A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 25 de junho de 2023
“Pátrias – Uma História Pessoal da Europa” de Timothy Garton Ash (Temas e Debates, 2023) é um livro precioso para a compreensão da evolução europeia, dos seus riscos e potencialidades.
NOVA FRONTEIRA DA EUROPA
Em maio de 1994, convidei Timothy Garton Ash, no âmbito dos III Encontros Internacionais de Sintra, organizados pela SEDES, com o apoio da então Comissão portuguesa da Fundação Europeia de Cultura. O tema era “A Nova Fronteira da Europa”, e houve oportunidade para refletir sobre as consequências do fim da guerra fria e sobre os cenários para a reconstrução europeia, considerando a reunificação alemã de 1990, o tratado de Maastricht e a reforma monetária, a trágica evolução na guerra dos Balcãs, a incerteza na situação russa (entre o otimismo de Hélène Carrère d’Encausse e o realismo de Iouri Afanassiev) e a iminência da entrada da Suécia na União Europeia. Nessa circunstância, não bastaria invocar a União Política europeia, tornava-se fundamental dar passos para que o espaço supranacional comunitário fosse dotado de órgãos de decisão e de controlo constitucional representativos e legítimos capazes de resolver problemas comuns e de consolidar a solidariedade europeia. Por outro lado, os alargamentos exigiriam especiais cautelas, porque uma Europa de portas abertas obrigaria a uma casa arrumada, devendo a solidariedade ser resultado de uma vontade comum, de instituições representativas e de uma legitimidade democrática comummente aceite. A epígrafe que animava a reflexão era de Karl Jaspers: “A Liberdade mantém o europeu na intranquilidade e na inquietação”. Nada mais apropriado para o momento e para a complexidade dos problemas então vividos…. Era um tempo em que Vaclav Havel representava o melhor do início do período pós-Muro e a ex-Jugoslávia representava o pior.
UMA HISTÓRIA PESSOAL
Timothy Garton Ash é um dos mais lúcidos analistas da situação europeia e acaba de publicar um livro notável que merece uma leitura muito atenta, confirmando o bem fundado da afirmação de Jaspers, que servia de mote à reunião de 1994. Refiro-me a Pátrias – Uma História Pessoal da Europa (Temas e Debates, 2023). Longe de uma tentativa de interpretação ou de uma previsão relativamente ao futuro, encontramos nesta reflexão uma rica experiência pessoal e a necessidade de compreender a falibilidade das tentativas de prever o futuro sem consideração da complexidade. Há trinta anos, num congresso sobre prospetiva chegou-se, aliás, à conclusão de que um dos poucos exercícios de sucesso para antecipar o futuro coube, não a um relatório de especialistas, mas a Júlio Verne, numa obra póstuma, “Paris no século XX”, que o editor em 1860 se recusou a publicar em vida do autor, por ter previsões arriscadas. Todavia, quando hoje lemos o livro (então considerado impossível), lá estão, por exemplo, muitos dos instrumentos de comunicação que se tornaram comuns. E Timothy Garton Ash constata que, num simpósio em Delfos realizado em 2018 para falar do futuro, lembrando o velho oráculo, ninguém foi capaz de prever que o mundo iria estar em breve sob o domínio de uma pandemia nem que iríamos ter uma guerra importante na Europa em menos de quatro anos. “É loucura imaginar que podemos saber o que vai acontecer amanhã, para já não falar de mais tarde no futuro. É sabedoria tentarmos fazer as conjeturas mais informadas e inteligentes sobre os desafios que é provável que venhamos a enfrentar, para nos prepararmos para eles”. De facto, a questão não está em tentar prever a natureza, mas em fazer planos de emergência melhores. Como afirmou Reinhart Koselleck, “quanto mais as nossas previsões informadas se possam inspirar na experiência recorrente, maior será a probabilidade de serem rigorosas”. Mas há sempre surpresas. O velho império soviético caiu em apenas três anos praticamente sem um tiro, daí que fosse provável uma reação violenta da antiga potência imperial. Por isso, a partir de 2008 ocorreram a intervenção na Geórgia, a tomada da Crimeia, a guerra continuada na Ucrânia oriental desde 2014, e ainda a invasão de 2022… Ocorre, assim, consultando a bola de cristal, considerar que enquanto Putin estiver no Kremlin teremos uma Rússia agressiva e impiedosa, que o maior desafio global é a China, que utiliza já a sua riqueza para exercer influência designadamente no Sudeste europeu, sendo muito atraente para o hemisfério sul, enquanto o tema de Taiwan abre incertezas sérias quanto à hipótese de um conflito com os Estados Unidos. Tudo isto, a somar aos efeitos do aquecimento global, à crise da energia e à dependência dos combustíveis fósseis, aos desafios demográficos, às migrações, à saúde e à aprendizagem. Garton Ash intitula esta sua viagem como uma história pessoal, considerando o foco em especial no centro e leste da Europa. Desde o dia D e da participação de seu pai no desembarque da Normandia, passando pela destruição ocorrida no fim da guerra em 1945, pela divisão ocorrida entre 1961 e 1979, pela batalha pela liberdade (1980-1999), pelo mundo do pós-Muro, repleto de contradições, esperanças e desilusões (1990) e pelas vacilações recentes, financeiras, sanitárias e bélicas (2008-2022). É este o quadro histórico possível de desenhar. A referência às Pátrias pressupõe o realce do patriotismo, no sentido que De Gaulle lhe dá: “é amar o teu próprio país; enquanto nacionalismo é detestar o dos outros”. E Konrad Adenauer esclarece que “A História é a soma total de coisas que podiam ter sido evitadas”.
MEMÓRIAS DE UM EUROPEU
Ao lermos Stefan Zweig em Memórias de Um Europeu, compreendemos que andámos para trás, e que regressamos a um tempo de todos os riscos: “Nunca amei mais a nossa velha terra do que nesses anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, nunca tive mais esperança na unificação europeia, nunca acreditei mais no seu futuro do que nesse tempo, quando pensávamos que estávamos a entrever uma nova alvorada. Mas, na verdade, já era o clarão do incêndio da conflagração mundial que se adivinhava”. E os acontecimentos recentes na Ucrânia lembram-nos ainda o discurso de Péricles, relatado por Tucídides: “O segredo da felicidade é a liberdade e o segredo da liberdade é a coragem”. Quando Putin lançou a ofensiva contra a Ucrânia, muitos pensaram que David estava condenado a ser vencido por Golias. Tudo seria muito rápido. Mas os acontecimentos contrariaram a expectativa e quando o “Moskva”, o navio almirante russo, foi afundado deu-se o que ninguém podia prever. E houve quem invocasse que o espírito de Aquiles, vencedor de Heitor em Troia, estava agora na ilha das Cobras no Mar Negro, que os mapas mais antigos designavam por ilha de Aquiles. Era esse espírito que agora animava os resistentes ucranianos. E, continuando a pensar em Tucídides, a verdade é que o desfecho da guerra do Peloponeso, não seguiu a lógica previsível dos estrategos. Na “casa comum europeia”, há muito por fazer numa “causa merecedora de esperança”, resta saber como prevenir o futuro.
Guilherme d'Oliveira Martins
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