CRÓNICAS PLURICULTURAIS
146. ENTRE O REAL E O IDEAL E O IDEAL E O REAL
O florentino Maquiavel e o inglês Thomas More são dois vultos permanentes em política e sociologia.
Maquiavel, confrontado com as guerras e lutas civis que gangrenavam a península itálica, procura uma maneira de a salvar, colhendo e adaptando os ensinamentos da história de Roma e da “Política” de Aristóteles, escrevendo “O Príncipe”, onde César Bórgia, senhor de Florença, de quem foi favorito e secretário de chancelaria, é tido como uma referência de governante, a quem atende, aconselha e se dirige.
Não sendo os poderosos, por natureza e princípio, mais inteligentes e justos que os outros, defende que chegaram onde estão porque são mais astutos, demagogos, hipócritas e pérfidos, podendo usar a crueldade, a tortura, a mentira, a má fé, o crime e a violência para manter o poder. Se para teres êxito na vida tiveres de atropelar e passar por cima dos outros, não hesites, sendo irrelevante que alcances o êxito sem honra ou modo pouco honroso. O fim justifica os meios, mesmo que condenáveis em si, desde que chegues onde queres, estando as razões de Estado acima de tudo, para alcançar o bem geral, identificado com o interesse de quem governa.
Os Estados, evoluindo ao sabor das leis naturais que gerem as sociedades, adaptam-se e reformulam-se consoante os tempos, de monarquias eletivas, hereditárias, tirânicas e decorativas, a repúblicas, autocracias, ditaduras, democracias liberais ou iliberais, e por aí adiante, num equilíbrio instável, em progressos e regressões.
Tomás Moro, inspirado na “República” de Platão, foi autor da “Utopia”, que significa “o que não existe em lado algum”, imaginando uma sociedade ideal, perfeita, quimérica, habitando uma ilha idealizada e longínqua, que o navegador português Rafael Hitlodeu conhecera, onde os bens são comuns, os governantes eleitos pelos utopistas, estes consultados sobre o que é relevante, quem governa fixa planos de produção e dirige a economia, todos vivendo felizes com o que têm, e cada um com o que precisa, idealizando uma coletividade com base na razão humana, balançando entre um real que se censura e rejeita e o ideal que se almeja e sonha.
Os utopistas deviam ajudar os vizinhos a transformar-se em Estados utópicos, passando a protegê-los, tendo-se como precursores do humanismo.
Este balancear do real para o ideal (Maquiavel e Tomás Moro) e do ideal para o real (Tomás Moro e Maquiavel), continua a guiar-nos, nomeadamente os políticos, sendo tidos por realistas e idealistas consoante seguidores de Maquiavel ou de More, chamando-se maquiavélica a política caraterizada pela ausência de escrúpulos para governar e tomar o poder, e idealista a que se baseia numa sociedade que não existe mas se deseja que exista, mesmo que alimentada pela fantasia, fuga e sonho de um mundo tido como irreal.
Em qualquer caso, o Estado é um ente sempre presente, quer infrinja as leis para se manter e disponha das nossas vidas sem limites, quer se assuma como paternalista, qual messias ou salvador, rumo à sociedade ideal.
Predominando, entre os políticos e grandes estrategas os realistas (realpolitik), que nunca deixaram de ler e meditar sobre a doutrina de Maquiavel (tendo como subjacente os interesses práticos e primordiais do Estado e que as relações de poder tendem a minar as pretensões de fundamentação moral), deduz-se ser esta a política que agarra mais de perto a realidade atual, devidamente adaptada ao contexto em que vivemos, teoria que tem como intrínseca a imperfeição da condição humana, com o seu clímax em todas as ditaduras e totalitarismos.
Porém, embora constitutivamente finitos e imperfeitos, também aspiramos, constitutiva e estruturalmente, a fazer sempre melhor, rumo a uma sociedade superiormente aperfeiçoada, num misto entre o real e o ideal e vice-versa, mesmo que agora utópica e uma democracia escrutinadora e pluralista, per si, possa ser vulnerável e insuficiente.
18.08.23
Joaquim M. M. Patrício