AS TENTAÇÕES DO PODER E A TRAGÉDIA
Perante os horrores que estamos a viver, escrever o quê? O meu desejo era tão-só pôr como título: Ucrânia: o horror. Depois, pedir para colocarem na página em branco a imagem de uma cruz e, no fundo à direita, duas palavras: Lágrimas e solidariedade. E era tudo.
Mas estamos na Quaresma e, no Domingo passado, o Evangelho narrava as três tentações de Jesus, tentações que, lá no fundo, não são senão uma só: a tentação do poder total enquanto domínio: o poder económico — o diabo disse a Jesus: “diz a estas pedras que se transformem em pão” —, o poder religioso — levou-o ao pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, os anjos levar-te-ão nas suas mãos” —, o poder total — “o diabo mostrou-lhe todos os reinos do universo: Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória; se te prostrares diante de mim, tudo será teu.”
Jesus não cedeu. Mas, quando se cede, caindo na tentação do domínio total, da omnipotência, julgando ser Deus, então é o que se sabe, ao percorrer a História: horrores, tragédias sem fim, a brutalidade pura, reinos destruídos, impérios que se desmoronam, ódio, sofrimento e dor sem nome e sem fim... Lembrando apenas o século XX na Europa: várias guerras, com duas mundiais, custaram quantos mortos? E agora, quando pensávamos ter encontrado a paz, eis que, num desígnio imperial, Vladimir Putin, ignorando o Direito Internacional, a dignidade da pessoa, os direitos humanos, invade um país independente e soberano, a Ucrânia. E aí está outra vez a guerra, e as atrocidades sucedem-se, bombardeamentos indiscriminados, milhões de deslocados, feridos, mortos, edifícios arrasados, idosos, mulheres, crianças a fugir desesperados à morte, num calvário arrepiante, pungente. O intolerável que, no limite da loucura de uma guerra nuclear, poderia arrastar para o auto-aniquilamento da Humanidade...
Mesmo se a União Europeia e a NATO não souberam gerir da melhor maneira o pós-queda do Muro de Berlim e o desmembramento da URSS — não se deverá esquecer a ideia de De Gaulle sobre uma Europa “do Atlântico aos Urais” nem o discurso do Papa João Paulo II sobre o Ocidente e o Oriente como “os dois pulmões” da Igreja e da Europa —, isso não justifica de modo nenhum a invasão. Aliás, felizmente, como que anunciando o despertar para uma nova Europa, nunca a Europa esteve tão unida como nesta condenação e, também na Assembleia geral da ONU, 141 Estados votaram a favor da resolução condenando a invasão; apenas 5 votaram contra. Putin sentir-se-á isolado como nunca, já com um lugar na história dos tiranos, e a solidariedade com os ucranianos é gigantesca e cordial.
Nesta solidariedade e procura da paz mediante negociações diplomáticas, o Papa Francisco tem sido incansável. Logo nos primeiros dias da guerra, encontrou-se com o embaixador russo no Vaticano, telefonou ao embaixador da Ucrânia, manifestando a sua “profunda dor” pela invasão, e falou com o presidente ucraniano Zelensky.
Entretanto, enviou à Ucrânia dois cardeais: Krajewski, o esmoleiro, e Czerny, prefeito do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, como mensageiros da paz. No Domingo passado, foi claro: “Na Ucrânia, correm rios de sangue e de lágrimas. Não se trata de uma operação militar, mas de guerra, que semeia morte, destruição e miséria.” Lembrando as tentações, sublinhou que elas são “uma proposta sedutora mas que conduz à escravidão do coração: cegam-nos com a ânsia do ter, reduzem tudo à posse de coisas, de poder e de fama. Jesus, porém, opõe-se vitoriosamente à atracção do mal. Como? Respondendo às tentações com a Palavra de Deus, que diz que a verdadeira felicidade e a liberdade não estão no ter, mas na partilha, não no aproveitamento dos outros, mas no amor, não na obsessão pelo poder, mas na alegria do serviço.” E, mais uma vez, declarou: “A Santa Sé está disposta a tudo, a pôr-se a caminho pela paz.” Numa conversa telefónica entre o Secretário de Estado do Vaticano e o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, o cardeal Parolin repetiu a Lavrov o apelo de Francisco e a disposição da Santa Sé para todo o tipo de mediação considerado útil para fomentar a paz: “Os combates têm de cessar, impõe-se abrir corredores humanitários, negociar.”
O grande objectivo de Francisco é poder entrar em contacto, pelo menos telefónico, com Vladimir Putin. Para isso, precisaria da mediação do Patriarca ortodoxo de Moscovo, Kirill, que, desgraçadamente, se tem colocado ao lado de Putin.
Termino com parte da letra de uma canção, enviada por um amigo, intitulada: “Senhor Putin”.
“Sr. Putin, permita que lhe pergunte: afinal, quem é? Nasceu de pai e mãe? Tem coração que bate? Pensa? Sente? Já alguma vez sofreu? Já chorou? Como é possível sob o seu comando tanta gente perder a vida, perder a paz, ter de abandonar as suas casas, fugir das armas e tanques de guerra, tudo sob o seu comando? Como pode ver crianças a sofrer, a chorar assustadas, crianças mortas? Crianças a nascer em bunkers, mulheres a ver os seus maridos e filhos a morrer? Quem é afinal, Sr. Putin? Pense... Alguém lá acima, mas muito acima..., Esse, sim, a quem todo o poder pertence, Ele fará justiça e o Sr. Putin irá então encontrar-se consigo mesmo, dando conta da sua pequenez, ignorância, insignificância, frieza, crueldade e materialismo. A vida aqui tem um tempo limitado. Abra os olhos. Pare, Sr. Putin, pois esta guerra não é dos russos, é do Sr. Putin. Deus, sim, Ele é o Senhor de tudo.”
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 12 de março de 2022