Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Sobre Rafael, poderíamos recordar o seu inconfundível «Álbum das Glórias», poderíamos ir à cerâmica com Maria Paciência ou à caricatura de «António Maria» ou da «Paródia», mas preferimos o nosso querido e adorado Zé Povinho, deitado a dormir sobre uma albarda de asno. Nas suas costas está toda a nossa História, representada no rol dos nossos monarcas… Até um elefante aí se encontra a recordar o Venturoso… O desenho é delicioso, e nós, representados pelo Zé, descansamos… Dormimos? E o genial desenhador, admirado humorista lembra-nos que «ridendo, castigat mores», perguntando apenas aquilo que só nós temos para responder, com vontade e determinação e não com sono e indiferença: «Levantar-se-á?». Suponho que ninguém deseja ou pensa noutra resposta senão, um rotundo sim. E neste tempo de férias somos levados a dizer que pela determinação, pela criatividade e pela vontade é que vamos. Zé Povinho tem-se levantado sempre. Não fora isso, não teríamos novecentos anos!
Aproveitando as férias, temos invocado referências fundamentais dos nossos setenta anos de cultura e sinais da criatividade portuguesa e do diálogo entre a terra, o mar e as gentes.
Os ecos dos nossos amigos têm sido fantásticos.
Helena Vaz da Silva, Sophia de Mello Breyner e Maria Keil tiveram uma recetividade extraordinária e um número muito assinalável de partilhas. Aguardamos agora, com expectativa, as respostas ao concurso de Verão e sabemos que tem havido intensas pesquisas e conversas para assegurar a candidatura aos aliciantes prémios previstos…
Hoje partilhamos uma fotografia que nos enternece. Fernando Amado rodeado de Isabel Ruth, Manuela de Freitas e Glória de Matos. E não resistimos à tentação de lembrar a criatividade que Fernando Amado punha nas suas criações, a ponto de um dia Almada ter protestado por discordar de uma interpretação do encenador. Perante a insistência crítica de Almada Negreiros, autor da peça, Amado foi perentório: «O Senhor aqui está em silêncio, porque disto percebo eu!»… E ficou-se…
João César Monteiro disse que a poesia não é filmável e que é inútil persegui-la, mas demonstrou que é possível uma aproximação numa das suas obras referenciais - «Sophia de Mello Breyner Andresen» (1969).
É um dos mais belos filmes da história do cinema português e é uma homenagem serena não apenas à poesia, mas ao mar português, à nossa costa fantástica.
Em cada momento desta obra, nós encontramos a sensibilidade do cineasta e o carisma de Sophia.
E quando Xavier estranha o tom de voz de sua mãe a ler «A Menina do Mar» ele está a dizer-nos que a poesia prolonga e completa a realidade.
Do mesmo modo, como quando a Mãe Sophia ralha com os filhos, o que encontramos é a vida vivida, imperfeita, dada a perturbações, que são o melhor elogio à liberdade de ser que nos leva diretamente à Dignidade do Ser.
As minúsculas e as maiúsculas não são indiferentes… Sophia e João César aqui estão, em memória de Carl Dreyer…
A memória e o elogio do génio poético.
A poesia não é filmável, mas o cinema pode levar-nos à essência da palavra…
"E o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos-marinhos, e o seu manto de púrpura nas águas"…
Terra de ouriços, diz a antiga tradição sobre a origem da designação da vila. Discute-se, porém, se se trata de um ouriço-cacheiro (erinaceus europaeus) ou de um ouriço-do-mar (echinoidea). Não vamos discutir o tema, ainda que todos se inclinem hoje para o primeiro caso.
A povoação foi fundada pelos fenícios há dois mil anos, tornando-se uma das mais importantes da costa ocidental portuguesa. O primeiro foral é de 1229 e foi outorgado pelo Grão-Mestre da Ordem Militar de Avis, Frei Fernão Rodrigues Monteiro. Afonso IV (1369) e D. Manuel (1513) renovaram cartas de foral, e D. António, Prior do Crato, foi donatário da Vila, tendo planeado um desembarque gorado por ocasião da questão dinástica de 1580. A resistência das gentes da Ericeira manifestou-se antes da Restauração de 1640, tendo aqui tido lugar um dos episódios do sebastianismo, com Mateus Álvares, ermitão da capela de S. Julião, que seria condenado ao enforcamento a 13 de Junho de 1585, por não aceitar Filipe I… Temos também na retina as imagens da partida de D. Manuel II para o exílio…
A Ericeira é um lugar de memórias, que no século XIX se tornou lugar de veraneio, estação termal em Santa Marta e porto de pesca – o mais importante da Estremadura. Por isso, recordamos aqui as armas da Vila, com o famoso Ouriço e a aludimos à 4ª Alfândega do Reino, a seguir a Lisboa, ao Porto e a Setúbal.
E importa não esquecer que foram os pescadores da Ericeira que ensinaram a pesca no sul do Brasil, onde ainda hoje se lembra a mestria do mais célebre dos homens da Ericeira, o Ti Cachafana, Victorino Dias (1833-1907), símbolo de altruísmo, de sabedoria e de solidariedade! No Jogo-da-Bola ainda persiste a memória do Tio Victorino!
Eis-nos diante do cenário que muitos recordamos na nossa costa de longos areais. O pintor é Alfredo Roque Gameiro (1864-1935), o indiscutível patriarca da «tribo dos pincéis».
Já aqui tivemos há dias sua filha Raquel e outros virão por certo.
Como poderemos compreender Portugal, sem perceber «onde a terra se acaba e o mar começa»? Aqui temos a Nazaré. O cenário é inconfundível. Lá em cima, está o Sítio, o Santuário da Senhora da Nazaré e a memória do primeiro Almirante da nossa Armada, D. Fuas Roupinho, referência mítica de muitas lendas…
Veja-se o elegante lançamento das embarcações, lembrando as influências mediterrânicas e especialmente fenícias. E, estendidas na areia, estão as redes, que três crianças consertam em primeiro plano. É, por certo o fim da manhã, e nas águas diversas embarcações fazem-se à faina ou descansam dela. É talvez Primavera. Aqui é o Atlântico que se manifesta pleno de fulgor.
Sophia perante estas proas afiadas lembra-nos a vocação antiga:
«Os que avançam de frente para o mar e nele enterram como uma aguda faca a proa negras dos seus barcos vivem de pouco pão e de luar».
E como intitulou a poeta estas palavras? «Lusitânia», a exprimir o mais fundo de nós mesmos, habituados a enfrentar o mar, capaz de nos dar alimento e riqueza e de nos trazer a tragédia dos naufrágios. Mas o mar é a origem e o destino de quem somos!
Nestas memórias de Verão não poderíamos esquecer Helena Vaz da Silva. Mulher de cultura, jornalista, defensora entusiasta e pioneira da salvaguarda do património material e imaterial, ensinou-nos que a vida vivida, a curiosidade e a aventura são a melhor matéria-prima da criação cultural. Fez ontem doze anos que nos deixou. Mas está sempre presente, como bem sabemos.
E quando há dias anunciámos o Prémio Europeu que leva o seu nome atribuído a Orhan Pamuk, de Amesterdão, da Europa Nostra tivemos a melhor homenagem que poderíamos ter – quando todos afirmaram que o Prémio demonstra bem que a cultura da paz que Helena acerrimamente defendeu na UNESCO com Federico Mayor continua na ordem do dia!
Como poderíamos falar do Verão sem ir até ao jovem Henrique Pousão, promessa maior da nossa história da arte, levado prematuramente pela doença da época?…
E que é o Verão? Não é outra coisa senão a promessa realizada do tempo consumado, em que se colhem e se debulham os cereais, em que a natureza explode e em que o calor e a luz se projetam nas planícies e no mar cor de cobalto. Poderia ser em qualquer dos lugares do nosso Mediterrâneo. Sim, porque Orlando Ribeiro foi perentório a dizer que nós somos uma partilha entre o Atlântico e o Mediterrâneo. Mas só a sensibilidade de um pintor português como Henrique Pousão (1859-1884) poderia fazer-nos sentir tão nós próprios perante estas casas brancas, a cal dá vida à luz, estes catos, a mulher que olha este mar ao fundo.
Sabemos que foi em Capri nesse ano distante de 1882, mas poderia ser hoje, agora mesmo. Nada há que não nos seja familiar neste lugar e neste tempo. Não foi por acaso que Pousão se sentiu atraído por esta paisagem, tendo-a interpretado magnificamente.
Pablo Neruda também se deixou apaixonar: Capri, Reina de Roca En tu vestido de color amaranto y azucena Vivi desarrollando La dicha y el dolor la viña llena De radiantes racimos Que conquiste en la terra
É um tempo de paixões que aqui surge retratado, sentido, libertado, fecundo… Não pode ser esquecido o muito jovem pintor. Leia-se o que Bernardo Pinto de Almeida disse da força artística de Pousão, da sua capacidade de interpretar, de dizer e de amar… Ficamos aqui, serenamente, perante estas casas brancas, como se o tempo pudesse parar.
Nesse tempo havia uma especial expectativa pelo sábado, momento de chegada do “Cavaleiro Andante”. Com sofreguidão liam-se os continuados, as séries históricas e de aventuras, as páginas humorísticas – em suma, tudo!
Nas férias, era um pouco mais complicado, uma vez que no Algarve era difícil de encontrar a revista. Mas o meu pai, incansável, enviava-nos nuns rolinhos de papel pardo, que chegavam no início da semana (os correios eram rápidos), os números da revista. A abertura desse tesouro era uma liturgia. E a cor da capa ressaltava em toda a sua magnitude. O exemplo que hoje reproduzo é indiscutível.
Aqui está Sherlock Holmes com as personagens fundamentais de um novo continuado que dava os primeiros passos. A autoria da capa é de Fernando Bento (1910-1996), que considero com Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005) um dos grandes clássicos portugueses da BD. Aqui estão todas as características e qualidades de Bento – o traço inconfundível, capaz de interpretar o carácter e a psicologia, a criteriosa escolha da cor, a segurança irrepreensível, capaz de dar vida, realismo e romance à ilustração.
Devo dizer que a literatura e a ilustração para jovens exigem um domínio muito especial da técnica e da arte. Tudo importa e não é aceitável para um jovem, de atenção desperta, um erro de movimento ou de perspetiva. E Fernando Bento era muitíssimo cuidadoso nesses campos. Olhando para Lucy Parr e para Mary Holder compreende-se todo um mundo de diferenças e de distância… Percebemos a virtude e a perversidade.
Durante as férias havia maior disponibilidade para ler tudo… E as histórias de quadradinhos eram uma magnífica introdução para a literatura a sério – Moby Dick, Beau Geste… Adolfo Simões Müller teve, aliás, a grande qualidade de ser muito criterioso na escolha de desenhos e escrita de qualidade. Por isso o «Cavaleiro Andante» (1952-1962), na sequência do «Diabrete» (1941-1951) foi um caso especial nesta arte.
Essa a memória que hoje recordo. Não esqueço, obviamente, «O Papagaio» (1935), «O Mosquito» (1936) e o «Mundo de Aventuras» (1949), mas o meu tempo foi o do «Cavaleiro Andante»…
Memórias antigas! Ah! Duas crianças a refrescarem-se nos dias de verão. Que prazer extraordinário tirar os sapatos e chapinhar na borda do riacho, nas águas límpidas, a ver os pequenos peixinhos a passar, assustados, a ouvir as cigarras e a olhar o labor inusitado das formigas… E vem à lembrança, sempre, o conto da princesa que guardava patos… No entanto, a imaginação é fertilíssima. E lá está a espreitar um coelho, placidamente a ver os dois meninos. Em primeiro plano, as flores silvestres são verdadeiras, e dizem-nos que o painel está entre a realidade e o sonho. As duas crianças existiram, a artista eternizou-as, e nós lembramo-nos ali mesmo de fazer o que elas fazem.
Maria Keil, à medida que o tempo vai andando, torna-se uma das ilustradoras fundamentais do século XX português… O que Sophia é para o conto em Portugal é Maria para a ilustração. Aliás, falando da autora da «Menina do Mar», temos de lembrar também Matilde Rosa Araújo, e tudo o que fez para dar a língua no mais puro de si a todos os jovens leitores ávidos de bons motivos para voar…
E oiçamos um poema inesperado de Maria Keil:
Habito as distâncias vivo dentro das distâncias as tuas mãos, o teu rosto, a claridade, que pelos teus olhos… o mundo, que pelos teus olhos… povoam as minhas distâncias. Sabias? Não. Ninguém sabe de ninguém os mundos que cada um habita.
A partir desta imagem, podemos pensar um conto. E quem conta um conto acrescenta sempre um ponto. Como boa algarvia, Maria Keil sabia bem que a magia dos contos fantásticos é inesgotável!
«Mas quem somos nós senão os outros? Um homem é todas as coisas que ele viu e todas as pessoas que passaram por ele nesta vida» - Teixeira de Pascoaes disse-o, e sentimo-lo profundamente.
Nesta ilustração de Raquel Roque Gameiro, sentimo-nos transportados a um outro tempo, e trazemos connosco as crianças de hoje. Tudo mudou, mas a memória não escapa. É a faina da preparação do repasto que aqui temos. Nada falta nesta cozinha antiga. Se repararem bem é o prazer de usar tudo o que é apetitoso. É o gosto de fazer e de aprender a fazer… Os avós conversam à lareira. Os pequenos brincam. Um deles, como nós faríamos (e fizemos) vai com os dedos de modo descarado limpar os restos da massa do bolo que já foi colocado na forma. O almofariz vai migando os frutos secos da altura. E há limão e canela… Há leite e mel, trigo e farinha, vinho e pão. O leitão espera conformado. As claras em castelo são batidas para um acepipe, pão-de-ló ou o que for… De tudo um pouco aqui se encontra à espera de fazer o ágape, que o mesmo é dizer, de pôr em comum o melhor da amizade.
Afinal, quem somos nós, senão os outros, e os outros tempos, e a lembrança de tudo isso, que faz da saudade presença viva…?