A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 25 de agosto de 2024
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De 19 a 25 de agosto de 2024
Concretamente nestes tempos de globalização, torna-se mais claro que não haverá paz entre as nações sem diálogo inter-religioso. Como não se cansou de repetir o teólogo Hans Kung: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial".
O diálogo inter-religioso é mais do que simples tolerância religiosa, pois é exigência do próprio Absoluto a que todas as religiões estão referidas. Precisamos de todas as religiões para tentar dizer melhor, embora sempre na gaguez quase muda, o Mistério que sempre transcenderá o que dele possamos pensar e dizer. As religiões estão referidas ao Absoluto, mas não são o Absoluto. Neste sentido, o místico diria: Deus é "nada" de todas as religiões. Mestre Eckhart pedia a Deus que o libertasse de "Deus", isto é, dos seus conceitos, imagens e representações de Deus.
Deste diálogo fazem parte também os ateus, não os ateus vulgares, mas os ateus que sabem o que isso quer dizer, porque são eles quem constantemente pode colocar, tem colocado e coloca os crentes de sobreaviso quanto ao perigo da superstição, da idolatria e da desumanidade, que as religiões muitas vezes transportaram e transportam consigo.
Quando se pensa na coragem heróica necessária para, em tempos de hegemonia religiosa confessional e sabendo que se corria o risco da prisão, da morte no cadafalso e da “certeza" do inferno, ousar, em nome da dignidade humana, do respeito para com Deus, das exigências mínimas da razão, lutar contra a superstição e contra o ridículo clerical-eclesiástico, surge-nos do mais íntimo e fundo de nós o sentimento de veneração e de reconhecimento de "santidade" em relação a muitos daqueles que, a maior parte das vezes em sentido pejorativo, ficaram na história como críticos da religião e até ateus. Esses não são santos de nenhuma Igreja, mas são com certeza "santos" da Humanidade.
Impressiona que hoje o cristianismo, que é uma fonte de liberdade e de libertação – estou convicto de que é a maior na história da humanidade -, para muitos já não exerça fascínio. Surpreende que, frente a Deus, enquanto o Infinito é a verdade do finito, grande número de homens e mulheres se mantenham indiferentes ou até O recusem pura e simplesmente. Há múltiplas razões explicativas desta indiferença e recusa. Uma delas, que não será a menor, prende-se com a imagem de Deus transmitida pelos crentes. Muitas vezes o Deus que aparece é um Deus menor, triste, invejoso, impeditivo da liberdade, da autonomia, do novo, que envenena o amor, a alegria e a criação. Depois, os crentes teriam de cindir a vida: a vida propriamente dita e uns enclaves de beatice. Não se caminha livre, erguido, inteiro, autónomo, solidário, na busca, correndo riscos. Como homens e mulheres humanos, justos, criadores. Perante uma imagem de Deus que humilha e atemoriza, ergue-se então, como escreveu o filósofo Carlos Díaz, a tentação de "matar Deus com medo que Deus me mate a mim".
Hoje, a questão essencial é que se corre o risco de já nem sequer se colocar a questão de Deus, nem sequer como questão. Ora, não é o que já está a acontecer nesta nossa sociedade de imediatismo disperso, de hiperactividade, num tempo descontinuado?... Como escreveu Byung-Chul Han, no seu recente livro Vita Contemplativa, referindo-se a esta sociedade: “A actual crise religiosa não se pode simplesmente atribuir ao facto de termos perdido toda a fé em Deus ou determinadas crenças terem passado a inspirar-nos desconfiança. A um nível mais profundo, esta crise indica que estamos a perder cada vez mais capacidade contemplativa. A crescente compulsão para produzir e comunicar dificulta a permanência no contemplativo. A religião requer uma atenção especial. Malebranche refere-se à atenção como a oração natural da alma. Hoje, a alma já não ora. Pelo contrário, produz-se. É precisamente à sua hiperactividade que se deve a perda da experiência religiosa. A crise religiosa é uma crise de atenção.”
Espíritos eminentes preveniram para os perigos, sendo urgente preparar-se para o pior. Václav Havel, o grande dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer, surpreendeu muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização global” e “também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por isso, que caminhe para a catástrofe.” Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX - tive o privilégio de tê-lo como professor -, perguntava: O que aconteceria, se a simples palavra “Deus” deixasse de existir? E respondia: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu”. Neste domínio, o perigo maior provém de a questão de Deus já não ser sequer questão. Como escreveu o historiador Georges Minois, o mundo parece encontrar-se hoje perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e "abdica da sua procura de sentido".
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 22 de junho de 2024
De 18 a 24 de março de 2024
Há 750 Anos, a 7 de março de 1274, morria em Fossanova (Lácio) S. Tomás de Aquino, um dos mais influentes teólogos de sempre, que hoje está a ser relido a uma nova luz, deixando vestes conservadoras, para passar a ter uma leitura avançada e original.
E SE VIVESSE NOS DIAS DE HOJE?
Há anos, Umberto Eco perguntava: o que faria Tomás de Aquino se vivesse nos dias de hoje? Aperceber-se-ia de que “não poderia nem deveria elaborar um sistema definitivo, como uma arquitetura acabada, mas preferiria uma espécie de sistema móvel, uma Suma de folhas substituíveis, porque na sua enciclopédia das ciências entraria a noção de provisoriedade histórica. Diria, por certo, que deveria pensar outra coisa”. De facto, como afirmou Karl Rahner o aquinense era um místico consciente de que Deus está para além de qualquer possibilidade de expressão. Tanto mais saberemos de Deus quanto mais nos dermos conta da nossa incapacidade e das nossas limitações para compreender a transcendência. Por isso, S. Tomás sempre se atreveu, ousando a ser lúcido acerca dos limites da nossa ousadia.
Os próximos três anos marcarão três grandes aniversários da trajetória de S. Tomás de Aquino: seu nascimento, sua morte e sua canonização. Em 2025 será comemorado o seu nascimento. Não se conhece a data exata, mas é sabido que nasceu em Roccasecca no Lácio, no ano de 1225 numa família influente. Os dominicanos em Toulouse, na França, onde o grande filósofo e teólogo está sepultado, celebrarão o “Doutor Angélico” com vários eventos, que permitirão revelar a sua inesperada atualidade, como o Concílio Vaticano II reconheceu expressamente. Em 2023 passaram 700 anos da sua canonização que ocorreu em 18 de julho de 1323, sob o magistério do Papa João XXII, num momento a partir do qual a sua celebridade correu o risco de poder perder a força espontânea da sua originalidade. O tempo, porém, foi permitindo compreender que a principal virtude do seu contributo foi a do apelo constante a poder ver a presença de Jesus Cristo como companheiro das nossas audácias e exigências.
UM TEMPO DE REFLEXÃO
No ano corrente, assinalam-se os 750 anos da morte, que ocorreu em 7 de março de 1274. Estas três ocasiões são motivo para termos um melhor conhecimento da sua personalidade e da sua obra, o que constitui um apelo permanente ao seu espírito de renovador da fé, de quem compreendeu o amor, o respeito mútuo, as bem-aventuranças e a compreensão do bem comum como um sinal prático e humaníssimo da vida humana. Chesterton disse que “Tomás de Aquino surgiu de maneira estranha e algo simbólica no centro do mundo civilizado do seu tempo, no ponto central onde os poderes controlavam a cristandade”. E assim pôde revolucionar o modo de pensar, indo descobrir no mundo grego Aristóteles para abrir novas perspetivas sobre a realidade. “Com argumentos sinceros pôde escalar as torres mais altas e falou com os anjos sobre os telhados de ouro”, para usarmos de novo a expressão do autor de “O Homem que era Quinta-feira”. E recordemos um célebre discípulo português, Frei João de S. Tomás, O.P. (1589-1644), que procurou seguir com fidelidade a orientação de S. Tomás de Aquino na procura de uma ligação entre a contemplação e a ação. A contemplação é uma certa forma de ação interior, dinâmica, progressiva, operante, dependendo da fé mas também do conhecimento, como resulta da teologia dos dons do Espírito Santo, entre os quais se encontra o dom do entendimento. E a contemplação anseia, como o veado do salmo, pelas águas frias dos regatos das montanhas, no sentido da visão distante e próxima do amor divino.
CONVERSÃO E IMAGINAÇÃO
O padre Giuseppe Barzaghi, O.P., dominicano, professor de Teologia fundamental e dogmática na Faculdade Teológica da Emilia Romagna e docente no Estúdio Filosófico Dominicano de Bolonha, na obra La maestria contagiosa, estudou o tema essencial do poder imaginativo de S. Tomás, demonstrando como o grande teólogo foi um mestre na cultura de imagens, enquanto discípulo de Aristóteles, que disse em De Anima, na tradução latina feita por Guilherme de Moerbeke, nihil intelligit anima sine phantasmate. O que isso significa? Nossa alma não entende nada sem imaginação. Quando tentamos entender algo, é por meio de uma conversio ad phantasmata. Devemos converter-nos à fantasia, segundo a relação entre a contemplação e a ação. E isso significa dar exemplo. É por isso que S. Tomás continua fascinante. Ele nunca deixa uma visão, digamos, teoricamente rígida, descoberta, a não ser reconduzindo-a à descoberta das imagens, que são os exemplos e formas de podermos compreender a vida e os outros, a que não podemos ser indiferentes.
Quando quer representar a atividade de nossa razão no conhecimento, O Doutor Angélico toma a imagem do voo dos pássaros e diz: há o pássaro que voa de forma circular e rodando, ou o voo que vai para frente e para trás, ou o voo que vai de cima para baixo e de baixo para cima. O movimento circular é o movimento contemplativo, que vai para frente e que liga a causa e o efeito, e que vai para trás, do efeito para a causa. De cima para baixo é a dedução, de baixo para cima é a indução. Lembrando o voo dos pássaros trazemos à mente todas as formalidades da atividade cognitiva, e compreendemos a importância da contemplação e da ação. Eis como S. Tomás de Aquino nos ensina a compreender a complexa realidade que nos cerca, a humanidade que nos enriquece, a dignidade que nos afirma e reconhece, a fé, o conhecimento e a ação que nos animam. “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt., 5, 8).
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
De 18 a 24 de setembro de 2023
Autor de “Revelação e experiência do Espírito” (Paulinas), Yves Congar foi um dos grandes teólogos do século XX. Assim, o novo Patriarca de Lisboa fez questão de o referir na entrada solene nas novas funções.
UMA ATITUDE RENOVADORA E ABERTA
Como lembrou Frei Bento Domingues, O.P., dominicano Yves Congar muito lutou e sofreu para publicar as suas investigações que punham em causa tabus, doutrinas e apologéticas que sufocavam a revisão teológica da sua história e impediam as reformas de que precisava para se abrir às outras Igrejas cristãs, ao universo das outras religiões e ao mundo contemporâneo. Nasceu em 1904 e faleceu em Paris a 22 de junho de 1995. Os seus restos mortais repousam no cemitério de Montparnasse, ao lado da sepultura que evoca a vida do seu confrade e amigo, Marie-Dominique Chenu. A sua vida e a sua obra são uma fonte de inspiração, para quem ama a Igreja e luta para que nunca se esqueça que a sua lei, na graça do Espírito de Jesus Cristo. Elaborou a sua teologia – em constante evolução e revisão – a partir do centro da vida e da história da Igreja Católica, em diálogo com as outras Igrejas cristãs, em escuta do universo das religiões não-cristãs e das correntes que agitam o mundo. Nos anos 30, em face da crescente descrença e indiferença religiosa, sintetizou o seu diagnóstico perspicaz: a uma religião sem mundo sucedeu um mundo sem religião. Acompanhou e marcou os grandes movimentos eclesiais que precederam o Concílio Vaticano II, designadamente no ecumenismo, na teologia do laicado e na reforma da Igreja. Congar afirmou: “As grandes causas que procurei servir chegaram ao Concílio: renovação da Eclesiologia, estudo da Tradição e das tradições, reforma na Igreja, ecumenismo, laicado, missão, ministérios”…
UM NOVO TEMPO
A nomeação de D. Rui Valério como novo Patriarca de Lisboa constitui motivo de alegria e de esperança num momento especialmente importante e exigente na vida da Igreja entre nós, perante inúmeros desafios marcados pelo período sinodal e pela necessidade de mobilizar energias no sentido de superar graves dificuldades recentes, de aproveitar o impulso das Jornadas Mundiais da Juventude e de apresentar à sociedade um sentido de renovação e de responsabilidade. É de bom augúrio a declaração do novo Patriarca segundo a qual se propõe dar à Igreja de Lisboa o que tem dado sempre ao longo da sua vida sacerdotal e como bispo: através da presença e da proximidade. “Vou ser um bispo da estrada, um bispo da rua, um bispo junto das pessoas. E é nessa ótica que vou concretizar e alinhar a minha ação”. Esta ideia de caminho, de atenção às periferias e de mobilização de todos, no sentido que tem sido dado pelo Papa Francisco, constitui um sinal forte e necessário.
A declaração solene feita no momento de entrada na diocese constitui um motivo de reflexão e de responsabilidade para toda a Igreja. «Tal como sempre, também hoje, à Igreja, incumbe a grave responsabilidade de indicar o verdadeiro alimento, a verdadeira água, e oferecê-lo. É essa a sua missão urgente». E não é por acaso que à presença necessária se junta o sentido da urgência. E continua D. Rui Valério: «Como já anotava o teólogo Yves Congar, acerca da pertinência da missão evangelizadora, conservando uma desarmante atualidade: “o nosso mundo já não está naquela espécie de harmonia e homogeneidade com a cultura católica, com os seus símbolos, com as formas de expressão católicas. Simplesmente é profano, secular, laico; é científico e técnico; mas também, cada vez mais, utilitário, hiper sensual, violento, afrodisíaco. Em larga medida é ateu, não porque esteja demonstrada a inexistência de Deus, mas porque se constrói cada vez mais fora da perspetiva de Deus e do seu culto. E Congar rematava: hoje, exigem-se gestos verdadeiros, uma palavra simples e verdadeira, sinais fortes e compreensíveis. Quer-se que a liturgia seja de Alguém, que seja expressão da sua alma e, por isso, que envolva e diga respeito à vida». E nesse sentido o Patriarca afirmou, no sentido do tom geral da Jornadas da Juventude: «Queremos ser Igreja Missionária que, ao estilo de Maria, se levanta apressadamente para a montanha do mundo e da humanidade.» Importa, assim, seguir um caminho audacioso e seguro, permitindo-nos exprimir gratidão e homenagem ao Cardeal D. Manuel Clemente, anterior Patriarca, pelo que realizou, pelas fecundas sementes que deixou e pelo muito que ainda tem para nos dar, na ação e no exemplo.
LEMBRAR A HISTÓRIA
Lembremos que Lisboa tem uma presença da Igreja Católica que vem dos primeiros séculos do Cristianismo. Foi elevada a metrópole eclesiástica, em 1393, tendo em 1716 o Papa Clemente XI, pela Bula de 7 de novembro, «In Supremo Apostolatus Solio», criado o Patriarcado de Lisboa, primeiro na Capela Real, em Lisboa Ocidental, estendendo-se em 1740 o referido estatuto a Lisboa Oriental. A decisão envolveu um acontecimento eclesial e régio. As razões que levaram o Papa a esta concessão inédita, diferente da de Veneza, que recebeu o título patriarcal já existente no Adriático, têm a ver imediatamente com a armada enviada por D. João V para deter o avanço turco no Mediterrâneo, seguindo um apelo insistente do referido Papa Clemente XI. A este facto, associa-se o zelo missionário de Portugal. Foi na verdade o auxílio prestado por D. João V ao Pontífice que decidiu a Santa Sé a reconhecer a importância da antiga capela real portuguesa. Assim a célebre embaixada do Marquês de Fontes (1712), enviada a Roma para defender o padroado português do Oriente e conseguir também o título patriarcal de Lisboa, obteve resultados positivos, graças ao auxílio político contra os turcos, que o Papa recompensou excelentemente. Pode dizer-se, contudo, que é o zelo missionário a razão decisiva para a permanência deste estatuto – que recorda os cinco patriarcados clássicos, Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém e se prolonga no Patriarcado da Índias Orientais, de Goa e Damão. O primeiro Patriarca de Lisboa foi D. Tomás de Almeida (1670-1754), notável teólogo, que veio do Porto para Lisboa, acompanhando D. João V até ao fim do seu longo reinado. Refira-se ainda, neste mês, o início do Ano Jubilar Vicentino, recordando o primeiro padroeiro da Cidade de Lisboa, São Vicente, cujas relíquias chegaram a Lisboa no dia 15 de setembro de 1173 e ficaram primeiro depositadas na Igreja de Santa Justa, sendo transladadas, no ano seguinte, para a capela-mor da Sé. Para assinalar a efeméride o Patriarcado de Lisboa, o Cabido da Sé e a Câmara Municipal de Lisboa concordaram numa série de celebrações comemorativas, em curso.
Guilherme d'Oliveira Martins
UN TEOLOGO EN LA MUERTE…
por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim,
Escreveu-me a NC um bilhete, gratificante para mim, sobre umas reflexões que me ouvira durante o jantar em casa dos C de T. Referia-se à minha meditação sobre o amor como comunicação, procura do outro, movimento perpétuo, e a perplexidade como desamor, paragem. Perplexo - até na sua raiz latina - é o que está atado, embaraçado, ou seja, confuso, indeciso, condenado ao imobilismo. O amor não sabe lidar com a perplexidade, porque é necessariamente generoso e a generosidade é uma atitude da alma como gesto para o outro. "Generositas", em latim, quer dizer nobreza, aquilo que tem qualidade; o seu radical é "genus" que significa nascimento, origem. E, assim também, genuíno se diz do que é verdadeiro, autêntico, inato. O amor é verdade marcada, desde o início, no coração dos homens. É princípio e fim de tudo. Não hesita, é um impulso vital. Quando ocorre a morte de um ente querido, ou nos escandaliza o sofrimento, a miséria, o mal espalhado pelo mundo, há um momento de perplexidade em nós, como se Deus nos tivesse traído. Até Cristo gritou, do alto do martírio da sua cruz: "Pai, porque me abandonaste?" O impulso genético do amor esbarra no absurdo. Só sabemos, então, que o absurdo não se explica. E hesitamos entre essa perplexidade - que nos fecha a Deus, aos outros, ao mundo, e nos imobiliza na impotência - e o amor que nos abre e empurra para fora de nós, ao encontro do outro. A escolha será nossa: amor e perplexidade não são compatíveis. Parafraseando o Ortega y Gasset ("el hombre es un transfuga de la naturaleza"), diria que o amor é um trânsfuga da condição individual: só se torna atual se nos transcendermos por pensamentos, palavras e obras que não nos confinem na paixão dos nossos limites. Quem passou pelo sofrimento de um amor traído, ou de uma amizade esquecida, saberá melhor o que custa, afinal, ser fiel: porque, quando ficou perplexo, terá tido ganas de acusar o outro, de se vingar, fazendo-o sofrer, tornando-o expiatório. Talvez ainda, quando mais resignado a uma fatalidade sofrida como injustiça, fosse tentado a quedar-se na perplexidade, rendido à amargura e à desilusão. Ou, quiçá, tenha feito da sua mágoa uma oferta, guardando serenamente no coração o amor como dom... Dom de si na comunhão de todos, nessa comunicação inesgotável com o nosso ser universal. O amor põe-nos na eternidade, vem do princípio antes de nós e vai até além de qualquer limite que possamos conceber. Recordo "Un teólogo en la muerte", do Jorge Luis Borges, inspirado num relato dos "Arcania Caelestia" de Emanuel Swedenborg: «Los ángeles me comunicaron que quando falleció Melanchton, le fué suministrada en el otro mundo una casa ilusoriamente igual a la que habia tenido en la tierra. (A casi todos los recién venidos a la eternidad les sucede lo mismo y por eso creen que no han muerto). Los objetos domesticos eran iguales: la mesa, el escritorio con sus cajones, la biblioteca. En cuanto Melanchton se despertió en ese domicilio, reanudó sus tareas literarias como si no fuera un cadáver y escribió durante unos días sobre la justificación por la fe. Como era su costumbre no dijo una palabra sobre la caridad. Los ángeles notaran esa omissión y mandaron personas a interrogarlo. Melanchton les dijo: "He demonstrado irrefutablemente que el alma puede prescindir de la caridad y que para ingresar en el cielo basta la fe." Esas cosas les decía con soberbia y no sabia que ya estaba muerto y que su lugar no era el cielo. Cuando los ángeles oyeron esse discurso lo abandonaran”». O conceito de justificação pela fé, do protestante Melanchton, mesmo com o pensamento na suposta libertação dos fiéis cristãos da tutela uniformizadora da doutrina e da prática religiosa impostas pela igreja católica, resultará finalmente em fundamentalismos exclusivistas, essencialmente análogos ao espírito da Santa Inquisição. Como se a verdade que cada um entende - e em que acredita - fosse superior ao amor que, à imagem e semelhança de Deus, deve ser comum a todos. "Ama e faz o que queres", disse Agostinho. "Ubi est caritas ibi Deus est", diz a tradição do ensinamento de Jesus. O único antídoto para a concupiscência - que é pensar e fazer por si sem ver o Outro - é o bem-querer, é a humildade intangível de querer o bem. O que está inscrito, no coração dos homens, não é esta ou aquela fé. É simplesmente a fé no amor que se comunica e salva todos. Poderei crer que a forma de fé que professo seja aquela em que melhor se revela e realiza o amor primordial. E nesse movimento quererei comunicá-la. Sem nunca me esquecer de que não sou dono do amor. Assim também, no amor humano, o que vale não é o que no outro mais me agrada ou desagrada. É, tão difícil e simplesmente, a procura da comunicação. Mesmo a comunhão dos santos não é uma uniformidade, nem há comunhão se não houver diferença. Comungar é juntar em paz, num só corpo, as nossas diferenças. No seu diário íntimo, Alma Werfel que, nesse mês de janeiro de 1902, viria a chamar-se, pelo casamento com Gustav - o compositor, maestro e diretor da Ópera de Viena - Alma Mahler, escreve: " Ele quer mudar-me, mudar-me completamente. E eu também quero. Consigo-o enquanto estou a seu lado - mas basta-me ficar sozinha para que o meu outro eu, esta cabeça má e vaidosa, tenha vontade de reaparecer... ... Ontem à tarde, suplicou-me que lhe falasse - e eu não consegui encontrar uma única palavra calorosa. Nem uma. Chorei. E nada mais...". Alberto Moravia conclui o seu romance sobre o amor conjugal com este diálogo, numa igreja em ruínas, mas acolhedora, entre o narrador e sua mulher, já com história feita de encontros e desencontros: "- Penso que, daqui a uns tempos, quando nos conhecermos melhor, deverás, como ontem à noite dizias, recomeçar a escrever este romance... e tenho a certeza de que farás uma coisa bem feita! (diz a mulher). Não respondi e limitei-me a acariciar-lhe a mão. Mas por cima do seu ombro vislumbrei o capitel com cara de demónio, e pensei que, para retomar o meu romance, precisaria não só de conhecer o diabo tão bem como o canteiro que o esculpira, mas de conhecer igualmente o seu contrário. - Precisarei de muito tempo... - disse, com doçura. E estas palavras, pronunciadas em voz alta, concluíram o meu pensamento". E termino eu mais esta etapa da nossa digressão pelo labirinto claro da mente de Camilo Maria. Recordando a afirmação que encerra o "Some like it hot" do Billy Wilder: "Nobody is perfect!"
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 10.05.13 neste blogue
Há já alguns anos, o meu bom e ilustre amigo, o eurodeputado Paulo Rangel, e eu tivemos uma conversa muito agradável para mim sobre (imagine-se) Deus e a tentativa de dizê-lo e nos relacionarmos com Ele. Dela resultou um texto de Paulo Rangel, com o significativo título “Deus é Aquele que está”. Numa longa entrevista recente a Inês Maria Meneses, voltou ao tema, confessando a sua fé no Deus de Jesus, o Emmanuel, o “Deus connosco”. Para ele, Deus é “Aquele que está”, Deus não é “esse ser distante e estático” construído a partir da ontologia grega, o Deus que é, “mas antes o ser próximo e interactivo que está e estará connosco, Aquele que acompanha, Aquele que não abandona. Deus é Aquele que está, o Emmanuel.”
Concordando plenamente com o amigo Paulo Rangel, volto, já em pleno Natal, ao tema, essencial nesta data. De facto, corre-se permanentemente o perigo de esquecer o determinante, já não referindo sequer a ameaça de se ficar amarrado a um consumismo devorador e à concorrência dos presentes: tenho de dar isto e aquilo de presente, para não ficar mal; não posso esquecer este, esta, e aquele, aquela, porque no ano passado também deram… É preciso parar e reflectir, em primeiro lugar, para se não ficar encerrado em dogmas, quando a fé cristã se dirige a uma pessoa, Jesus confessado como o Cristo (o Messias) e, através dele, a Deus que Jesus revelou como Pai e poderemos e deveremos também dizer como Mãe, com todas as consequências que daí derivam para a existência.
O que diz o Credo cristão, símbolo da fé? “Creio em Jesus Cristo. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.” Segundo a fé cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas segue-se a pergunta fundamental: o que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres, cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa, em contexto linguístico da ontologia grega. Ora, a teologia dogmática tem que ver com doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se: os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência para o melhor, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e estes para Deus?
Exemplos mais concretos, um do Antigo Testamento e outro do Novo, até para se perceber a passagem do universo hebraico em que Jesus se moveu e o universo grego no qual aparecem redigidos os Evangelhos. No capítulo 3 do livro do Êxodo aparece a manifestação de Deus na sarça ardente e Moisés dirige-se a Deus: se me perguntarem qual é o teu nome, que devo responder-lhes? E Deus: “Eu sou aquele que sou”. Dir-lhes-ás: “Eu sou” enviou-me a vós. A fórmula em hebraico: ehyeh asher ehyeh (“eu sou quem sou”, “eu sou o que sou”) é o modo de dizer que Deus está acima de todo o nome, pois é Transcendência pura, que não está à mercê dos homens, mas diz também (a ontologia hebraica é dinâmica) o que Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos acompanha no caminho da liberdade e da salvação. Depois, com a tradução dos Setenta, compreendeu-se este ehyeh asher ehyeh como “Eu sou aquele que é”, “Eu sou aquele que sou”, o Absoluto. Filosofando sobre Deus, a partir daqui, Santo Tomás de Aquino dirá que Deus é “Ipsum Esse Subsistens” (O próprio ser subsistente), Aquele cuja essência é a sua existência. Isto é verdade, mas significa o quê para iluminar a existência? Perdeu-se a dinâmica do Deus que está presente e acompanha a Humanidade na história da libertação salvadora.
No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar a Jesus se ele era o Messias. Jesus não afirmou nem negou. Mas deu uma resposta existencial, prática: “Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos vêem, a Boa Nova é anunciada, a libertação avança, a salvação está em marcha”.
O que é que isto significa? A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura existencial, histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Assim, na perspectiva cristã, o essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está presente? Na linha dogmático-doutrinal, exige-se e até se pode dar um assentimento intelectual, subordinando-se, mas a existência continua inalterada. Corre-se então o perigo de uma “fé” em fórmulas doutrinais coisistas, petrificadas, sem qualquer transformação da vida. Ora, a vida cristã, se quiser ser verdadeiramente cristã, no discipulado de Jesus, tem de ser determinada mais pela ortopráxis do que pela ortodoxia (sem menosprezo, evidentemente, pela ortodoxia, segundo uma hermenêutica adequada): Jesus louvou a cananeia pela sua fé, que não era ortodoxa, deu como exemplo o samaritano, que não seguia a ortodoxia, mas praticava a misericórdia, e, sobretudo, leia-se o Evangelho segundo São Mateus, no capítulo 25 sobre o Juízo Final, no qual não há perguntas sobre fórmulas teóricas religiosas, mas sobre a prática: “Destes-me de comer, de beber, vestistes-me, visitastes-me na cadeia e no hospital...”.
A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de todos, mensagem que mudou a História. Bom Natal!
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 24 de dezembro de 2022
De 19 a 25 de setembro de 2022
João Manuel Duque, autor de “Dizer Deus na Pós-Modernidade” (Alcalá, 2003), recebeu o Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes. Damos conta das palavras que proferiu na cerimónia de entrega do galardão.
O CONFRONTO COM A TECNOLOGIA
Na cerimónia de entrega do Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes, o teólogo João Manuel Duque, agraciado este ano, afirmou estarmos perante a tentação da prevalência de posições extremas, na relação entre a humanidade e a tecnologia entre quem sonha “com uma espécie de divinização do humano através da sua transformação e transfiguração tecnológica, e da demonização da tecnologia”. Essas duas atitudes correspondem, porém, a um mesmo deslumbramento (e submissão) relativamente às inovações da tecnologia, tantas vezes sob o esquecimento do carácter permanente e irrepetível da humanidade. No fundo, importa saber qual o impacto dos recursos digitais e da internet sobre as sociedades e as pessoas. A vontade, a autonomia, a consciência e o livre arbítrio não podem deixar de estar presentes nesse confronto. Daí a necessidade de distinguir os fins e os meios. A pessoa humana e a dignidade estão no domínio dos fins, enquanto as tecnologias, a inteligência artificial e os robôs se encontram no campo dos instrumentos, ao serviço das pessoas.
Importa debater, “de forma mais equilibrada o impacto antropológico da tecnologia e as transformações que comporta, seja a nível psíquico seja a nível social”, sendo impossível pensar os humanos reais do nosso tempo sem essa dimensão. Nesse sentido, “o discurso teológico não é, em primeiro lugar, apenas para ambientes eclesiais”, devendo as comunidades que aí se movem “estar permanentemente envolvidas e interessadas nas questões significativas da humanidade, sobretudo naquelas que tocam a convicção fundamental do que seja humano e do que seja o seu sentido sobre a Terra”. A teologia deve, por isso, “falar para fora, a partir de dentro, e falar para dentro a partir de fora. E isso não como alternativa”, mas sim num movimento permanente de vaivém, envolvendo quem se move dentro e fora dos meios eclesiais. De facto, a ideia de um dentro e de um fora da Igreja – ou do mundo – é problemática, por ser rigidamente dualista. “Distinguir é benéfico e mesmo necessário; mas separar é, normalmente, prejudicial ou mesmo perigoso”. Urge deste modo, evitar a confusão entre o humano e o divino, assim como nunca poderemos separá-los, como mundos diferenciados e à parte. O pensamento teológico exige, assim, uma inserção cultural. Por isso, a teologia que se pratica entre nós é uma teologia contextualizada na Europa, devendo, no entanto, ainda considerar-se a sua relação com o resto do mundo.
PENSAR-NOS NA RELAÇÃO COM OS OUTROS
Para João Manuel Duque, estamos perante dois desafios: “pensar-nos em relação aos outros, diferentes de nós; e pensar-nos nos dinamismos internos” da Europa, onde nos encontramos. Quanto ao primeiro aspeto, estamos perante a possibilidade de desenvolvimento de uma fértil relação com a América Latina, África e Ásia, em cujos contextos o impacto do pensamento que podemos designar como “decolonial” sobre a teologia se torna evidente. Já quanto ao segundo aspeto, há dois caminhos possíveis: por um lado, a relação da teologia com a política de acolhimento do que é diferente e outro, nomeadamente na questão das migrações e dos refugiados. Uma teologia completamente alheia a esta questão seria uma teologia incapaz de compreender a realidade. Complementarmente, no caminho alternativo importa compreender a relação da teologia com o mundo da cultura, nomeadamente com o mundo das artes, no sentido mais abrangente da criação. E então estamos perante fatores desafiantes, que procuram interpretar o mundo que nos cerca, através de formas que se aproximam do discurso teológico.
QUE PÓS-MODERNIDADE?
Quando João Manuel Duque escreveu “Dizer Deus na Pós-Modernidade” (2003), Eduardo Prado Coelho considerou tratar-se de uma obra referencial que merecia uma especial atenção. Para o autor, “sendo a teologia de sempre uma tentativa, simultaneamente renovada e inculturada, de articular Deus num discurso humano, a teologia contemporânea – pelo menos no mundo dito ocidental – não poderá ser outra coisa, senão a constante procura de dizer Deus na pós-modernidade. Mas a abordagem do espaço e tempo culturais, considerando o mundo que habitamos em termos de ‘pós-modernidade’, exige ainda uma elaboração crítico-reflexiva vasta e alargada”. Por isso, esboçar uma teologia na pós-modernidade pressupõe a análise atenta da cultura e do pensamento pós-modernos, “tarefa a que nenhuma teologia atual pode esquivar-se, quer venha a enfrentar esse contexto de forma radicalmente crítica, quer pretenda torná-lo fértil no seu próprio interior”. Assim se compreende a referência e a atenção dada a autores como Hans Urs von Balthasar, na consideração do amor como plenitude metafísica; Eberhard Jüngel, ao referir a morte de Deus por amor; Johann Baptist Metz, interrogador das histórias da História; Jean-Luc Marion, estudioso da superação da idolatria metafísica; e Georg A. Lindbeck, que se preocupa com os limites da intra-textualidade. Isto, sem esquecer H.-G. Gadamer, com quem compreendemos que “o intérprete tem o dever de entrar em diálogo com a realidade de que se fala nas narrativa”. E assim a hermenêutica é sempre dialética, visando a compreensão do texto teológico e sempre a necessidade da compreensão de si mesmo. E temos de lembrar ainda Nietzsche e a tensão que existe com o cristianismo, no tocante ao facto de Deus poder ser mediador da afirmação do homem e o homem mediador da afirmação de Deus. No fundo, o trabalho de uma teologia pós-moderna é imenso, quer se trate da desconstrução de perspetivas modernas ou mesmo pré-modernas, quer se trate do desaparecimento de categorias que se nos tinham tornado habituais, que se trate da redescoberta de temáticas ou perspetivas já antigas e algo esquecidas pela modernidade.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
A razão iluminista tinha como desígnio a reconciliação e emancipação plena do Homem. Mas, de facto, sem esquecer evidentemente conquistas irrecusáveis, como, por exemplo, as Declarações dos direitos humanos nas suas várias gerações, deparamos com duas guerras mundiais e as suas muitas dezenas de milhões de mortos, o comunismo mundial e também os seus milhões e milhões de vítimas, deparamos com Auschwitz e o Goulag, o fosso cada vez mais fundo entre a riqueza e a miséria, a Natureza ferida, a desorientação e o vazio de sentido...
E, desgraçadamente, sabemos que o número das vítimas não cessará de aumentar, de tal modo que frequentemente a História nos aparece, como temia Walter Benjamin, à maneira de um montão de ruínas que não deixa de crescer. Mas, mesmo que fosse possível realizar no futuro uma sociedade totalmente emancipada e reconciliada, nem assim, desde que iluminada pela memória, a razão poderia dar-se por satisfeita, pois continuariam a ouvir-se os gritos das vítimas inocentes, cujos direitos estão pendentes, pois não prescrevem.
O teólogo Johann Baptist Metz não se cansou de repetir, com razão, que só conhecia uma categoria universal por excelência: a memoria passionis, isto é, a memória do sofrimento. Se a História não há-de ser pura e simplesmente a história dos vencedores, se a esperança tem de incluir a todos, quem dará razão aos vencidos?
A autoridade do sofrimento dos humilhados, dos destroçados, de todos aqueles e aquelas a quem foi negada qualquer possibilidade é ineliminável. Trata-se de uma autoridade que nada nem ninguém pode apagar, a não ser que o sofrimento não passe de uma função ou preço a pagar para o triunfo de uma totalidade impessoal. Mas precisamente o sofrimento, que é sempre o meu sofrimento, o teu sofrimento, como a morte é sempre a minha morte, a tua morte, é que nos individualiza, dando-nos a consciência de sermos únicos, de tal modo que nenhum ser humano pode ser dissolvido ou subsumido numa totalidade anónima, seja ela a espécie, a história, uma classe, o Estado, a evolução... O sofrimento revela o outro na sua alteridade, que nos interpela sem limites.
Assim, se as vítimas têm razão - a razão dos vencidos, como escreveu o filósofo Reyes Mate -, com direitos vigentes que devem ser reconhecidos, não se poderá deixar de colocar a questão de Deus, um Deus que as recorde uma a uma, pelo nome, chamando-as à plenitude da Sua vida. "Essa é a pergunta da filosofia", dizia Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt. Mas é claro que para essa pergunta só a fé e a teologia têm resposta. Ele próprio o reconheceu, ansiando pelo “totalmente Outro”.
Se a História do mundo tem uma orientação, ela só pode ser a liberdade. Ser Homem, ser livre e ser digno identificam-se. Com razão, I. Kant não se cansou de repetir que o respeito que devo aos outros ou que os outros podem exigir de mim é o reconhecimento de uma dignidade, isto é, de um valor que não tem preço. O que tem preço pode ser trocado: é meio. O Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim em si mesmo.
Quando nos interrogamos sobre o fundamento da dignidade do Homem, encontramo-lo no seu ser pessoa. Pela liberdade, a pessoa está aberta ao Infinito. Se se reflectir até à raiz, concluir-se-á que o fundamento último dos direitos humanos é nesse estar referido estrutural do Homem ao Infinito que reside: nessa relação constitutiva à questão do Infinito, à questão de Deus precisamente enquanto questão (independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê), o Homem aparece como fim e já não como simples meio.
O Homem é senhor de si, autopossui-se, e é capaz de entregar-se generosamente a si próprio a alguém e por alguém. A Humanidade faz a experiência de si como história de libertação para mais humanidade, portanto, para mais liberdade. O Homem indigna-se desde o mais profundo de si contra a indignidade, revolta-se contra toda a violação arbitrária e impune da justiça e do direito, e é capaz de dar a vida pela dignidade da humanidade em si próprio e nos outros seres humanos.
Houve muitos homens e mulheres que, ao longo da História, livremente, morreram por essa dignidade. Mas mesmo que tivesse havido apenas um a fazê-lo, seria inevitável perguntar: o que é isso que vale mais do que a vida física?
Precisamente aqui, nesta experiência-limite, deparamos com o intolerável: como é que pode ser moralmente admissível que quem é sumamente digno, pois se entrega até ao sacrifício de si pela dignidade, morra, desapareça e apodreça, vencido para sempre? Por isso, neste acto de suma dignidade, encontramos um dos lugares em que a questão de Deus enquanto questão é irrenunciável e irrecusável.
A experiência do Deus bíblico surge essencialmente da experiência do intolerável de as vítimas inocentes serem entregues para sempre à injustiça. O Deus bíblico é definitivamente um Deus moral: é o Deus que não esquece os vencidos.
Por isso, a História não é um continuum, onde a razão estaria permanentemente do lado dos vencedores. A História está aberta ao salto último da meta-história, à Palavra definitiva que só Deus pode pronunciar, Palavra que ressuscita os mortos e reconhece para sempre às vítimas os seus direitos. Sem esse reconhecimento definitivo da dignidade de todos, bem e mal, justiça e injustiça, honra e cinismo, verdade e mentira, dignidade e indignidade, tudo é igual, pois, como escreveu Bernhard Welte, tudo seria para nada, já que irá ser engolido pelo nada para sempre.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 12 de fevereiro de 2022
No Evangelho, as três tentações de Jesus estão todas relacionadas com o poder. Antes de iniciar a sua vida pública, Jesus teve de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda via que seguiu: "Eu não vim para ser servido, mas para servir", e servir até dar a vida, dar a vida para testemunhar a verdade e o amor. A verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da dominação.
Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável, tem de haver instâncias de poder. Toda a questão consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram de que Ministro, etimologicamente, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve? Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Por isso, Jesus disse aos discípulos, também ao Papa, bispos, cardeais, padres: "Sabeis que os chefes das nações governam-nas como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós seja vosso servo".
Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo latino augere, que significa aumentar, fazer crescer. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na liberdade e na dignidade, na realização plena de todos os seres humanos em todas as dimensões... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores, padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz crescer, quando preserva e aumenta a dignidade humana... Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos os que clamam por mais liberdade e dignidade...
Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a essa dignidade inviolável.
A grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Mas então esqueceu e ignorou o Evangelho. Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: "Perdido o sentido do Mistério, instala-se a 'indoutrinação' e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder".
A novidade do Deus cristão, revelado em Jesus, é que Ele é poderoso, infinitamente poderoso, mas o Seu poder não é de domínio, mas de criação: Força infinita de criar. Fez-nos livres, para estabelecer connosco uma aliança. Com todas as consequências...
Aí está a razão por que, quando se fala em Igreja, é difícil não se ser imediatamente confrontado com alguma situação de desconforto. De facto, a Igreja aparece frequentemente como uma hierarquia soberana e longínqua, que comanda, que proíbe, não se percebendo muitas vezes se essas ordens e proibições querem realmente o bem das pessoas ou, se, pelo contrário, não são expressão disfarçada de interesses económicos e políticos, enfim, do poder...
Num primeiro momento, pelo menos, a Igreja surge como uma hiperorganização. Mas não deveria ser assim. De facto, a palavra igreja em português (iglesia em castelhano, église em francês) vem do grego Ekklesía. Ora, a Ekklesía era a assembleia do povo. No alemão (Kirche), no inglês (Church), etc., a origem é outra: Kyrike (forma popular bizantina), com o significado de "pertencente ao Senhor" (Kyrios) e, por extensão, "casa ou comunidade do Senhor". De qualquer modo, na dupla etimologia, a Igreja, no Novo Testamento, significa a assembleia daqueles que acreditam em Cristo, que crêem nele como o Messias e se tornaram seus discípulos, querendo, portanto, segui-lo, fazendo durante a vida o que ele fez e confiando nele na própria morte, esperando também a ressurreição. A Igreja desde o início considerou-se a si mesma como a assembleia dos fiéis a Cristo, dos que pertencem ao Senhor: o sinal dessa pertença era o baptismo e reuniam-se, celebrando, na Ceia, a sua memória, até que Ele venha.
Evidentemente, sendo constituída por homens e mulheres, a Igreja precisou de dar-se a si mesma o mínimo de organização. Por isso, nela, há diferentes funções e serviços. A palavra correcta é precisamente serviços. Significativamente, o Novo Testamento não fala de hierarquia (poder sagrado), mas de diakonia, que quer dizer ministério, serviço (mas também os Ministros dos Governos não esqueceram já que ministro é aquele que presta um serviço?).
Que é que isto tudo quer dizer? A Igreja não é, na sua raiz, uma hiperorganização, mas assembleia convocada por Deus e reunida em Cristo. Então, o Papa, antes de ser Papa, é cristão; o bispo, antes de ser bispo, é cristão, um seguidor de Cristo; um cardeal, um cónego, um padre são discípulos de Cristo, que têm uma missão de serviço. Que devem servir, precisamente como qualquer cristão. Não há de um lado a hierarquia que manda e do outro os cristãos leigos que obedecem. Há sim a comunidade dos que acreditam em Cristo, que procuram ser seus discípulos e que prestam serviços uns aos outros e a todos, segundo os dons e as tarefas que foram dados a cada um para bem de todos.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 11 de dezembro de 2021
Sobre o sexo, as mulheres, as religiões e a Igreja já escrevi aqui muitas vezes. Também em livros que publiquei, incluindo o próximo, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?, que espero esteja nas livrarias em finais de Outubro. Retomo hoje o tema muito rapidamente, por causa do “alarido” que houve nos média provocado por uma leitura na Eucaristia de um Domingo passado, transmitida pela televisão pública. Algum esclarecimento é devido.
1. O que se passou é que foi feita uma leitura bíblica a dizer: “As mulheres sejam submissas aos maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o Chefe da Igreja”.
Previno que o texto é da Carta aos Efésios, atribuída a São Paulo, mas a autoria realmente não lhe pertence. Aliás, é preciso dizer que, no cristianismo, com Jesus, que escandalosamente tinha discípulos e discípulas, São Paulo deu um contributo decisivo para a emancipação feminina: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus”, escreveu na Carta aos Gálatas; e na Carta aos Romanos descreve Júnia como ilustre entre os Apóstolos.
2. Todas as religiões se entendem a si mesmas como reveladas. A pergunta é: como sabem os crentes que Deus falou?
A religião tem sempre na sua base uma interpretação humana da realidade, da única realidade que há, comum a crentes e a não crentes, e que é ambígua. Para o crente, a realidade mesma, para a sua compreensão adequada, aparece-lhe como incluindo uma Presença que não se vê em si mesma, mas implicada no que se vê. Mediante certas características - a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido último -, a própria realidade se mostra implicando essa Presença divina como seu fundamento e sentido últimos. Assim, como escreve A. Torres Queiruga, na estrutura íntima do processo religioso, “não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum”.
A fé, no seu nível próprio, tem razões, de tal modo que está sujeita à verificação. Aí, o agnóstico dirá que não vê razões para poder decidir-se. O ateu julga que as razões contrárias são mais fortes e, por isso, não crê. Para o crente, a “hipótese religiosa” é a que melhor esclarece as experiências e questões radicais postas pela realidade e pela existência: a contingência, as perguntas últimas pela vida e pela morte, a esperança, a exigência ética, o sentido da existência e da História.
3. A partir de uma experiência religiosa de fundo por parte do profeta ou do fundador religioso, desencadeia-se um processo vivo que dá origem a tradições religiosas ou religiões que acabam por sedimentar ou cristalizar em livros sagrados, considerados “revelados”. Os novos crentes não aceitam a verdade da fé por via autoritativa. Eles próprios podem comprová-la. A. Torres Queiruga, o teólogo que de modo mais penetrante tentou esclarecer esta questão, chamou a esta compreensão “maiêutica histórica”. Na verdade religiosa, há os profetas e os fundadores das religiões, que foram os primeiros a tomar consciência da verdade. Mas, após essa descoberta, ouvindo-os e acompanhando-os, outros se podem dar conta por si mesmos da mesma verdade.
A partir daqui, compreende-se que Deus se manifesta, mas nunca directamente, sempre e só indirectamente. Jamais alguém viu ou falou directamente com Deus. Por isso, os livros sagrados não são um ditado divino – são Palavra de Deus em palavras humanas. Os seus autores escreveram e os seus leitores lêem com uma pré-compreensão, isto é, no quadro de pressupostos históricos e culturais, interesses e expectativas. Portanto, a sua leitura nunca pode ser literal, pois implica sempre uma interpretação.
Torna-se, pois, claro que os livros sagrados – a Bíblia, o Alcorão e todos os outros – não são ditados divinos e precisam, por isso, de uma interpretação histórico-crítica e de uma mediação hermenêutica, não podendo de modo nenhum ser engolidos na sua totalidade de modo acrítico. É preciso lê-los, atendendo à língua original, ao género literário, aos destinatários, ao contexto...
A verdade de qualquer livro sagrado só pode acontecer na compreensão de que o seu horizonte é a salvação. Eles são livros religiosos voltados para a oferta de libertação, dignificação, salvação.
Se toda a religião tem como ponto de partida e “definição” a pergunta essencial: o quê ou quem traz libertação e salvação?, então a libertação-salvação total é que constitui o fio hermenêutico decisivo para a interpretação correcta dos livros sagrados na sua verdade final. Só a esta luz é que eles são verdadeiros. A sua leitura nunca pode ser fragmentada, já que só no seu todo é que se reclamam da verdade. Em tudo quanto neles se encontra de menos humano ou até de desumano revela-se o que Deus não é.
À luz da libertação final, que implica uma antropologia e uma teologia negativas, os livros sagrados são também a história da tomada de consciência por parte dos humanos do que Deus, o Sagrado, não é e do que eles, para se tornarem verdadeiramente humanos, não devem ser.
4. Conclusão: O alarido todo não pode ser atribuído à “talibona” que fez a leitura na Eucaristia. A culpa não é dela, mas dos responsáveis que deveriam, embora continuando na Bíblia, retirar esse texto da celebração litúrgica.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 4 de setembro de 2021