Portugal cumpria a sua missão dando “novos mundos aomundo”. Agora, de novo o génio aventureiro, mas em sentido espiritual, se tornava o motor da evolução humana, e novamente Portugal poderia dar “novos mundos ao mundo”. Portugal mantivera sempre as mesmas qualidades no decurso da sua existência, pelo que o seu caráter saudoso, que o leva à aventura, teria sido sempre o mesmo ao longo dos tempos. Simplesmente, o que cada época exige aos homens e às nações é que é diferente. E quando se trata de Aventura, material ou espiritual, Portugal tem sempre o poder de guia. Daí que a “Nova Era” fosse, por direito natural, lusíada. Daí que quisesse transformar a Saudade, tida como aventura espiritual, em motor de ressurgimento pátrio e, até, universal, ou seja, uma nova forma de civilização, a civilização lusitana da Saudade.
Sendo a Saudade a própria fisionomia da raça, o perfil inconfundível do povo português, quanto mais português e mais saudoso se for, mais universal se será, assentando a Nova Era Lusíada (em que de novo Portugal será guia da humanidade, mas em termos espirituais), numa conjugação entre nacionalismo e universalismo.
Com as suas “Epístolas aos Saudosistas”, publicadas na revista A Águia, em 1913, António Sérgio viria a inaugurar uma polémica célebre com Pascoaes, ao perguntar: “Quem é que vive principalmente da saudade? Os velhos, e os desgraçados a quem a morte levou uma pessoa muito querida. Ora, em ambos os casos se nota, acompanhando sempre a saudade, o horror do novo, o ódio ao movimento, um protesto contra a lei da mobilidade e do devir. Para o velho só merecem estimação as coisas do seu tempo - a juventude do seu tempo, os costumes do seu tempo, as cantoras do seu tempo. Toda a variação foi uma queda, e todo o mobilismo o indispõe”.
Na sua resposta Pascoaes irá replicar que Sérgio erra ao pensar assim, “quando afirma que a Saudade é retrógada e paralítica… Não resulta ela da combinação ativa e amorosa dos dois princípios da Vida? (…) Sim: a Saudade é a grande criadora do Futuro, mas não tira o Futuro do Nada, não consegue um Futuro de geração espontânea ou caído miraculosamente das estrelas. Ela constrói o Futuro com a matéria do Passado…”, elegendo, em Portugal, como primeiro poeta da Saudade, o Povo.
Em relação à Europa Pascoais pretende preservar a especificidade no convívio com as demais nações europeias, onde levará a cabo a sua missão providencial: “É muito possível que os povos cultos da Europa, a certa altura do seu avanço vertiginoso e científico, descansem um pouco e volvam os olhos para nós. Pois toda a sua vida se resume em duas palavras: ciência e indústria….Vida é a atividade, mas, antes de tudo, atividade de alma…” (O Paroxismo, em A Águia, Porto, 2.ª série, vol. V, n.º 30, junho, 1914, pp. 166-168).
Portugal é, porque existe uma alma autenticamente portuguesa e incontestavelmente lusitana, procurando curar o “corpo doente” pela reabilitação da sua alma, assim se aproximando e afastando da Geração de 70. Aproxima-se pela consciência de crise e pela procura de soluções para normalizar o país na sua grandeza ideal; afasta-se porque enquanto aquela, voltando os olhos para o exterior, pretendia europeizar Portugal em termos civilizacionais, já Pascoais ao impor Portugal como nação o fazia perder qualquer complexo de inferioridade em relação à Europa (em paralelo com outros, como Agostinho da Silva).
Não se pense que este providencialismo, misticismo ou messianismo, esta atração pela invenção de um país imaginário que possa eximir-se à futilidade do país real não tenha tido seguidores.
Teve-os, como o confirma o mentor do agrupamento musical mais internacional de todos os tempos da música portuguesa, Pedro Ayres Magalhães, dos Madredeus, ao afirmar: “Não há nenhum escritor da portugalidade - exceto Teixeira de Pascoes - que tenha documentado a ligação terra-espírito, que foi sempre o nosso grande trunfo. O Pessoa tem a desculpa de ter vivido sempre fechado em casa. É evidente que ele é o vate de uma grande metade da alma portuguesa - mas fica-se por aí”.
«O Essencial sobre Teixeira de Pascoaes» (INCM, 1999) de Maria das Graças Moreira de Sá constitui uma excelente síntese sobre uma das figuras mais complexas e mais ricas da cultura portuguesa do século XX, tantas vezes mal compreendido e alvo de simplificações ilegítimas.
PERSONALIDADE MARCANTE A coleção «O essencial» da Imprensa Nacional – Casa da Moeda é um exemplo da boa pedagogia e da elaboração de sínteses cuidadas e exigentes, nas quais prevalece a preocupação de tornar a cultura acessível a todos. Lembramo-nos da Biblioteca Breve do velho ICALP e de outros breviários de qualidade que constituíram bons exemplos que devem continuar a ser seguidos. Neste caso de Teixeira de Pascoaes (1877-1952), estamos diante de um caso paradigmático, em que a autora em menos de sessenta páginas nos apresenta toda a riqueza e complexidade da vida e obra de uma das personalidades mais marcantes da vida cultural portuguesa na primeira metade do século passado. Antes do mais, referimo-nos a um poeta dos mais influentes, mas simultaneamente tratamos de alguém que no movimento da «Renascença Portuguesa» e na revista «Águia» abriu a porta, muito para além do que subjetivamente poderia prever, para uma profunda renovação da vida cultural e literária portuguesa. Uma Renascença não poderia ser simples regresso ao passado, mas a consideração de que as nações pequenas só podem contrariar as tendências absorventes das grandes nações através do «carácter e originalidade do seu espírito criador». Pascoaes combateu, nessa linha, o estrangeirismo desnacionalizador e apontou a necessidade de cuidar da originalidade portuguesa – na confluência da herança europeia, céltica, greco-romana, germânica, e da influência de fenícios, cartagineses, judeus e árabes, tendo como pano de fundo o cristianismo. «Quem ler alguns dos nossos grandes escritores, sobretudo Camões e Bernardim, nos tempos antigos, e nos tempos modernos, Camilo e António Nobre, vê que a sua sensibilidade é, por assim dizer, dualista: tem alma e corpo; vibra ante a forma e o Espírito, ao mesmo tempo e com a mesma energia. Quero dizer: a emoção destes escritores nasce do contacto das suas almas humanas com a parte material e espiritual das cousas ou dos seres contemplados; e desses dois contactos resulta uma só impressão que é o seu sentimento». Daí a articulação, muito evidente em Pascoaes, entre o paganismo greco-romano (culto do corpo) com o Cristianismo judaico (culto do espírito). Unamuno fala, assim, da cultura portuguesa como um encontro do lirismo e da história trágico-marítima. E a Renascença Portuguesa enquanto impulso para diversos caminhos vai aprofundar, através da geração de 1890, o que os homens de 1870 tinham desejado e aquilo por que tinham lutado. Se lermos bem «As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» de Antero de Quental, facilmente percebemos que as suas preocupações pressupõem uma ideia de «Renascimento». A noção de decadência aí não é um caminho sem saída, é um apelo a que o sebastianismo (prova póstuma da nacionalidade) não se torne um reconhecimento de impotência, dando lugar a uma vontade libertadora. Não se esqueça, pois, que a resposta de Pascoaes não é exclusiva, ao lado dela temos o modernismo de «Orpheu», com as suas diversas «nuances», de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos até ao ortónimo de Fernando Pessoa, sem esquecer Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e etc., e depois a «Presença» e o riquíssimo movimento poético dos mais jovens (os «Cadernos de Poesia» e o que se seguiu) e a «Seara Nova», nas suas várias sensibilidades, de Sérgio, Cortesão, Proença até Raul Brandão. Dir-se-ia que a renovação ansiada por Pascoaes veio a realizar-se da maneira fecunda, multiforme, plena de diferenças e complementaridades, com um programa aberto e ciente de que o novo tempo obrigaria a cultivar o sentido crítico, a compreensão dos mitos para além de uma lógica redutora.
ENTRE O SONHO E O MITO Pode dizer-se ainda que o «heterodoxo» Eduardo Lourenço irá compreender que o sonho e o mito deveriam estar presentes e não poderiam ser esquecidos ou subalternizados – antes tendo de funcionar, não como explicação retrospetiva, mas como ligação necessária entre a sensibilidade e a racionalidade. A aventura poética e espiritual preconizada por Teixeira de Pascoaes tornou-se, assim, um desafio não redutor. E Jacinto do Prado Coelho refere que o uso da ironia pelo poeta (em especial nas últimas obras) visava «corrigir a excessiva convicção com que se acredita, nimbar a fé ou o mito duma lógica dinamizante, (…) e, por outro lado, denunciar o ridículo de tudo quanto, no homem, é hirto, convencional, tacanhez e rotina». Quando Mário Cesariny de Vasconcelos considera Teixeira de Pascoaes como poeta maior do nosso Olimpo acima de Fernando Pessoa, quando António Sérgio grande crítico do saudosismo não deixa de reconhecer o talento indiscutível do poeta ou quando o próprio Fernando Pessoa coloca o poeta num lugar proeminente – na «busca de uma Índia nova, que não existe no espaço e em que as naus são construídas ‘daquilo que os sonhos são feitos’» - muitos põem o autor de «Marânus» num lugar especial nas letras portuguesas. E Eduardo Lourenço afirma que «o verbo de Pascoaes rasura ou dissolve a nossa pequenez objetiva, onde enraízam todos os temores pelo nosso futuro e identidade, instalando Portugal, literalmente falando, fora do mundo e fazendo desse estar fora do mundo a essência mesma da realidade» - não havendo na nossa literatura diálogo-combate mais fundo e complexo que o que entrelaça as aventuras poético-espirituais de Pessoa e Pascoaes» (cf. «O Labirinto da Saudade»). A poesia é conhecimento, filosofia, religião, profecia e o seu universo imaginário pressupõe uma «multiplicidade de centros de forças». E assim, para Maria das Graças Moreira de Sá, estamos perante um poeta da sombra, mais do que do dia claro ou das trevas. Daí ter de se entender a saudade não como um estereotipo simplificador, mas como uma encontro complexo de elementos contraditórios e paradoxais. Trata-se de um sentimento simultâneo de falência e de plenitude. Duarte Nunes do Leão fala sobre a saudade de lembrança de alguma coisa com o desejo dela e Garrett liga um gosto amargo ao delicioso pungir… A saudade é necessariamente contraditória. E que é a vida? «Para agir é preciso ser antes de tudo». Há, pois, um caminho que envolve a compreensão da abertura e da complexidade, do sentimento e da razão, de modo que se possa ir à conquista do Futuro… Tendo procurado encontrar o fundo do nosso espírito e reclamando uma «Renascença», essencialmente prospetiva, como Vieira falara de saudades do futuro, Pascoaes pôs em funcionamento uma espécie de lâmpada de Aladino, deu asas à sua imaginação poética, reclamou a força criadora, explorou o sentimento complexo da saudade, mas de facto pôde fazer da revista «Águia» uma incubadora da inovação cultural…
Guilherme d'Oliveira Martins
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