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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 9 a 15 de junho de 2025

 

"O Sonho de uma Nova Manhã – Cartas ao Papa" de Tomás Halik é uma reflexão tanto mais oportuna quanto corresponde ao início de um novo pontificado, num mundo de grandes incertezas.

 

o sonho de uma nova manhã.jpg

 

O autor escreveu estas cartas no final do pontificado do Papa Francisco e o certo é que ganharam uma evidente atualidade, pelo que nelas se lê e pelo sentido prospetivo que contêm. A eleição do Papa Leão XIV obriga à consideração de um novo tempo, por diversas razões. Antes de mais, a herança do Papa Francisco exige a ponderação de um método sinodal que ficou delineado quanto ao futuro próximo e que deve continuar. Há um conjunto de exigências que correspondem a desafios múltiplos e complexos, desde a resposta à reorganização da Cúria, à recuperação da credibilidade afetada pelos escândalos morais, passando pela resposta da Igreja Católica, como realidade global, relativamente à crise das vocações, ao papel das mulheres e à mobilização de todas as energias disponíveis. O novo Papa declarou-se missionário, e importa encontrar as melhores respostas relativamente a esse perfil de ação. E importa não esquecer ainda que a leitura dos sinais dos tempos faz-nos regressar ao pressupostos da encíclica “Pacem in Terris”. Num mundo dominado pela incerteza e pela violência, são pedidas ao “Povo de Deus” diligências concretas para que haja avanços no diálogo e na mediação para que a paz não seja uma palavra vã. Em simultâneo, importa tomar-se consciência de que o desenvolvimento humano obriga a recusar a inércia da indiferença, bem como exige a definição de prioridades que correspondem à resposta ao vazio de valores éticos, à situação dramática das desigualdades e injustiças e à dramática crise ambiental.

 

Tomás Halík imagina um Papa surgido num novo tempo, com o nome de Rafael: «um dos temas-chave nas minhas conversas com o papa Rafael é a questão de como passar da reforma, no sentido de apenas mudanças exteriores na forma, à transformação interior do ‘coração das coisas’. Como, no processo de reforma, não perder, mas sim descobrir algo novo e revitalizar aquilo que constitui a identidade cristã, aquilo que é para ela o ‘sal da terra’ e o fermento do pão fresco para os dias de amanhã?» Se falamos de transformação, temos de entender a ideia de metamorfose, que a natureza nos ensina. Há um caminho. Por isso, o método sinodal faz sentido como gradual reflexão e como ação com consequências práticas. «Os movimentos de renovação da Igreja têm de ser avaliados, na medida em que contribuem para que tudo o que é humano na Igreja esteja cada vez mais aberto a esta dinâmica transformadora da presença de Deus. Jesus, na sua famosa parábola, fala sobre o grão que tem de morrer para dar fruto». Mas quem somos? Vivemos numa circunstância perigosa. Pessoas com identidades pessoais fracas e incertas facilmente sucumbem ao mercado das seitas, de ideologias fundamentalistas, fanáticas e totalitárias. Por outro lado, os meios e os fins confundem-se e perde-se o sentido de um tempo que não se esgota no imediato e no instrumental.

 

Charles Péguy e Jacques Maritain falaram dos polos político e profético da vida – ambos são indispensáveis, no primeiro, cuidamos da relação entre as pessoas na cidade; no outro, procuramos sentido para além do imediato. A vida faz-se dessas duas referências. Daí que a sinodalidade seja não apenas “a necessidade de caminharmos juntos e de pensarmos juntos, mas também a oportunidade de percebermos ao longo desse caminho a compatibilidade entre temas que são, muitas vezes, discutidos separadamente. Cada passo no caminho para uma compreensão mais profunda de um dos grandes temas teológicos traz uma nova luz sobre os outros”. Não podemos viver sem transcendência e a liberdade de consciência permite distinguir e completar os planos, de modo que a dimensão espiritual não ponha em causa o espaço plural da polis. E assim Teilhard de Chardin está presente na lição de “Fratelli Tutti”, considerando “a cooperação, a parceria e o apreço mútuo como motores do desenvolvimento em vez da luta pela sobrevivência”. A idade do Espírito Santo de Joaquim de Flora deve, assim, ser lida não como um contraponto relativamente à presença do Pai e do Filho, mas como uma continuidade. O Pentecostes é natural presença do Espírito na História. Afinal, como ensinou o Mestre Eckhart, “o homem exterior tem um deus exterior e o homem interior tem um Deus interior”. Como realidades do mundo da vida, “religare” e “relegere” constituem o fenómeno religioso como natural no seio da humanidade, fator de coesão e de reflexão, de ligação e de confiança. Somos uma comunidade de peregrinos, a quem se pede que saibamos escutar-nos uns aos outros. “A igreja tem a obrigação de ser a voz daqueles que não têm voz e tem de interpretar a mensagem que nos é dirigida e nos é transmitida por Deus fora das fronteiras da fala humana”.

 

A noção de ecumenismo alarga as fronteiras e chega à compreensão franciscana da “Laudato Si’”. Tomás Halik crê, assim, sinceramente numa renovação sinodal, numa partilha de responsabilidades, num encontro de todas as mulheres e homens de boa vontade. Não se trata de alimentar qualquer ilusão, mas de compreender quem é o nosso próximo e de fazer da atenção e do cuidado a nossa ordem do dia. E esta renovação sinodal “inclui o aprofundamento do respeito mútuo e do diálogo entre três componentes da Igreja; a hierárquica (representando a continuidade da tradição), a democrática (representando o sensus fidelium, a experiência da fé de todo o povo de Deus) e a carismático-profética (representando a presença do Espírito de Deus). Se a Igreja realmente enveredar por esse caminho, a relação entre a fé do indivíduo e a fé de uma Igreja assim entendida será muito mais dinâmica, mais rica, e mais profunda. Não se tratará de uma obediência de tipo militar, mas de uma escuta comum, de um enriquecimento mútuo, uma complementaridade, uma busca comum, uma viagem comum a profundidades inesgotáveis”. Eis a atualidade de uma obra que nos põe perante os desafios fundamentais do mundo contemporâneo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença