Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Dentro de uma imagem de mundo, tudo em nós nos diz e persevera que é assim o mundo, e tudo dentro da moldura é ele mesmo, e nós e as nossas sensações de seguranças dentro dele.
Mas um dia, descobrimos que o que tínhamos por garantido nos desaparece num segundo.
Afinal, basta mesmo que nos anunciem uma doença sem controlo, que nos desapareça quem muito amávamos, que um casamento feliz seja agora contenda, que uma guerra nos leve casa e comida, que se perca o emprego, que desapareçam as poupanças, que caiam as aparências que criámos, e logo a nossa ideia de constância é posta em causa.
Então, de repente, tudo nos escapa, e dentro da moldura tudo é inconsistência.
Eis, pois, que traçámos na areia as linhas das nossas batalhas, e mutantes, nós mesmos, nunca admitimos o quanto poderoso era e é a característica do provisório.
A moldura que criámos com resistente e sedutor “passe-partout” não resistiu ao pedaço de caos que nela aceitou.
Talvez se tudo o que circulava fora da moldura, estivesse dentro do nosso campo de lucidez e coragem, não nos teriam chegado as cegueiras simulatórias que tanto foram mutilando a nossa decifração.
Afinal, sob cada um de nós, qual parte nos habita e subjuga?
A nossa espécie, desde o início, tem usado as histórias para se explicar a ela mesma.
A partir das lendas e dos mitos criámos mundos fantásticos e neles os nossos pensamentos acerca da nossa própria natureza.
Na caverna de Platão, as sombras adivinhavam o mundo fora dela.
Na verdade, os nossos medos, as nossas dúvidas, as nossas formas de alcançar as verdades inventando coisas e dando-lhes significados, têm sido uma constante.
Os homens também criaram deuses para aclararem a sua origem e por linguagens e silêncios chegaram a respostas às perguntas e de novo as perguntas e de novo as possibilidades.
Na verdade, embora seja irreal que os tapetes voem, a clareza desta ideia pode virar muitos percursos e incutir a muitos encontros.
Numa viagem sem canoa as histórias estabelecem uma relação entre o mundo da imaginação e o denominado mundo real, e também desafiam a criar o juiz do próprio homem nele mesmo.
Todos gostamos de viajar na nossa imaginação ainda que não vivamos nela na totalidade, mas ela explica-nos muitas razões da necessidade de criarmos os nossos protetores, os nossos pais invisíveis.
Na verdade, muitos contos nem sempre foram originalmente escritos para crianças e muitos deles dizem de nós verdades bem amargas, e outros esclarecem-nos, sobretudo, quando ficamos por nossa conta.
O mundo das histórias da imaginação, diga-se, tem a sua própria lógica interna: tem as regras de um mundo que também não tem como conhecer certezas; tem a não inocência, e pode até ser tão falhado quanto o mundo denominado verdadeiro, mas trata de coisas reais como o amor, a morte, o ódio, o medo, o poder, chegando até todos os sentires por caminhos diferentes.
O mundo das histórias é assim, mesmo que saibamos que não é assim, nem diferente, antes de outro modo, daquele mesmo indizível que vai deixando pegadas ao tempo para que os nossos passos de adultos se não esqueçam de coisas fundamentais.
A incapacidade de pensar conduz à questão do errado que é de julgamento moral e não legal
A incapacidade de pensar também conduz à questão do errado que é de julgamento moral e não legal.
Arendt estabelecia uma diferença entre as questões legais e morais, mas admitindo sempre que ambas pressupõem o poder do julgamento.
Na verdade, pode-se estar a obedecer à lei e não se ser acusado de nada, o que não impede que o que se tenha feito não esteja absolutamente errado.
E como consideramos absolutamente responsável alguém que violou um código moral e não um código legal?
Na verdade, pode-se rebentar qualquer categoria do julgamento moral, e a diferença entre quem nela participa sem resistir, e quem decide resistir, assenta numa única resposta: capacidade de pensar.
De registar que os crimes que desafiam a possibilidade de julgamento humano são exatamente os que estoiram com qualquer organização das instituições legais que os tenham em mira de responsabilidade.
O julgamento-espetáculo, a torpeza política, as falsas verdades, as hediondas desumanidades, também assentes no simplificador sim ou não, no branco ou preto, expõem a natureza do mal profundo sem que quem o pratique sinta culpa alguma, já que quem o exerce não se pergunta até onde é capaz de viver consigo depois de provocar e mesmo cometer atos terríficos.
A verdade da enormidade do mal instigado por grupos, sem pensamento autoanalítico, manietam gente e mercadoria, movendo milhões ao escrutínio, num sem contorno na radical desigualdade da lei perante os cidadãos.
O mal extremo continua a renascer para destruir o que resta de humano nos homens, experiência recapturada e reatualizada como se esta herança nos tivesse sido deixada em testamento a cumprir.
Quem está preparado para responder pelo que considera justo, nunca será aquele que conduzido por “notáveis” sem pensamento, é, na verdade, incapaz de entender a sua falência no aceitar-se neste contexto; no não percecionar que a importância da luta pelo que é positivo reside no não esquecimento do que é negativo; que a incapacidade de pensar conduz igualmente à questão do errado que é de julgamento moral e não legal.
E vai sendo suposto que este é um modo de viver neste estado incompossível de não-ser.
Parecem seres ausentes do mundo estes seres que tomam por inimigos quem os abana para que se proporcione vida.
E como dialogar com eles sem surpresa nem susto?
Eles são também os novos tempos de sonolência e existem ainda mais gentes com outras sonolências, mais escravas da escravatura, do não-questionamento de si próprias e da possibilidade de se olharem conforme à sua condição envolta numa gama de simplificações absurdas.
E de um lado para outro os tempos do ovo sem gema.
E como extrair alguma coisa deste nada a que se chegou?
Estarão muitos dos homens ineptos para a existência, destituídos de meios para pensar, falar, questionar, contestar, como quem aceita os planos inclinados e porque sim ou porque não, e por que, e os danos colaterais a celebrarem a apoteose da morte em grunhidos quase números.
E vai sendo suposto que este é um modo de viver neste estado incompossível de não-ser.
E são estas as gentes líquidas, as gentes de uma humanidade destituída até da angústia.
E o drama é a conciliação no aceitar este viver todas as praias assim e tudo o mais no mesmo assim.
E o drama é que dentro destes seres existe a faca que cortou todas as palavras e as coisas que denominam.
Contudo, algo superior e distinto existe e continuará a acudir à loucura do mundo.
A paixão pela compreensão implica necessariamente uma entrega ao pensamento crítico reflexivo, uma capacidade de amar a vida e de a entender, preocupando-nos com a formatação que nos impõem, procurando pensamentos à busca de uma finalidade.
Pensar e repensar é um imperativo ao compreender.
Não descurando analogias com outros tempos, a pertinência de pensarmos o mundo liberta-nos para aferirmos uma outra responsabilidade pelas nossas ações a fim de acedermos a um pensamento que melhor entenda os elementos da condição humana.
Não existimos sozinhos, todos somos diferentes uns dos outros, todos, um dia desapareceremos. Parece, pois, que existimos num espaço de transição, nesse mesmo em que pode prevalecer o interesse de construirmos um mundo em comum, um mundo apesar dos apesares, um mundo com uma oportunidade mais humana.
Aqui e agora, na nossa vida quotidiana, o modo de criarmos linguagem para melhor interpretarmos os nossos pensamentos, baliza a acutilância com que os mesmos se vêm a formular e a esclarecer-nos.
Compreender e ser-se compreendido clareia a própria experiência da solidão, clareia e alerta o declínio da cultura.
Há que aprender a cultivar a ataraxia para que haja uma certa indiferença em relação a tudo o que não deve suscitar preocupação excessiva da nossa parte.
Recolhamo-nos, pois, até ao fundo das contradições para voltarmos a todos os inícios a partir de nós, a partir da perspetiva do outro.
Livremo-nos do que obscurece a mente para que se aprenda a discernir e a desconfiar das ideias inúteis.
Há que gozar a vida também e através de atos belos, critério sábio para avaliar entre correto e incorreto.
Nem por um instante nos podemos distrair da luta contra a desumanização e que tanto expõe a fealdade quotidiana do mundo.
Vive-se numa guerra entre versões incombináveis da realidade e temos de aprender a travá-la.
As narrativas prenhas de destruidoras mentiras contam histórias que se têm revelado atraentes para os seguidores dos gostos como nova gulodice.
É chegada a hora de expormos as realidades dentro das quais, em consciência, as pessoas querem viver.
É chegada a hora de deixarmos absolutamente claro o quanto a brutalidade cria falsas explicações para justificar a agressão e o controlo; o quanto a opressão conduz ao desastre total que visa impedir-nos o pensar e o sentir.
E sabe-se que o amor dos opressores está cheio de ódio, e que tudo o resto do seu íntimo e dos seus objetivos, já a história tragicamente conheceu.
Mas em nós, em nós, a substantiva bússola da alma-planta que rompe a pedra e é esperançar, e é caminhar, agir, fazer nascer, clamar pela nossa atenção ao presente para que não viremos costas ao futuro; para que saibamos que não estamos impotentes se não ficarmos ociosamente quietos, enquanto as batalhas tiranizadoras grassam em várias frentes.
Em nós, dizíamos, esta substantiva bússola da alma-planta que rompe a pedra e expõe a conciliação dos humanos com a sua humanidade.
Aleluia!
E se é certo que o poema não impede a bomba ele recorda-nos que é mais forte do que a morte.
Todos temos os nossos meios para nos mantermos envolvidos e prestarmos atenção, de forma útil, aos tempos que se vivem.
Lembremo-nos que a proibição aos seres de não irem mais além sempre tem sido vencida.
Lembremo-nos que não seríamos quem somos sem os nossos ontens.
Lembremo-nos das acutilantes e esperançosas palavras de Aranguren: