Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
As meças de forças da Ordem do Templo com o poder político - e não só - foram-se sucedendo, acompanhando o crescimento daquela milícia religiosa, e do seu próprio poder financeiro e militar, aliás traduzido em praças fortes e territórios ocupados e governados por ela. Se, em 1147, o papa Eugénio III se desloca pessoalmente a Paris para assistir ao primeiro capítulo geral da Ordem, cujos cavaleiros partirão, como guarda especial do rei Luís VII de França na 2º cruzada, para a Terra Santa - expedição que foi um fracasso, obrigando o rei a colocar-se, ainda mais, sob a proteção dos Templários - já em 1153, para proteger Jerusalém, onde reinava o jovem Balduíno III, com este participam na conquista da praça turca de Ascalão e, por terem sido quarenta dos seus cavaleiros os primeiros a nela entrar, o mestre Bernardo de Trémolay guardou-a para o Templo, o que foi mal percebido... Aliás, de nada lhes valeu, antes mal lhes veio, pois acabaram por ser massacrados pelos turcos, que a ocuparam até à sua reconquista, pouco depois, por Balduíno. O sucessor deste, o rei Amaury de Jerusalém, aliado ao imperador bizantino, irá romper a aliança do reino franco com o Egipto, em 1168. Tal expedição conta com a participação dos cavaleiros do Hospital, mas Bertrand de Blanquefort, mestre do Templo, recusa a dos seus monges guerreiros... E com razão, como reconhece o cronista Guilherme de Tyr: O mestre do Templo e seus frades nunca quiseram intervir em tal operação e disseram que não acompanhariam o rei nessa guerra. Pode bem ser que se tivessem apercebido de que o rei não tinha boa razão para guerrear os egípcios, violando as convenções garantidas pelo seu juramento. Logo depois, o advento de Saladino marcará o início da decadência e queda final do reino cristão na Palestina. Mas ainda levará algum tempo, posto que, antes da morte de Saladino, em 1193, perturbações entre muçulmanos os enfraquecerão e permitirão que S. João de Acre seja reconquistada por Filipe Augusto de França e Ricardo Coração de Leão, com notório apoio dos Templários, cujo Grão Mestre era Roberto de Sablé, nobre vassalo do rei inglês e seu amigo pessoal.
Penso, Princesa, aqui neste sossego dos campos a que a aproximação do Inverno vai retirando os tons de oiro e fogo com que o Outono os cobrira, que - como tão bem o explanou Ibn Khaldun, de quem várias vezes te falei - o percurso histórico de reinos e instituições é, à imagem da mãe natureza, um surto e florescimento, um apogeu de frutos, ceifas e colheitas, um esplendor decadentista, já glorioso como um canto de cisne moribundo, e finalmente um esquecimento silencioso, onde apenas os olhos do coração vêem o invisível...
Para a Ordem do Templo, a dos Pobres Cavaleiros de Cristo, a secreta fecundidade do Inverno deu-lhes nova vida nos reinos ibéricos, ainda a braços com o fim da Reconquista e a ameaça costeira de piratas mouros, já tentados por aventuras africanas e, ainda, pelo rodeio do aperto islâmico através da circunvalação de África e o acesso ao riquíssimo comércio do Oriente longínquo. Assim se transformaram, em Portugal, os Templários em cavaleiros só de Cristo, e a Ordem desempenhou o papel de sustento, até financeiro, das Descobertas.
Já não me recordo da data em que te escrevi as linhas acima, nem sequer se foi no Outono passado ou noutro anterior. Mas lá falo da aproximação do Inverno... Hoje, ocorreu-me vir recuperá-las, lembro-me ainda de que iniciavam uma carta que era sequência de outras que te enviara. Assim sucede agora, por ter lido, no Figaro Littéraire deste 6 de dezembro, a resenha de um livro da professora italiana Simonetta Cerrini, agora traduzido para francês, com o título Le Dernier Jugement des Templiers (Flammarion, 2018). Tal obra vem ao encontro do que há muito penso e já em parte te dissera: houve (e há) mais fantasia e muito gosto de fábulas misteriosas - do que trabalho aturado e sério de investigação - em muito do que por aí se tem contado dos Templários. O livro da historiadora Simonetta Cerrini, doutorada pela Universidade Católica de Milão, deve certamente ser obra fundamentada e documentada, até porque a autora há muito se dedica ao estudo da Ordem do Templo. Não resisto a deixar-te aqui um trecho longo e elucidativo da resenha feita, no Figaro, por Paul-François Paoli. Traduzo:
Ela retraça a história do que acha que constitui o primeiro grande processo político da história de França, enquanto nos vai propondo uma leitura dos documentos da época. Designadamente, a decifração de uma bula do papa Clemente V, Vox in excelso, datada de 22 de março de 1312, e da qual encontrou várias cópias. Nela o papa aprovava a dissolução da Ordem dos Templários, sem contudo se solidarizar com os métodos de terror utilizados por Filipe o Belo, que acusava os cavaleiros de todos os pecados do mundo... ... As acusações que Filipe o Belo levantava contra esses briosos que haviam feito voto de pobreza e castidade, e cuja missão era, na origem, proteger os peregrinos que partiam para as cruzadas [melhor dito, penso eu : para a Terra Santa] eram as piores que se podiam fazer. A mais grave era a heresia e a blasfémia, sem esquecer a avareza, a acumulação de riquezas, a sodomia, etc. Para a historiadora, que recorda que Dante, no Purgatório, acusa Filipe o Belo de cupidez e crueldade, não há qualquer dúvida de que o grande culpado de todo este caso é o próprio rei, que quer deitar mão às riquezas de uma Ordem cujos membros se pensa estarem ao serviço dos pobres. Não é que os Templários nada tivessem de censurável, pois até Jacques de Molay, seu derradeiro grão mestre, desejava reformar essa contestada Ordem. Mas o que surge patente, ao correr das páginas, é o carácter monstruoso da maquinação de Filipe o Belo, cujos métodos parecem prefigurar os piores processos por bruxaria dos estados totalitários...
Quase a fechar esta, vou a palavras da própria Simonetta Cerrini, onde encontrarás lembranças de apontamentos feitos nas minhas cartas sobre Templários, escritas após uma visita especial ao Convento de Cristo, em Tomar, onde o nosso guia povoou o cenário de fantasmas. O que me traz escritos e datas à memória: são nove (9!) cartas que te escrevi, publicadas depois pelo blogue do CNC entre 23 de outubro e 27 novembro de 2016. Escreve a professora Cerrini no seu último livro:
Nenhum soberano seguirá o rei de França nessa cruzada contra o Templo... ... Quando o papa Clemente alargou o seu inquérito a todos os países que albergavam casas templárias, deve ter-se apercebido, ainda que demasiado tarde, de que Filipe o Belo tinha criado, não só uma bolha financeira, mas também uma bolha místico-mediática destinada a apoiar um "Estado totalitário", sobre cujo altar os guardiães do Templo de Salomão deviam ser sacrificados.
Tardia embora, a "revisão" papal todavia permitiu a "conversão" da Ordem do Templo noutras novas ordens. Em Portugal, como sabemos, na de Cristo, por vontade também, e militante, d´El-Rei Dom Diniz, o Lavrador. Este monarca foi muito ativo em política de consolidação da soberania portuguesa e reforço do poder régio. O que explica como, durante o seu reinado, as relações com o papado tivessem sido muito marcadas por questões relacionadas com as ordens religiosas militares. Assim, é nessa época que os cavaleiros portugueses da Ordem de Santiago passam a eleger, direta e separadamente de Castela, o seu mestre. E, após a extinção papal da Ordem do Templo, Dom Diniz opõe-se à entrega dos seus pertinentes bens à Ordem do Hospital, e à própria Igreja, colocando-os sob a alçada da coroa. Finalmente, consegue, em 1319, que o papa João XXII institua, pela bula Ad ea ex quibus, a Ordem de Cristo, bem portuguesa, recetora de todos os bens dos nossos Templários.
Assim te voltei a falar dos Templários, cumprindo, Princesa de mim, o desejo que formularas, e sorrindo amareladamente à lembrança de que já em tempos idos - sem tweeters, televisões, rádios, revistas e jornais - os autores políticos criavam histórias e lançavam caçadas a possíveis bruxas, em busca de um conveniente desenho de bodes expiatórios que vocacionassem iras... Hoje, democraticamente, tal panorama alastrou e quotidianamente vai tentando preencher os nossos horizontes. Os debates de ideias e projetos vão cedendo espaço à multiplicidade dos ataques ad hominem, a promiscuidade do aparelho judicial com o mediático vai gerando borradas confusões, juízes e processos em justiça tornam-se actores e cenários de outras guerras e disputas. O celebrado, consagrado princípio da separação de poderes (o executivo - e o moderador - o legislativo e o judicial) cada vez mais dificilmente consegue afirmar a independência judicial, quer por não se conseguir libertar este poder da contínua conspiração política em que vivemos, quer por demagogicamente o substituírem pela chamada comunicação de massas (pelas redes públicas e pelas ditas sociais). Um dos mais graves problemas a resolver nas democracias hodiernas tem, precisamente a ver com a afirmação, estruturação, disciplina e independência erga omnes do poder judicial e seus aparelhos.
Não será esta carta para ti, Princesa de mim, o foro curial para uma reflexão sobre tão complexa questão política, jurídica e comunitária. Mas todavia - quiçá por tanto me enjoar o meu desgosto das comuns intrusões na privacidade alheia, dos processos de intenções, das sistemáticas violações do direito ao bom nome e ao juízo justo (ter-nos-emos esquecido desse ensinamento que nos deram quando crianças - do próximo, ou bem ou nada - ?), sim, Princesa, talvez por isso, não resisto a falar-te do último livro da historiadora britânica da cultura, Tiffany Watt Smith: Schadenfreude: The Joy of Another´s Misfortune, Little, Brown Spark, 2018). Este título recorre à união de dois termos germânicos (Schaden, prejuízo, pena, e Freude, alegria) para exprimir o sentimento mesquinho que é a satisfação pelo mal infligido ou acontecido a outrem. Não te contarei aqui as várias teorias que a autora refere para explicação de vício humano tão antigo. Até os gregos já o denunciavam, designadamente por palavra atribuída a Aristóteles: epichairekakia. Mas pretendo salientar a observação que Tiffany Watt Smith faz de que os tempos hodiernos são a idade de ouro da alegria malévola (ou do gozo malevolente). As redes sociais, ao abrirem-nos múltiplas oportunidades para nos maldizermos uns aos outros, lisonjeiam os nossos instintos mais baixos e proporcionam-nos algumas miseráveis delícias.
Perante tão afligente panorama, mais intensamente pensossinto a necessidade imperiosa de um pacto do regime democrático que veicule a construção política de um sistema de justiça que possa cumprir, tanto quanto possível, a sua finalidade, isto é, dar a cada um o seu direito: jus suum cuique tribuendi, dizia Ulpiano, que tanto gosto de citar. Tal aparelho terá, provavelmente, de ser concebido fora da lengalenga habitual da limitada imaginação política reinante, de forma a assegurar a sua imprescindível independência e a necessária transparência dos seus procedimentos. E para nos ir ajudando a acabar com essa praga de "processos públicos", tão tristemente marcados por intenções persecutórias e sanhas ou, ainda, em contradição, por habilidades e manobras dilatórias e encobridoras... Até chego a perguntar-me se, ao fim e ao cabo, não andarão por aí muitos mais culpados em liberdade (mesmo que relativa, vigiada ou condicionada), do que menos culpados em prisões.
A Regra que governava os Templários teve certamente forte influência de São Bernardo, o ritmo dos dias conventuais era marcado pelas horas canónicas ou ofícios divinos, as celas eram sóbrias, o silêncio era disciplina geral, só a dieta lhes permitia maior consumo de carne: afinal, se frades eram, guerreiros lhes cumpria ser, precisavam de forças... Será difícil para um espírito hodierno entender essa obsoleta figura de monge guerreiro, em que se confundem a vocação religiosa e a militar ou bélica.
As cruzadas devem ser entendidas à luz das sociedades e dos sobressaltos da época: dois séculos depois da queda do Império Romano do Ocidente, ou latino, a Europa debate-se numa barbárie caótica, de que irá procurar sair, sobretudo por força da cristianização dos bárbaros e do labor civilizacional da Igreja. E o surto islâmico irá conquistar e ocupar, não só os territórios africanos e palestinos do Império, mesmo os que sobraram para Bizâncio, como muitos da Ásia Menor, tirados à já Constantinopla e aos Persas. E a Península Ibérica. Sabes, Princesa de mim, como nestes cenários em que a vontade política - essa afirmação da força do poder temporal e bélico - sobreleva o gosto da paz, tão chão dos povos e dos seus soldados possíveis, e podem ser arrastadas, arrasadas e esquecidas afinidades e pertenças mútuas, amizades e fronteiras aceites de convívio e entendimento...
As Cruzadas, a exemplo da Jihad, foram isso também, mas o que mais me chocou nessa saga foi o orgulhoso afrontamento entre cristãos latinos e gregos... Constantino, dando, em 330, a Bizâncio o nome de Constantinopla, fez dela uma nova Roma, capital do Império. Mas o Império, institucionalizado cristão, guardaria a saudade fundadora do martírio de Pedro na antiga capital-símbolo...
Facto é que o Império Romano do Oriente sobreviveu ao do Ocidente, sendo assim o rei dos reis na terra, o depositário do poder divino da realeza, o imperador bizantino. Mas Pedro, o primeiro papa, instalara-se e fora martirizado em Roma, de que era bispo. Por isso o imperador lhe reconhecia o primado honorífico, e a dado passo chegou mesmo a recorrer à sua arbitragem, sobretudo quando não lhe agradavam ou convinham as sentenças do patriarca bizantino. Por outro lado, não te esqueças de que o próprio São Gregório Magno, grande reformador da Igreja e papa de 590 a 602, se reconhecia, no plano temporal, súbdito do imperador de Constantinopla. Esta circunstância de tensão e animosidade latente - em que a questão da afirmação do poder até no plano religioso, determinou excomunhões mútuas - acabaria por conduzir ao Grande Cismo e, em 1204, à conquista e saque de Constantinopla pelos cruzados do ocidente.
Todavia, muito embora a coroação, pelo papa de Roma, de Carlos Magno como Imperador tivesse escandalizado o Império Bizantino, este acabara por aceitar que tal dignidade fosse reconhecida aos Carolíngios e, mais tarde, aos Otonianos, ainda que mantivesse a convicção de que, tal como há só um Deus e um só lugar tenente, também o Império é indivisível, pelo que, mesmo tendo o título de Imperador, o do Ocidente não podia ser, como o de Constantinopla, Imperador dos Romanos... Como vês, é sempre a "política".
No plano propriamente religioso, ambas as tradições - romana e bizantina, grega ou latina - professam o Credo dos Apóstolos e comungam no mesmo Corpo de Cristo. Podem divergir em interpretações, calendários e ensino, mas nenhuma é considerada herética pela outra; podem variar formas de culto, línguas e liturgias, mas não esqueças que, no seio da mesma Igreja romana, por exemplo, se celebravam os ofícios divinos de acordo com ritos tão diferentes como o próprio romano, o moçárabe ou o visigótico. Afinal, o cristianismo sempre se deu com aculturações, tal como nunca deixou de sofrer tentações de autoritarismo, de vocação totalitária. Estas explicam o porquê de inquisições e perseguições, sobretudo quando divergências doutrinais pareciam ameaçar determinados processos de consolidação social e política. Há muitas histórias de guelfos e gibelinos, a compita entre papado e império, poder religioso e político, Igreja e Estados foi mudando de forma para permanecer...
O processo dos Templários, a extinção da Ordem pela bula papal Vox in Excelso, bem como a respetiva recuperação pela sucessão atribuída a outras - como a de Cristo em Portugal - é quase vinte anos posterior ao fim da ação dos cavaleiros na Terra Santa, que a perda de São João d´Acre, em 1291 assinala. Resulta da presença templária numa França onde Filipe o Belo afirma o poder real e não gosta da dependência financeira em que a coroa está: na verdade, a Ordem do Templo é então o banqueiro dela. Noutros reinos, como Aragão, Castela e Portugal, o confronto da Reconquista continua e a vizinhança dos muçulmanos magrebinos é um facto. É aí bem diferente a circunstância da milícia templária.
Jerusalém, hoje ocupada pelos israelitas, há muito tem sido motivo de afrontamentos e conflitos, objeto de veneração e desejos de posse, como bem sabes. A cidade do Templo judaico é santa, também, para cristãos e muçulmanos, centro de orações, destino de peregrinações. Para os cristãos assim é, intensamente, desde o século IV.
A sua conquista, em 614, pelos persas será anulada pela reconquista do imperador cristão bizantino Heráclio, catorze anos depois. Mas a expansão islâmica, pela jihad, no Médio Oriente e Norte de África, permitiu a sua ocupação pelo islão e veio dificultar, por vezes com violência persecutória, o seu acesso aos peregrinos da cruz. Lembra-te, todavia, de que o califa Omar, que ocupou a Cidade Santa em 637, respeitou a rotunda do Santo Sepulcro de Cristo, tornando Jerusalém santa também para o Islão, até porque Jesus é profeta maior no Corão.
Carlos Magno conseguiu, no século IX, autorização dos califas para as visitas de cristãos peregrinos e, mesmo, para a instalação de mosteiros. Mas o advento do califado Fatimita, que ocupou Jerusalém em 965, estragou tudo, já que o califa Al-Haquim, fanático e perseguidor de judeus e cristãos, destruiu, em 1009, aqueles lugares santos. Seguiu-se um período de exclusão dos cristãos, até 1054, ano em que o imperador bizantino conseguiu um acordo com o califa fatimita da altura, acordo em que, inclusive, se previa a reconstrução da Rotunda. Mas o triunfo dos Turcos Selêucidas voltou a trazer perseguições e a impedir peregrinações, massacrando os participantes. Até que Godofredo de Bulhão, com seus cruzados (a primeira cruzada fora lançada pelo papa Urbano II em 1095), a conquista em 1099.
Nasce então o reino cristão de Jerusalém, que terá de ser defendido. Tal como deverão ser protegidos, no seu caminho para lá, os fiéis cristãos que, tendo atravessado o Mediterrâneo, por terra vão chegar ao Santo Sepulcro. Em 1118, nove nobres cavaleiros francos decidem consagrar as suas vidas a essa tarefa de proteção dos peregrinos e congregam-se numa milícia a que chamam Cavaleiros Pobres de Cristo. Serão, no reinado de Balduíno II de Jerusalém, apelidados Templários ou Cavaleiros do Templo, depois de o rei lhes ter cedido, para residência na Cidade Santa, parte do seu palácio do Templo. Apoiados por São Bernardo de Claraval, o grande reformador cisterciense, distinguiram-se entre as ordens religiosas militares.
Escreve aquele abade no seu De laude novae militiae (1130): Os Templários vivem sem nada terem de seu, nem sequer vontade própria. Vestidos com simplicidade e cobertos de poeira, têm o rosto queimado pelos ardores do sol, olhar brioso e severo; quando o combate se aproxima, armam-se de fé por dentro e de ferro por fora; as suas armas são seus únicos ornamentos; delas se servem com coragem no meio dos maiores perigos, sem temerem o número nem a força dos Bárbaros: toda sua confiança está no Senhor Deus dos Exércitos; e combatendo pela Sua causa, procuram uma vitória certa ou uma morte santa e honrosa. Ó feliz modo de vida, no qual se pode esperar a morte sem medo, desejá-la com alegria, recebê-la com segurança!
Não esqueças, Princesa, que os templários cedo desempenharam também um papel reconhecido na reconquista cristã da Península Ibérica, tal como os monges de Cister no povoamento de Portugal, onde os seus grandes mosteiros foram centros promotores da colonização agrícola do território. As terras geridas pelo de Alcobaça, por exemplo, estendiam-se por cerca de 45 mil hectares! E o território confiado à proteção permanente dos Templários cobria, tal como as atribuídas a outras ordens de cavalaria, parte considerável do território nacional em consolidação, situando-se os principais castelos da Ordem do Templo em Tomar, Castelo Branco, Soure e Almourol. A presença dessas ordens militares e suas fortificações na Península Ibérica justifica-se pelas guerras da Reconquista, aliás vistas como cruzadas. Mas - até 1291, quando, a 28 de Maio, cai a cidadela cristã de São João d´Acre - o centro da vida templária era a Palestina, muito embora continuassem em França as suas raízes, e em Paris a sua casa principal, que desde o século XII recolhia depósitos das finanças reais. Aliás, voltarei a falar-te nisto, quando nos debruçarmos sobre a queda em desgraça e extinção da Ordem do Templo...
Por hoje, recorro a La Vie des Templiers (Paris, Gallimard, 1974), de Marion Melville, com vários testemunhos coevos da vida dos cavaleiros em Jerusalém, por me parecer interessante "entrarmos" naquele ambiente:
«Entre as muralhas de Jerusalém e a Porta Dourada encontra-se o Templo. Há aí um espaço mais comprido do que um grande traço de seta, e com a largura de um lançamento de pedra, e daí se chega ao Templo. Esse espaço é lajeado e, passando o seu portal, encontra-se à esquerda o Templo de Salomão, onde moravam os Templários». Do terreiro sobem degraus até à Cúpula do Rochedo, o Templum Domini, onde os cavaleiros passeavam nas horas de lazer. O Templo era uma cidade na cidade, uma fortaleza na fortaleza.«À direita, do lado meridiano, encontra-se o palácio que dizem ter sido construído por Salomão. Nesse palácio ou edifício, vê-se uma cavalariça de tão maravilhosa e grande capacidade, que pode abrigar mais de dois mil cavalos ou mil e quinhentos camelos. Os cavaleiros do Templo têm muitos edifícios atinentes ao palácio, largos e amplos, com uma igreja nova e magnífica, que ainda não estava acabada quando a visitei» [...] O refeitório a que os judeus insistiam em chamar palácio era uma vasta sala abobadada e com colunas. Os muros estavam ornamentados com troféus de armas, desses que os Templários usam para decorar as igrejas: espadas, elmos forrados a damasco, escudos pintados, cotas de malha dourada tomadas ao inimigo. Os escudeiros arrumavam as mesas ao longo das paredes e cobriam-nas de toalhas de pano antes das refeições; os primeiros a chegar sentavam-se de costas para a parede, os outros à frente deles. Só o mestre e o capelão do convento tinham direito a lugares reservados. Juncavam-se as lajes de canas, como em todos os castelos, e apesar da proibição de os Templários caçarem, não faltavam cães deitados debaixo das mesas - e gatos também - sendo proibido dar-lhes os restos destinados aos pobres... Segundo João de Wirtzburg, «a casa do Templo dá esmolas suficientemente grandes aos fiéis de Cristo e aos pobres, mas nem chega ao décimo do que dá o Hospital». Todavia a caridade do Templo era grande e feita com muita cortesia. «E ainda é mandamento da casa que os irmãos, quando são servidos de carne ou de queijo, que cortem a sua peça de tal maneira que chegue para eles e fique a mesma bela e inteira tanto quanto possível... E assim se estipulou para que a peça fosse mais honrosa para ser dada a qualquer pobre envergonhado, e fosse mais honroso para o pobre aceitá-la».
Poderá soar-nos basto medievo este mandamento, que nos remete para um sentimento de honra eivada de brio. Mas não esqueçamos a sua inspiração cristã, essa boa novidade que foi a afirmação da igualdade intrínseca de todos os seres humanos, pois todos têm a mesma dignidade aos olhos de Deus. E nesse seu fundamental princípio assenta o dever - e a graça - do respeito mútuo, sem o qual não é possível haver caridade. Nem tampouco, dizemos nós hoje, democracia e justiça. Deixo-te, Princesa, a meditar nisto até à próxima carta...
Venho a escrever-te cartas afinal respeitantes à nossa experiência de uma "aventureira" visita aos monumentos dos Templários em Tomar. Sai-me tudo de lembranças que tenho e guardo, mas vou sempre procurando encontrá-las também em escritos pertinentes a outras memórias, que sustenham e sustentem as minhas. Assim me funcionou, desde há muito, o espírito: não tem relação com a realidade, que não passe pela memória. Terei de me explicar melhor - se o conseguir - sobre o que aqui quis e acabo de dizer. E do meu receio tão íntimo: será que a nossa cultura hodierna - a do esquecimento por desenfreado apego à novidade - poderá acabar connosco? Isto é: estará cada um de nós condenado a desaparecer, ou seja, a olvidar-se, a já não saber situar-se, só por ignorar o passado e ser projetado no que acaba de se inventar na história e que nunca aconteceu, e apenas calha agora imaginarmos... Estaremos, dia a dia, a criar notícias que pareçam factos? A consciência do nosso passado - ou, simplesmente, da representação dele que nos foi transmitida - também nos constitui, na cultura onde nascemos. Dá-me, por vezes, amargo riso, Princesa, ver como tanto se desautorizam tradições antigas que, se bem lidas, podem ser documentos úteis ao nosso entendimento da vida e da cultura dos nossos tempos idos e do nosso atual, e em vez delas, sofregamente se devoram narrativas sem qualquer fundamento além da sua própria fantasia, nem outro objetivo além da sua pretensão, pseudocientífica, a baralhar, confundir e destruir memórias. Pode haver passado e passado, isto é, factos ocorridos e narrativas da sua tradição. Mas estas também são passado nosso, são a nossa cultura, aquilo que os nossos antepassados, em gerações sucessivas, nos foram transmitindo. São parte do ar que respiramos. Não te quero dizer com isto que abandonemos a investigação histórica e arqueológica, isto é, a busca do apuramento possível das realidades factuais que sustentaram aquelas narrativas. Antes pelo contrário, tal demanda ajudar-nos-á a entender melhor o significado, sentido e mensagem, das tradições acolhidas. E, quiçá, a separar, na nossa cultura, o trigo do joio, ou seja, a bondade do preconceito. Recebemos uma história, que também é uma certa visão do mundo. Podemos e devemos interrogá-la, procurar-lhe os fundamentos. Mas não podemos rescrevê-la ao sabor dos nossos desejos ou fantasias.
Não se inventa a história, o passado é incorrigível. Podemos, quando muito, procurar conhecê-lo e reconhecê-lo melhor, mas não temos o direito - penso eu, com o coração, Princesa -de pôr lá o que lá não esteve. Quem, através de exercícios pretensiosamente cabalísticos, sem qualquer análise nem fundamentação, pretende substituir trabalho sério por invenção leviana, antes pensasse em escrever só pura ficção, dessa que pode ser romanesca, policial, política ou "científica". Divertir e fantasiar não é crime nem maldade, muito pelo contrário. E até pode ser uma forma de nos interrogarmos sobre o sentido e saúde mental do que, por aí, com muita distração, se vai pensando acerca da vida e do mundo, de nacionalismo, democracia, economia e justiça, por exemplo. Aliás, curiosamente, essas novelas, escritas e filmadas, que se multiplicam na suposta "revelação" de segredos e escândalos, talvez não passem, também, de manifestações da corrente idolatria do dinheiro e da fama: vendem-se...
Mas enfim, Princesa, isto talvez seja rezinga de velho relho, está despachado o desabafo. Por feitio, ou por ter chegado a idade menos paciente para certos arroubos, borbulho com o frenesi dos que, com pouco trabalho e nenhum estudo, proclamam verdades secretas, sensacionais descobertas e novidades. Tal como - várias vezes te lo disse - embirro com os chamados (erradamente, penso) fundamentalismos, na medida em que se definem por uma obsessão com os limites de um campo de consciência. Porque, afinal, me faz pena que uma geração não saiba usufruir de uma imensa riqueza cultural, saborear as diversas versões de factos históricos, ideias concordantes e discordantes, debates e discussões, toda uma procissão de gentes como nós que se puseram em busca, e nos deixaram sinais na estrada...
Pensa que, ao tempo de frei Tiago Voragino, não havia internet nem wikipédias, nem sequer livros ou jornais impressos... Os manuscritos existentes, com mais ou menos iluminuras, eram pacientemente copiados em mosteiros, conventos e cabidos, e a respetiva consulta fazia-se in loco. Tal circunstância tornava demorada e laboriosa a tarefa a que hoje chamamos consulta bibliográfica. Assim, é tanto mais espantoso o rol de fontes informativas e citações constantes da Legenda Aurea, redigida por volta de 1275. Só para um dos três sermões que o Voragino escreveu sobre o Baptista - este, que tenho à frente, sobre a degolação do Percursor - o seu autor recorreu às fontes seguintes: Mitrale, de Sicardo de Cremona; História Escolástica, de Pierre le Mangeur; Libri Antiquitatum, de Flávio José; Commentarium in Mattaehum, de Hraban Maur; Sermões, de Sto. Agostinho; Commentarii in epistulas Paulinas, de São Jerónimo; Historia Eclesiástica, de Rufino; Historia Tripartida, de Cassiodoro; Historia Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia; Summa, de Beleth; Crónica, de Sigisberto de Gembloux; In gloria martyrum, de Gregório de Tours; Historia dos Lombardos, de Paulo Diácono; Diálogos, de Gregório Magno. É claro que também textos desses encerram lendas e boatos e veiculam mais tradições e contos do que verificações históricas. Mas não deixam, por isso, de retratar universos mentais, referências de crenças e devoções, tradicionais e coevas. Voragino, aliás, recebe umas melhor do que outras, aqui e ali até emite críticas ou dúvidas. Faz trabalho sério.
As festas a cuja celebração se refere - todas à volta da degolação ou decapitação de São João Baptista - eram, ao tempo, quatro, conforme estabelecido no Ofício Mitral de Sicardo de Cremona: a primeira, ainda hoje celebrada a 29 de Agosto, é a do próprio martírio; a segunda é a da cremação e dispersão dos ossos do santo; a terceira celebra a invenção ou descoberta da cabeça decapitada (hoje celebrada com a primeira); a quarta tem a ver com a translação do dedo e a dedicação da igreja que lhe foi consagrada por Santa Tecla. Levo-te à festa da descoberta da cabeça, de que já te falara em cartas anteriores, precisamente por ser a que refere a mesma que nos foi lembrada, na charola do Convento de Cristo em Tomar, esculpida no topo de um capitel. Traduzo-te passos do texto do Voragino:
Em terceiro lugar, comemora-se em razão da Invenção da sua cabeça. Porque diz-se que foi nesse dia que a encontraram. [cf. relato da audiência de Bento XVI em 29 de Agosto de 2012, em Castel Gandolfo] Segundo o livro XI da Historia Eclesiástica, João foi detido e decapitado na prisão de um castelo da Arábia, chamado Macheronte, mas Herodíade mandou transportar a cabeça para Jerusalém, e enterra-la, com precauções, junto à casa de Herodes, temendo que o profeta ressuscitasse se a cabeça fosse enterrada com o resto do corpo. Mas segundo a Historia Escolástica, ao tempo do imperador Marciano, que começou a reinar no ano do Senhor de 452, João revelou a localização da sua cabeça a dois monges que tinham vindo a Jerusalém. Apressaram-se a ir ao antigo palácio de Herodes, e encontraram a cabeça em sacos de pele de cabra, que, a meu ver, provinham das vestimentas que o santo trazia no deserto... A seguir, o Voragino conta que, depois, um oleiro de Emesa se juntara a eles e, avisado, em sonhos, por São João, fugira com a cabeça para a sua cidade. Mais tarde, confiou o segredo a sua irmã, e assim ele foi sendo confiado, por gerações sucessivas, a legítimos herdeiros, até São Marcelo, a quem o Percursor, em visão, deu o beijo da paz e revelou a urna onde se conservava a cabeça, a qual foi então colocada numa igreja, para lhe ser prestado o devido culto. Finalmente, por intervenção imperial, a relíquia iria parar a Constantinopla e guardada noutra bela igreja. E depois? - perguntas tu, Princesa de mim... Depois, a cabeça passou para as Gálias, para o Poitou, no reinado de Pepino, e pelos seus méritos muitos mortos foram ressuscitados - responde frei Tiago Voragino, que a seguir conclui o seu relato do movimentado destino da cabeça de São João Baptista:
E, tal como foram castigados Herodes, que mandara decapitar João, e Julião o Apóstata, que ordenara que lhe queimassem os ossos, igualmente foram punidas Herodíade, que sugerira à filha que pedisse a cabeça, e a própria rapariga, que a pedira. Há quem diga que Herodíade não foi, afinal, condenada ao exílio, nem morrera em Lyon: enquanto segurava a cabeça de João, e rindo o insultava, por vontade divina a cabeça soprou-lhe na cara e ela morreu naquele instante. Eis certamente uma narrativa popular, e convém atermo-nos à versão, anteriormente contada, de que ela acompanhara Herodes no exílio e nela tivera um fim miserável; esta é, aliás, a versão que os santos narram nas crónicas. Quanto à filha dela, um dia em que passeava sobre o gelo, este quebrou-se debaixo dela e levou-a para o fundo da água, onde se afogou... Uma crónica afirma que a terra a engoliu viva, coisa que podemos entender à maneira do que se diz dos egípcios que foram engolidos pelo Mar Vermelho: A terra devorou-os [Êxodo, 15, 12].
Atenção, Princesa, olha que o Pepino acima nomeado não é O Breve, avô de Carlos Magno, mas, sim, o neto deste, Pepino I da Aquitânia que, em 817, mandou construir a igreja de São João, ao que dizem, para albergar a relíquia, e assim ali, em Angély, se ergueu a abadia beneditina de Saint Jean d´Angély. O sítio foi estação de um dos itinerários do Caminho de Santiago. A abadia foi destruída e reconstruída mais de uma vez, sendo que, por volta de 1562 (creio), durante as Guerras das Religiões (entre católicos e huguenotes) foi alvo de atentado que provocou incêndio em que ardeu a pretensa cabeça se São João Baptista. Todavia, a devoção a esta manteve-se, e outras "candidatas" havia, como te referi em carta anterior, quer em França, quer noutras localidades e templos das igrejas cristãs romana e orientais, e mesmo em mesquitas. Não te esqueças de que o Profeta João também aparece no Corão. Nem de que a cidade de Emesa, acima mencionada, viria, com a ocupação muçulmana, e até hoje, a chamar-se Homs. Fica na Síria, a uns sessenta quilómetros do famoso Crac dos Cavaleiros, castelo fortificado que os cruzados levantaram e chegou a ser governado pela Ordem dos Hospitalários. Mas os Templários é que ficaram com a fama da devoção (até já lhe chamaram adoração!) da cabeça de São João Baptista...
Mas disso, e de outros boatos sobre Templários falaremos em carta próxima. E, já agora, para acabar esta: está também na Síria, em Damasco, cidade capital, a Grande Mesquita dos Omíadas (séc. VII), que alberga um santuário onde alegadamente se enterrou essa cabeça, e onde uma tradição muçulmana pretende que Jesus comparecerá, no fim dos tempos.
Em curiosa visita à igreja de Nossa Senhora dos Olivais e ao Convento de Cristo, em Tomar, escutámos muitas narrativas, considerações, suposições e efabulações sobre os Templários e a Ordem de Cristo, as suas secretas filiações espirituais, místicas e religiosas, os símbolos de todas elas sendo apontados e descobertos ao longo dos nossos percursos, diurno e noturno, este permitindo que a súbita incidência de um raio de luz sobre uma inscrição, um baixo ou alto-relevo, uma escultura, uma pintura, fosse revelando insuspeitáveis segredos... Digressão incontestavelmente divertida, estimulante das imaginações.
A aparição gritante, num capitel da charola, de uma cabeça degolada de São João Baptista deu azo a prolongados comentários ao suposto "joanismo" dos monges guerreiros - e pertinentes mistérios e rituais... tal como a imagem de Santa Maria Madalena foi proposta para nos demorarmos em lendas e narrativas acerca da amiga de Jesus, seus alegados amores, e a importância que ganhou o movimento "magdalenista" e o seu culto, designadamente no "Midi" francês: Provença e Languedoque-Rossilhão, também país de eleição dos Templários em França. Onde se confundiram os mesmos com gnoses e cátaros... Pelo meio, surgiram também outras confusões: de sinópticos com canónicos, de apócrifos com gnósticos, etc. Os evangelhos sinópticos, Princesa, como bem sabes, são três (Mateus, Marcos e Lucas), os canónicos quatro (esses mais o de João). E chama-se, isso sim - por oposição a canónicos - apócrifos aos escritos excluídos da Bíblia (desde livros do Antigo Testamento a evangelhos, epístolas e atos de apóstolos) os que não foram, finalmente, recolhidos pela Igreja - num processo que durou do século II ao IV - para a liturgia e instrução dos seus fiéis (os livros escolhidos são, portanto, os canónicos).
Entre os escritos apócrifos (do grego apókryphos, isto é, secreto, velado; por isso Apocalipse quer dizer revelação, retirada do véu que encobre) estão uns designados gnósticos; convém todavia observar que nem os chamados apócrifos são todos gnósticos, nem os que assim são designados são sempre, em rigor, apócrifos bíblicos, e até os há sem necessária relação ao judio-cristianismo. Gnóstico vem do grego gnosis, conceito de cujo significado te falarei mais tarde. Mas irei primeiro ao Evangelho de Maria, que nada tem a ver com Nossa Senhora, Mãe de Jesus, mas é o apócrifo Evangelho segundo Maria Madalena. Começarei por esse, de que te traduzirei trechos da versão francesa de Françoise Morard (em Écrits Apocryphes Chrétiens - II, La Pléiade, Gallimard, Paris, 2005), que, em nota introdutória, nos informa situar-se, de acordo com investigadores autorizados, a data de composição do Evangelho de Maria em meados ou na 2ª metade do século II. Informa ainda que ele é o primeiro escrito do códex de Berlim 8502, um papiro adquirido no Cairo, em 1896, por um sábio alemão, e conservado no Departamento de Egiptologia dos Museus Nacionais, na capital alemã. A ele irei, Princesa, na próxima carta.