CRÓNICAS PLURICULTURAIS
194. LITERATURA E TRADUÇÃO
“A razão do papel maior desempenhado pela tradução literária é evidente: foi graças às traduções que o checo se constituiu e aperfeiçoou como língua europeia de corpo inteiro, terminologia europeia incluída. Enfim, foi através da tradução literária que os checos fundaram a sua literatura europeia em língua checa e que a literatura formou os leitores europeus que leem checo”.
Milan Kundera
Sobressai a ideia de que uma nação só sobrevive culturalmente se deixar de ter uma visão paroquial, meramente utilitária e só centrada no seu umbigo, em benefício de critérios importantes para o mundo e toda a humanidade, onde o tradutor, como ator literário maior ou principal, tem o protagonismo.
As palavras de Kundera, inseridas num discurso ao Congresso dos Escritores da Checoslováquia, em 1967, sobre “A Literatura e as pequenas nações”, exclui o pensar de que uma germanização teria simplificado a vida dos checos, dado que a pertença a uma nação maior oferecia melhores oportunidades e alargava o alcance a todo o trabalho do espírito, incluindo a ciência.
Preserva-se e reafirma-se a identidade de um povo, atualizando-a, quando e se necessário, dando-a a conhecer ao Outro e recebendo, desse encontro, em reciprocidade, valores que os povos possam acolher, em igualdade, rumo à construção de um caminho em dignidade e humanidade.
Entre nós, por exemplo, refere-se como forte razão para o défice de apenas um escritor de língua portuguesa ter sido premiado com o Nobel da literatura, a pouquidade de tradução para sueco (principal idioma escandinavo, sendo a Suécia patrocinadora do prémio), a que se soma a insuficiência de tradução para o inglês, hoje a língua global por excelência (o que foi atempadamente suprido por Saramago).
Há também o perigo da globalização, inclusive em termos culturais quando, em rigor, deve ser a cultura o derradeiro abrigo que justifica e preserva a identidade e singularidade que nos autonomiza e diferencia, contrariando perspetivas estritamente hegemónicas e integracionistas. Só assim os pequenos povos conseguem defender a sua língua e a sua soberania, através do peso cultural do seu idioma e a natureza dos valores gerados com a sua ajuda.
Mesmo Portugal, que tem, através da lusofonia, uma das línguas mundiais maiores, não está imune ao fenómeno mundial de massas, dada uma intelectualizada, gradual e lamentável tendência de começar a priorizar o inglês à sua língua natal, a pretexto de facilitar o contacto com a ciência e o cosmopolitismo internacional, sem reciprocidade, o que pode e deve ser suprido, sempre que necessário, pela tradução para português (em sentido inverso), enriquecendo-o em termos de valor acrescentado e linguísticos.
03.01.25
Joaquim M. M. Patrício