Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Viver fora do tempo? por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Tem sido esta a minha sina: viver fora do meu tempo, e sempre necessariamente nele. Será estúpido, talvez, irrealizável certamente. Mas é assim, e mais não posso. Não é presunção, nada tem a ver com desejo ou vontade. É, simplesmente, um olhar do coração a fazer com que a cabeça esteja aqui e além. Também não é difícil, é tão só uma tensão, simultaneamente dolorosa e muito feliz, entre o que surge possível e o que impossivelmente me chama. Não te direi a ti, a quem digo tudo, que seja estar entre a realidade e o sonho... Antes será estar entre esta realidade, que vemos, e outra, em que gostaríamos de nos ver. E onde seja possível estarmos. Como diria o padre Cardonnel (no "Deus é Pobre"?): "o pecado é a paixão dos nossos limites"! É não entender que tudo, tudo, muda sempre... E que, precisamente por isso, só somos nós sendo na mudança... Mas sendo nós. Ser eu e a minha circunstância - como diria o Ortega - é viver o drama, a tensão, desse paradoxo." É estar e não ser o que se está", como tantas vezes repetia o nosso Alberto, no seu português materno que, não sendo língua de filósofos, tão bem intui essa ferida genética da condição humana, essa permanente dor que é o rasgão entre o ser e o estar.
Na papelada escrita nos anos da minha ousada juventude "pensadora" - que destruí - havia uma longa dissertação (pretensiosa, penso, e por isso a rasguei) sobre "A Liberdade em Espinoza"... Vê tu bem! Lembrei-me dela, há pouco, por ter dado comigo a seguir peregrinações dos olhares europeus sobre outros povos e civilizações... Voltei ao "Tractatus Theologico-Politicus" de Baruch de Espinoza, redigido em latim, publicado, anonimamente, em 1670, por esse judeu de família vinda de Portugal para os Países Baixos. E, para me descansar do esforço da leitura, alcancei, para ler na cama, "Le Secret de l´Espadon" do Edgar-P. Jacobs. Ambos me motivaram a fazer um percurso que me levou a Bento de Góis e a Sérgio de Beaurecueiul. No "Tractatus", Bento (era o seu nome português) Espinosa, acicatado pela memória da sua família sefardita, de judeus ibéricos e marranos também, propõe uma explicação para a sobrevivência da nação judaica, explicação essa que já tem sido atribuída a um impulso de desforra dos que o tinham excomungado da sinagoga portuguesa de Amsterdam. Escreve ele: "Quare hodie Judaei nihil prorsus habent, quod sibi supra omnes Nationes tribuere possint...", ou seja, "nada podem hoje os judeus procurar que os coloque acima de todas as nações. Quanto à sua longa duração como nação dispersa e sem se constituir em Estado, isso em nada surpreende, já que os judeus têm vivido à parte de todas as nações de modo a atraírem o ódio universal, não só pela observância de ritos opostos aos das outras nações, mas também pela circuncisão a que estão religiosamente submissos. Aliás, mostra a experiência que o ódio das nações proporciona a conservação dos Judeus. Quando o rei de Espanha obrigou os Judeus a abraçar a religião do Estado, ou a exilarem-se, muitos se tornaram católicos romanos, e tendo desde então participado dos privilégios dos Espanhóis de raça, julgados dignos das mesmas honras, se fundiram com os Espanhóis, a tal ponto que, pouco depois, nada deles ficou, nem sequer a lembrança. Foi diferente com aqueles que o rei de Portugal obrigou à conversão: continuaram a viver separados, porque foram excluídos de todos os cargos honoríficos..." Não me interessa, agora e aqui, o acerto ou desacerto de um juízo sobre circunstâncias históricas. Em hora pós-prandial, vagamente nebulosa e tão sossegada, entrego-me a interrogações para as quais não espero respostas imediatas... Anoto apenas a ideia de que o acolhimento do outro transforma, com a circunstância, as pessoas. E pergunto: estaremos condenados a sempre projetar fantasmas? Em "Le Secret de l´Espadon", o inimigo a abater, o mal essencial a destruir, é o perigo amarelo, "les jaunes"... Inspirado no terror ocidental da ameaça que o Japão representou na guerra do Pacífico, o medo é motivado, nesta primeira aventura de Blake e Mortimer, pela sombra da vontade de conquista universal que um império extremo-asiático projeta sobre o mundo. A capital deste monstruoso "Leviathan", amarelo pela cor da pele, é Lhassa, imagina!, no Tibete! Claro que, guiados pelos bons princípios da moral e da organização britânica - do UK que, por mais de um século, dominara povos e territórios do sul e sudeste asiático - muçulmanos, com hindus confundidos, colaboram na resistência até à vitória final... Quem diria? Com que facilidade se identificam, com o mal ou o bem, povos e raças, religiões e culturas? Curiosa civilização cristã esta, europeia e nossa, em si mesma já dividida por ódios que se brindavam com epítetos de "boche!" , "marrano!", "papista!",etc... e pretendeu ser lição para "pretos", "índios", "amarelos", etc... Ganham, no meio da miopia e mesquinhez, estatura enorme pessoas como o dominicano Bartolomeu de las Casas, o jesuíta António Vieira e o nosso frei Sérgio de Beaurecueil. E muitos outros. Mas hoje - até por essa simultaneidade de muçulmanos e tibetanos em "Le Secret de l´Espadon" - recordo o irmão Bento de Góis. Nasceu nos Açores, na ilha de S. Miguel, foi marinheiro e soldado, comerciante e, finalmente, frade jesuíta, sem todavia ter recebido ordens sacras. Foi definitivamente admitido na Companhia de Jesus em 1588, quando tinha 26 anos e vivido em Ormuz, onde aprendera e praticara o persa. Foi o conhecimento dessa língua veicular no Império Mogol que lhe valeu ser colocado, pelos seus superiores religiosos, em 1594, na missão jesuíta na corte do Grão Mogol. E deste, que era Akbar, recebeu o passaporte que lhe permitiu iniciar, em Outubro de 1602, a viagem que o levaria de Agra, na Índia, através do Paquistão, do Afganistão, de Tian Shan e do deserto de Gobi, até a Suzhou, já para lá da Grande Muralha da China, onde chegou no dia de Natal de 1605. Aí morreria em 1607, vestido à muçulmana e usando o nome de Abdalá Isawí (jesuíta). O objetivo de tão prolongado percurso era descobrir o Catai, supostamente um reino cristão estabelecido para os lados da China. Rumores da existência de reinos cristãos antigos, ou de cristandades extra-europeias fundadas nos primórdios do Cristianismo - como o Reino do Prestes João ou o Reino do Catai - permaneceram muito tempo na tradição de vários povos, e há notícia de que a mensagem evangélica não se espalhou apenas pelos mundos helénico e romano, mas chegou à Índia e à China. Um texto da liturgia siro-malabar da festa do Apóstolo S. Tomé reza assim: "Por S. Tomé, o erro da idolatria desapareceu das Índias. Por S. Tomé os Chineses e os Etíopes foram convertidos à verdade... ... Por S. Tomé, os esplendores da doutrina vivificadora atingiram a Índia inteira. Por S. Tomé, o reino dos céus foi dado aos chineses." Um dos escritos apócrifos cristãos, redigido em siríaco e grego, provavelmente no século III, tem por título "Atos de Tomé" e começa por relatar como o Senhor, na distribuição de missões pelos Apóstolos, a Judas Tomé confiou a Índia. Perante a recusa deste, o Senhor vendeu-o como escravo carpinteiro a Habban, mercador do rei Gudnafar,que assim o leva para o destino que lhe fora atribuído. Por lá ficará e ali morrerá mártir,pelas mãos do rei Mazdaí... Terá sido a Igreja inicialmente estabelecida na Síria e na Mesopotâmia que, mais tarde, se expandiu para Oriente. Quando, nos séculos VII e VIII, o Islamismo segue o mesmo caminho, até à Índia e à China, não integrará apenas populações hindús, budistas e outras, mas também cristãs. Na China, ganha, com a dinastia Ming, alguma preponderância, ao ponto de ser plausível a conversão do imperador Zhengde, no início do século XVI. Mas afinal o Islamismo implantou-se, para Ocidente, até ao Atlântico, pela margem sul do Mediterrâneo e o norte de África e,a partir do Médio Oriente, cobriu o norte da península industânica e atingiu, pelo sul,a Malásia e a Indonésia. Ainda que prosélito em regiões do Império do Meio, nunca fez do Imperador Celeste o Sultão ou Califa de um imenso império asiático... "Le Secret de l´Espadon" poderia ter sido uma história bem diferente... Pois há uma contradição intrínseca ao modo teológico do ser muçulmano: em clima de guerra, prevalece o apelo da "jihad", da guerra santa; em ambiente de paz, a tolerância. Akbar o Grande, Grão Mogol, teve a dita de escutar um mestre persa, Mir Abdul Latif, que lhe inculcou o princípio "sufi" da tolerância universal. Por isso, tinha jesuítas na sua corte. Um deles chamava-se Jerónimo Xavier, sobrinho-neto de S. Francisco Xavier. Foi ele quem enviou Bento de Góis em busca do Catai. Minha Princesa de mim: esta carta é um conto das mil e uma noites. Mas, desta feita, é este sultão a entreter a Princesa..." Esta carta de Camilo Maria levou-me, quase quarenta anos depois, a reler, na "Descrição da China" do Pe. Matteo Ricci, o relato da viagem do seu irmão açoriano. Voltarei a ele e, quando com ele chegar a Kabul, pensarei em frei Sérgio de Laugier de Beaurecueil.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 12.07.13 neste blogue.
Não recordo, não registei, nem sequer medi o tempo decorrido desde a última carta que te escrevi. Talvez por me sentir mais desvinculado da duração de tudo, finalmente mais preso à memória das coisas e das vidas como essencial substância da minha consciência do presente... como se este mais não fosse do que passado imperfeito! Sou hoje o que fui mais o que não cheguei a ser. Quero assim dizer que prevaleço nesse sentimento de mim em que, mais do que eu e a minha circunstância, me surpreendo como eu e a minha imperfeição. Já me não conjugo no futuro, não consigo completar-me. Tampouco me habita qualquer sentimento de perda, muito menos desejo ou vontade de ser agora o que não fui no devido tempo. Nem sequer rumino vadios pensamentos de culpa minha ou alheia. Não vou gritar, como a Traviata, "É tarde!" Tudo na nossa vida tem o seu tempo oportuno.
Não é por deitarmos abaixo antigos ídolos ou antiquados símbolos que nos convertemos. Aquilo que for o ser novo e limpo, ou estará já dentro de nós, ou será mais um episódio da nossa imperfeição. Nesta nossa vida presente, queiramos ou não, há um tempo e um espaço que necessariamente nos condicionam quando agimos. O nosso estado de liberdade pertencerá sempre, por enquanto, a essa mística interior, alheia a qualquer espaço ou tempo que possa limitar-nos, algo tão misterioso que apenas podemos imaginar como o antiquíssimo futuro de nós...
Sempre te disse e escrevi, minha Princesa agora perdida entre estrelas de um universo em contínua expansão - que talvez seja a extensão do Deus desconhecido que procuramos - , quanto me deixa perplexo, mesmo para além de qualquer angústia, pensarsentir a contradição desta nossa condição humana, hesitação constante (interminável?) entre o finito e o infinito, talvez interrogação sem resposta certa na finitude da nossa temporalidade, mas fé e esperança que o amor dos outros (e de nós) desenha na intemporalidade do infinito que, afinal, dia após dia, incansavelmente vamos desejando e desenhando.
Talvez cheguemos a esta idade do fim do nosso tempo apenas para confrontarmos a nossa pequenez com a infinita grandeza de Deus. Momento difícil este, em que finalmente realizamos que Deus não tem tamanho nem tempo, e que o "mundo" que nos espera estará certamente fora de nós e do nosso muito imaginar.
No início calendarizado de mais um Ano Novo, e quando completo o octogésimo da minha vida presente, contemplo o meu rio envolto em nevoeiro e procuro a ponte que me levará para fora do tempo e do espaço...
Santo Agostinho, em Confissões, reconhece três tempos: “Um presente das coisas passadas, um presente das coisas presentes, e um presente das coisas futuras. O presente das coisas passadas é a memória; o presente das coisas presentes é a vida, e o presente das coisas futuras é a espera”.
A realidade existe apenas no presente, que é o tempo permanente em movimento.
Como também opina Fernando Pessoa, em Ano Novo:
“Ficção de que começa alguma coisa! Nada começa: tudo continua. Na fluida e incerta essência misteriosa Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento. O mesmo rio flui onde se vê. Começar só começa em pensamento”
Ou se deduz do fado Vida Vivida, cantado por Argentina Santos:
“Meu Deus, como o tempo passa Dizemos de quando em quando Afinal o tempo fica A gente é que vai passando”
Daí que passado e futuro sejam referências a um tempo inacessível que já foi ou que potencialmente virá a ser, mas que não é, sendo o presente real, mas efémero e fugidio, pois o tempo é criado por nós, em pensamento e na nossa mente, como o ano velho e o novo que se augura que venha.
Na proximidade da Estação Fluvial de Belém, deparamo-nos com o belo memorial que homenageia Sophia de Mello Breyner e Menez – Espaço entre a Palavra e a Cor, Sophia / Menez. Perante a obra de azulejos, compreendemos que se trata de um encontro singular em que a sensibilidade artística de dois nomes maiores da cultura contemporânea se completam naturalmente. Como lembra Maria Andresen, citando Arte Poética I: “Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar”. E assim se cruzam cidade, rio e mar, na praia donde partiram as “Navegações”. Se a pandemia impediu a justa cerimónia de inauguração do memorial no centenário de Sophia, a verdade é que ficámos com uma bela referência da poesia e da pintura, na luminosidade dos azulejos, que projetam o “luzir de azul e rio”, na cidade “oscilando como uma grande barca”. A leveza do monumento no traço e na cor é um apelo à leitura e à releitura de uma obra que sempre se renova.
Neste tempo natalício em que se lembram boas leituras, contamos com o volume Prosa (Assírio e Alvim) de Sophia de Mello Breyner Andresen, com organização e prefácio de Carlos Mendes de Sousa e posfácio de Maria Andresen de Sousa Tavares. Trata-se de um precioso repositório da autora, abrangendo Contos Exemplares, Histórias da Terra e do Mar e O Nu na Antiguidade Clássica, bem como os célebres A Menina do Mar, A Fada Oriana, O Cavaleiro da Dinamarca ou O Rapaz de Bronze. São textos memoráveis bem presentes na memória de várias gerações. E o autor do prefácio inicia a apresentação, recordando o fabuloso primeiro encontro de Sophia com Teixeira de Pascoaes, misto de enigma e de sonho. No termo de uma viagem de Amarante até ao Solar de S. João de Gatão, sozinha a cavalo, Sophia ter-se-ia perdido entre nevoeiros “nos campos, caminhos e atalhos”. Finalmente, a casa apareceu-lhe “grande, antiga, maravilhosa e branca”. Chegou ao destino pelo lado detrás e recorda-se do que o poeta lhe disse: “Por este caminho nunca tinha chegado ninguém”. E a casa é uma aparição, como a chegada de Sophia também o é. “Paisagem e poema tornam-se indistintos: tudo naquele lugar era igual à poesia de Pascoaes: era como se eu avançasse através de um poema de Pascoaes”. É o fascínio da poesia através da prosa. É o culto misterioso do sentido poético, como invocação lendária. O mesmo se passaria com Ruy Cinatti, “guru”, “arauto de todas as modernidades”, numa lembrança de juventude, em retrato “para sempre associado aos fins de tarde de uma primavera antiga, quando foi visto, “caminhando em equilíbrio sobre a beira do tanque”, a proclamar “ao sol e à brisa poemas de Ezra Pound”. Tem, assim razão Carlos Mendes de Sousa ao dizer que “toda a prosa de Sophia está profundamente impregnada por uma essencial matriz poética”. Basta lermos os seus textos (até os de pendor cívico e político) para verificar o reconhecimento da absoluta “unidade entre a poesia e a vida”. Como afirmará na revista da Gulbenkian, Colóquio, em 1960, de modo lapidar: “a Poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira”.
E em Vila d’Arcos surgem os “jardins onde reconhecemos que a vida é um sonho do qual jamais acordamos, um sonho onde irrompem aparições prodigiosas como o lírio, a águia e o inesquecível rosto amado com paixão, mas onde tudo se transforma em esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber…”. Os exemplos são múltiplos e tocam-nos especialmente, como em O Jantar do Bispo, no momento em que tudo se desvanece por encanto depois da revelação de um negócio em que o telhado de uma igreja fora trocado pela dignidade do abade de Varzim. E cada palavra representa um sinal de justiça.
O flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade.
“Pour le parfait flâneur, pour l'observateur passionné, c'est une immense jouissance que d'élire domicile dans le nombre, dans l'ondoyant, dans le mouvement, dans le fugitif et l'infini. Être hors de chez soi, et pourtant se sentir partout chez soi ; voir le monde, être au centre du monde et rester caché au monde, tels sont quelques‑uns des moindres plaisirs de ces esprits indépendants, passionnés, impartiaux, que la langue ne peut que maladroitement définir.”, Charles Baudelaire, Le Peintre de la vie moderne.
No livro Psychogeography de Merlin Coverley lê-se que o flâneur é um observador solitário que caminha pelas ruas de uma cidade. Ao errar sem destino, ao parar simplesmente para olhar, o flâneur cedo se tornou uma figura ideal e literária do séc. XIX, inseparável da poesia de Charles Baudelaire (1821-1867).
O flâneur deseja para sempre unir-se à multidão, fluir no movimento contínuo da cidade, tornar-se fugitivo e infinito. Ser em toda a parte, ver o mundo e fazer parte de tudo mas manter escondida a sua existência. O flâneur é em simultâneo a imersão e o isolamento, a parte e o todo, o observador e o observado, o perseguidor e o perseguido, o eu e o outro, o passado e o futuro.
Ao dissolver-se na multidão, o flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade e deixa-se intoxicar pelo seu movimento que não pára. Mas o flâneur é sempre uma figura nostálgica porque apesar de proclamar admiração pela vida urbana reconhece também a redundância cada vez mais evidente do pedestre desocupado e só e que sobretudo aos olhos da cidade moderna se torna inútil e indolente.
Segundo Coverley, Paris era um livro pronto a ser lido por Baudelaire mas a sua configuração labiríntica destruída por Haussmann impediu a existência real do flâneur. Para Coverley, a vida de Baudelaire espelha a trajetória do flâneur que batalha constantemente contra o advento da modernidade.
A expansão de Paris, no séc. XIX, impediu a cidade de ser compreendida no seu todo. A destruição das antigas ruas e a sua reordenação sufocada com trânsito, domesticou qualquer tipo de intenção exploratória e o desejo do caminhante pelo enigmático, pelo misterioso e pelo oculto tornou-se totalmente obsoleto. O andar ficou assim reduzido a um passeio turístico, o errar ficou limitado ao olhar para as montras. Na cidade moderna o flâneur tem de se adaptar ou então perece. Para Merlin Coverley, o flâneur de Baudelaire é assim o testemunho de um modo de vida prestes a desvanecer para sempre.
1. Uma característica essencial do ser humano é que conjugamos os verbos no passado, no presente e no futuro.
Há quem julgue que a salvação está no passado. Há sempre os saudosistas do passado: antigamente é que era bom. É a saudade do Paraíso perdido. Também há aqueles que não querem preocupar-se nem com o passado nem com o futuro. O que há é o presente, o aqui e agora, o agora a que se segue outro agora: a salvação consiste no amor e fruição do presente. Depois, há os sonhadores e os ascetas. Fogem do agora, para refugiar-se no amanhã. Nunca estão no presente, pois a sua morada é só o futuro...
Ora, pensando bem, se, por um lado, não podemos instalar-nos no passado, por outro, ninguém pode abandonar o passado, como se fosse sempre e só o ultrapassado. De facto, quando damos por nós, já lá estamos, o que significa que vimos de um passado que nem sequer dominamos. E temos de aprender com o passado, para, a partir dele, nos decidirmos no presente.
Depois, também não é possível a simples instalação no presente, já que só podemos viver no presente projectando-nos constantemente no futuro. O Homem está voltado para o futuro, pois é constitutivamente esperante. Vivemos voltados para o futuro, porque somos projecto: agimos e somos, antecipando sempre. Sem esta antecipação, não poderíamos agir humanamente. Mas, por outro lado, não se pode esquecer que realmente a esperança também significa que, se desejamos, é porque não temos, e isso implica que não se é feliz. E, depois, quando temos, há sempre o temor de perder o que temos, o que nos coloca em permanente inquietação... Viver humanamente não pode, portanto, significar viver exclusivamente do futuro e para o futuro, pois viver unicamente da esperança é nunca viver, já que verdadeiramente só se vive no presente. Viver unicamente da esperança seria adiar constantemente a vida, no sentido do viver. Aliás, colocar permanentemente o presente ao serviço do futuro, vê-lo exclusivamente em função do futuro, é abrir as portas ao perigo da tirania: quantos homens e mulheres não foram de facto vítimas do sonho de "amanhãs que cantam"?!...
É isso: querer viver exclusivamente do presente e para o presente não é humano, pois isso significaria viver na imediatidade animal, sem horizonte de futuro e transcendência. Mas, por outro lado, quem quisesse viver exclusivamente do futuro e para o futuro nunca poderia afastar a dúvida de estar apenas a lidar com as suas ilusões. A arte de viver humanamente consiste em, a partir do passado, viver com tal intensidade e dignidade o presente que se torna legítimo esperar a vida plena futura...
2. Ah!, o tempo! Se soubéssemos o que é o tempo... Já Santo Agostinho, um dos pensadores que mais profundamente reflectiram sobre o mistério do tempo, se queixava: Se ninguém me perguntar, eu sei o que é o tempo; mas se alguém me perguntar e eu tiver de responder, eu não sei o que é o tempo. De facto, o passado já passou, já não existe; o futuro ainda não chegou, ainda não existe; e o presente, quando queremos agarrá-lo, já lá não está.
Mas sabemos que o tempo corre vertiginosamente. Sabemos que envelhecemos. Este é o tempo mensurável dos relógios, o tempo de Cronos, que, segundo o mito, devora os seus próprios filhos.
Por outro lado, o tempo não é completamente homogéneo. Há o tempo novo, o tempo qualitativo, aquele instante em que a eternidade irrompe no tempo. Esse é o tempo da liberdade, da criação, o tempo do amor, da beleza. Aí, trata-se daquele instante em que se frui realmente a eternidade e que tem a ver, por exemplo, com a exaltação exultante do final de uma sinfonia, na suspensão do tempo. É desse instante que se diz no Fausto, de Goethe: “Pára, és tão belo!”
A todo o homem e mulher já alguma vez, por exemplo, perante um pôr-do-sol à beira-mar, na dilatação do horizonte no cume da montanha, no acto amoroso, no abismo encantante, sereno e misterioso do olhar de uma criança, aconteceu, de repente, uma experiência desse instante pleno. Trata-se de algo que o Homem não pode provocar, mas de uma visita daquilo que o preenche. É uma presença imediata do que chega e se revela de repente como plenitude. É apenas um instante no tempo, e, no entanto, só através desse instante é que o tempo tem sentido. Mostra-se o que nos realiza plenamente e que vale por si mesmo. Aí quereríamos ficar para sempre. A própria angústia da morte fica suprimida, e até se poderia morrer, pois essa é a experiência da não-morte.
É a um desses instantes que se refere também Tolstói em Guerra e Paz. Ferido de morte, o príncipe André caiu de costas. "Por cima da sua cabeça, nada mais havia além do céu, um céu muito alto, não claro, mas imensamente alto, onde erravam tranquilamente pequeninas nuvens cinzentas. ‘Que calma, que paz, que majestade! Como é que eu nunca tinha visto isto, este céu profundo e infinito, sem limites? E que feliz me sinto de o ver finalmente'."
É preciso dar-se tempo para alguma experiência desse instante que nos redime do tempo que nos devora: o tempo de exaltar-se com esse céu imensamente alto e sereno, sem limites; extasiar-se com o perfume de uma rosa que é sem porquê e que nem sequer repara se olham para ela, como disse Angelus Silesius; deixar-se visitar pelo infinito do olhar de alguém; ouvir o indizível, que só na poesia e na música tenta dizer-se; marcar visita com o Infinito, através da oração... O que é rezar senão visitar e ser visitado por Deus, o Infinito?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 4 de dezembro de 2021
‘Sou um pintor que faz o seu trabalho e não escolhe os seus temas. Não tenho temas. Há o tempo, o que acontece no tempo e o que nos acontece no tempo tem de estar em tudo.’ Moshe Kupferman, 1995
A série de pinturas ‘A fractura no tempo’ (1999) de Moshe Kupferman (1926-2003) apesar de não explícitas e aparentemente subtis, revelam um silêncio que não é vazio, que perturba e que abre o que está na recordação de um período em que a escuridão cobriu a terra. Perante a plenitude de cada tela não se obtêm respostas. Perante a totalidade de cada pintura renuncia-se ao saber.
Kupferman sempre rejeitou todas as tentativas de associação simbólica ou de representação cultural. Apesar de Kupferman fazer parte da geração que acompanhou a criação de um novo país (Israel), de uma nova sociedade, de uma nova história, a sua abstracção é única e pessoal. Porém Kupferman vê-se como testemunha e memória viva simultânea do maravilhoso e de todo o horror do nosso tempo.
‘Eu trabalho e, como já tentei dizer, trago tudo para a pintura.’, Moshe Kupferman, 1995
As telas são cruas mas não despojadas. São cheias de camadas, mas não são espessas. São riscadas e escavadas.
‘O que é um quadro? Um quadrado sem dimensões.’, Moshe Kupferman, 1972
É impossível as pinturas de Kupferman serem pensadas porque têm se ser sentidas. Descobrem-se no fazer. Narram o que acontece no acto de pintar. São a impressão de um tempo preciso e limitado - o tempo que a tela demora a pintar. E por isso as pinturas acumulam e condesam. Nelas o tempo abre-se e prolonga-se.
O que interessa é a imediatez da acção, de riscar, de dispor grelhas, de sobrepor a tinta. E assim os vários elementos interferem, dialogam, completam, questionam, prepositadamente uns com os outros. Na tela há espaço para caber tudo.
‘A tela é para mim um campo, o campo para tudo o que se acumula, tudo o que acontece, tudo o que tem peso e valor, tal como eu sou capaz de captar e expressar. O quadro é esse ‘tudo’, tal como se condensa num momento de concentração, esforço e graça.’, Moshe Kupferman, 1995
‘A fractura no tempo’ (1999) é uma série que manifesta uma pintura simultanemante complexa e evidente, abstracta e representativa, visível e invisível, particular e geral, uniforme e desintegrada, singular e múltipla, sobrecarregada e sintética, pertubadora e reconciliadora. Nestes trabalhos existe uma vontade de concretizar, uma vontade em expor um eco, um sedimento impossível de eliminar, o do Holocausto - o mal absoluto, a destruição, o fim, o golpe, o rasgão. Mas ainda assim Kupferman, nestas pinturas, tenta materializar o começar de novo, a vida que continua, a recordação que vai ficando longínqua.
É uma pintura em constante mudança, que conduz a surpresas e que nunca está completa porque se desenvolve tela após tela. A justaposição de vestígios, de marcas e de cor não elimina, introduz antes diversas intensões, significados, repetições, rasuras e destruições. A justaposição permite revelações e uma forte impressão de materialidade, de densidade, de peso - a cor é essencialmente escura, cinzenta, púrpura, verde e branca.
‘Os factores externos foram sempre um elemento do conteúdo da minha pintura e a agitação por que estamos a passar enfraquece a minha capacidade de ‘resistência’. Faz com que eu precise de meios para fazer passar a informação. Mas a forma como eu me revelo ao espectador é através do trabalho. É ele que apela ao espectador a participar.’, Moshe Kupferman
Diz-se que o tempo sempre se anuncia e com ele se intui o que se pode e o que se não vai poder nunca. É uma espécie de condenação definitiva que se admite de uma forma ou de outra.
E o que fazer do conhecimento dos olhos quando de frente para nós despertam cheios de imensidades e medos e perfumes que se deixam cair entre lençóis por estrear?
Não há que procurar razões, nem sentá-las em sofá que as sossegue. O território tem a força do aço e a sua violação implicações fortíssimas na vida-a-vida que se diz não perceber, não designando essa afirmação real estado.
E hesita-se mais e uma vez mais ou, nem se hesita, recusa-se o que em sonho desperto nos mantém aptos a acreditar que porventura um dia será diferente.
A lógica é excessivamente familiar e reduz sempre a metade qualquer coisa por nascer.
Assim e de outras formas se aceita ser clandestino junto e para além da fogueira que, quando perto ou por tão perto e de tão perto, se fecham os olhos com a ajuda das mãos porque tão perto é demais.
O silêncio mais profundo apodera-se de nós, quando a possibilidade é o calar, num brutal movimento de fogo.
Um dia, um dia de país não esperado, todos os obstáculos são vantagens e enfim de súbito, de jorro, de esperança desalmada, tudo acontece. A densidade é tão segura quanto a dimensão da clareira que ora se permite. O sentido último da vida faz sentido por instantes: ao rubro.
Só o tempo é esquivo. Essoutro coto de vela.
E, antes que alguma ausência se sobreponha, antes que outro antes faça face ao que se vive, antes que o futuro possa não acontecer e antes que eu mais não possa, deixa que te diga
Meu Amor
Teresa Bracinha Vieira
Publicado pelo António Alçada Baptista na Revista Máxima em 1999
Obs. Em 2006/07? Tive oportunidade de ver uma retrospetiva de Palermo no Kunsthalle Düsseldorf. Fiquei sensível ao seu trabalho e tento saber até onde vai a minha curiosidade desde então. Daí esta escolha de hoje, e, que seja bem recebida também no site de Alçada Baptista já que foi a seu pedido que escrevi este texto há 19 anos sobre o tempo e o amor.