Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
As notícias da guerra da Ucrânia sobre o património cultural são motivo de grande preocupação.
EFEITOS DEVASTADORES DA GUERRA
Cerca de 250 monumentos já foram ou completamente destruídos ou danificados desde o início da guerra, a 24 de fevereiro de 2022. Segundo a UNESCO, verificaram-se graves danos nos locais de valor cultural do país, correspondendo os prejuízos a estragos irreparáveis. A diretora-geral Audrey Azoulay, estima que serão necessários 6,3 mil milhões de euros para recuperar os valores culturais materiais afetados na Ucrânia se se considerarem os níveis de qualidade próximos dos que existiam antes do início do conflito. Nesse sentido, a diretora-geral manifestou disponibilidade da organização para ajudar as autoridades ucranianas a elaborar um plano de reconstrução nacional para o património cultural do Estado soberano que é a Ucrânia. Deve ficar claro que os objetivos essenciais da UNESCO se relacionam com a Cultura da Paz, que constitui um fator fundamental para a salvaguarda da Carta das Nações Unidas e das finalidades originais da organização, que permitam realizar progressos efetivos nos domínios da educação, da ciência, da cultura e da livre circulação de ideias. Trata-se de contribuir para o desenvolvimento económico e social das nações e para a realização de uma cultura centrada na dignidade humana, em especial nos países e regiões em dificuldades, lembrando em especial desde as situações extremas de guerra às da pobreza, fome e destruição. Se lembrarmos a fórmula do preâmbulo do Ato Constitutivo da UNESCO, temos em vista o objetivo da “prosperidade comum da humanidade”. A construção, a prevenção e a manutenção da paz, bem como a proteção dos direitos humanos, têm, assim, uma essencial componente cultural, que não pode ser menosprezada. Por isso, segundo os fundadores da UNESCO, a manutenção da paz deveria ser uma obrigação superior a todas as outras, à qual se deveria subordinar toda a sua ação. Daí a importância fundamental da cooperação internacional, da compreensão mútua entre as nações, da solidariedade humana, da educação orientada para a liberdade, a igualdade e a justiça, bem como da ciência centrada no saber e na experiência, no saber fazer e da cultura assente no respeito dos outros e das diferenças, no exemplo e no cuidado.
A UNESCO E A GUERRA
A Ucrânia conta atualmente com sete bens culturais e um natural, declarados como Património da Humanidade pela UNESCO. Todos estão diretamente ameaçados, devendo referir-se, como temos lembrado, a Catedral de Santa Sofia de Kiev, o conjunto de edificações monásticas e o Mosteiro de Petchersk, símbolos da Nova Constantinopla, de um valor cultural e espiritual incalculável (inscrito em 1990); bem como o conjunto e a malha urbana medieval do Centro Histórico de Lviv, além das construções barrocas da cidade (inscrito em 1998 e 2008); dezasseis Tserkvas de madeira na região dos Cárpatos, em territórios da Polónia e Ucrânia, templos da igreja ortodoxa tradicional (inscritos em 2013); o Arco Geodésico do astrónomo Friedrich Georg Wilhelm Struve (realizado entre 1816 e 1855), abrangendo dez países, desde o Báltico ao Mar Negro (inscrito em 2005); a Residência dos Metropolitas da Bucóvina e da Dalmácia em Tchernivtsi, junto da Roménia e da Moldávia, do arquiteto checo Josef Hlavka, reflexo da política de tolerância religiosa do Império Austro-húngaro (inscrito em 2011); a Cidade Antiga de Quersoneso na Crimeia, que corresponde aos restos da cidade fundada pelos gregos dóricos no século V a.C. no norte do Mar Negro, importante centro vinícola animado pelos povos grego, romano e bizantino com referências até ao século XV (inscrito em 2013), além do Centro Histórico de Odessa (inscrito com caráter de urgência em 2023); e, no domínio natural, as Florestas Primárias de faias dos Cárpatos, abrangendo 12 países (inscrito em 2007). No caso de Odessa, foi seguido um procedimento excecional, que permitiu a integração em janeiro de 2023 na lista da UNESCO, tendo a diretora geral afirmado: “Odessa, cidade livre, cidade-mundo, porto lendário que marcou o cinema, a literatura, as artes, passa a estar colocado sob a proteção reforçada da comunidade internacional”. Perante a situação de guerra, esta inscrição corresponde à determinação da UNESCO no sentido de garantir que a cidade, afetada por muitos distúrbios mundiais, seja preservada de novas destruições. Paralelamente ao processo de inscrição, a UNESCO pôs em prática medidas de urgência visando assegurar a reparação dos danos infligidos no Museu de Belas-Artes de Odessa e no Museu de Arte Moderna. A organização forneceu os equipamentos necessários para inventariação de cerca de mil obras e da coleção documental dos Arquivos de Estado de Odessa, além de material de proteção para as obras ao ar livre. Estas medidas fazem parte de uma ação global da UNESCO na Ucrânia que já mobilizou 18 milhões de dólares em favor da educação, cultura, ciência e comunicação. Recorde-se que a Ucrânia é membro do Conselho da Europa e é signatária da Convenção-Quadro sobre o valor do Património Cultural para a sociedade contemporânea, assinada em Faro em 2005, entrada em vigor em junho de 2011. A Ucrânia assinou a Convenção em outubro de 2007, tendo sido a mesma ratificada em janeiro de 2014 e entrado em vigor em maio de 2014.
PATRIMÓNIO EM PERIGO
Considerando o património em perigo ou parcialmente afetado, refira-se o Centro Histórico de Chernigov, perto de Kiev e a Catedral da Transfiguração do século XI. Há a lamentar a destruição confirmada e irreversível do museu de Ivankiv, a noroeste de Kiev, com 25 obras da Maria Prymachenko (1908-1997), artista popular ucraniana, admirada por Pablo Picasso. Algumas obras deste acervo foram salvas por um cidadão local, com risco da própria vida. Representantes da UNESCO e autoridades ucranianas decidiram colocar Escudos Azuis nos bens ameaçados na zona do conflito, segundo a Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada na Haia (1954). O Comité Internacional do Escudo Azul (Blue Shield ou Bouclier Bleu) foi fundado em 1996 pelo ICOM, ICOMOS, Conselho Internacional dos Arquivos e Federação Internacional dos Bibliotecários, com o fim de assegurar a proteção do património cultural ameaçado por guerras e catástrofes naturais. Invocar a situação dramática em que nos encontramos na Europa, num momento de guerra, de total incerteza, que podemos designar, como faz o Papa Francisco, como uma terceira guerra mundial em pedaços, significa pôr sobre a mesa os valores éticos que chamem a cultura, a arte e a humanidade à ordem do dia enquanto memória e património cultural como realidades vivas. Há demasiada indiferença, muito egoísmo e esquecimento. Precisamos de estabelecer comunicações entre os seres humanos, uma circulação de culturas e a possibilidade de imaginar, ou seja, de ver longe e largo, em nome da paz.
1. Quando olho para a tragédia que se abateu sobre a Ucrânia: bombas atrás de bombas, milhões de refugiados, valas comuns, mortos e mais mortos, crianças afogadas no pânico, mulheres sem palavras para chorar e gritar os horrores, hospitais, creches, escolas destruídos, ruinas, mais ruinas, um mundo a desabar, ameaças de guerra nuclear..., só poderia desejar, do fundo do coração, poder responder: Não, nunca mais haverá guerra. Mas sei que não é assim. Haverá sempre guerras, a não ser que se desse uma conversão radical da humanidade.
Neste sentido, há um texto que me foi enviado, cujo autor desconheço mas com o qual estou de acordo, até porque encontrou as palavras certas para descrever este mundo de loucura. Reza assim: “Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar: ‘Eu mato para roubar’. As guerras invocam sempre motivos nobres: matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e, por causa das dúvidas de nenhuma destas mentiras ser suficiente, aí estão os meios de comunicação dispostos a inventar inimigos imaginários para justificar a transformação do mundo num grande manicómio e um imenso matadouro. Em Rei Lear, Shakespeare escreveu que neste mundo os loucos guiam os cegos, e, quatro séculos depois, os senhores do mundo são loucos enamorados da morte que transformaram o mundo num lugar onde a cada minuto morrem de fome ou doença curável dez crianças e a cada minuto se gastam três milhões de dólares, três milhões de dólares a cada minuto, na indústria militar, que é uma fábrica de morte. E as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, e os cinco países que dominam as Nações Unidas, que têm direito de veto nas Nações Unidas, acabam também por ser os cinco principais produtores de armas. A gente pergunta: ‘Até quando? Até quando a paz do mundo estará nas mãos dos que fazem o negócio da guerra? Até quando continuaremos a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo e que o extermínio mútuo é o nosso destino? Até quando?’ “.
2. O filósofo I. Kant escreveu que o ser humano se defronta com três impulsos fundamentais: o prazer, o poder e o ter. Por mim, penso que o mais forte é o poder enquanto domínio. De facto, o ser humano é carente e confronta-se com a morte, que o confronta com o nada. Através do poder, de poder em poder, cada vez com mais poder, alcançaria a omnipotência e mataria a morte.
Pascal, o grande Pascal, o matemático eminente, uns dos maiores de sempre, e também um dos maiores cristãos europeus de sempre, viu bem quando escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre “le rien et l’infini” (o nada e o infinito). Por isso, a mais poderosa tentação, desde o início da humanidade, é a omnipotência. Embora se trate de uma estória mítica, ela diz o essencial: no Génesis, a serpente voltou-se para Eva e disse-lhe que, apesar da proibição por Deus, se comessem do fruto proibido, seriam como Deus, alcançariam a omnipotência. E deu a Adão, e ela também comeu. E aí estão as trágicas consequências: foram expulsos e, logo a seguir, Caim matou o irmão, Abel, inaugurando uma torrente de sangue sem fim.
Com o poder, vem o ter e cada vez mais teres, porque o desejo de ter é insaciável. E os teres precisam de ser aumentados sempre mais e defendidos, e aí estão a violência e a guerra, que, paradoxalmente, aumentam o poder e o ter. Neste nosso tempo, os gastos com novas armas rondam os dois milhões de milhões (2.000.000.000.000) de dólares, com a lógica de que as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, também para gastar o armamento velho e produzir novas armas.
3. O poder fascina de tal modo que até há bem pouco tempo se cantava nas igrejas a Deus como “Senhor Deus dos exércitos” — aliás, ainda há um bispo das forças armadas, mas não um bispo da saúde e da cultura...— e a maior traição da Igreja foi ter-se transformado numa instituição de poder.
Jesus tem duas advertências essenciais. “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro”. Ele conhecia bem a importância do dinheiro — não passou a maior parte da vida a trabalhar? —, mas não se pode adorar Dinheiro (com maiúscula). Significativamente, os Evangelhos foram escritos em grego, mas mantiveram duas palavras em aramaico, a língua materna de Jesus: Abbá, Paizinho (era com esta ternura que Jesus se dirigia a Deus) e Mammôn, a deusa do dinheiro. Mammôn tem o radical mn, que significa confiar. A revelação de Jesus é que Deus é bom, Pai e Mãe de todos, e realmente não é possível confiar, entregar-se confiadamente a Deus e ao mesmo tempo confiar, entregar-se confiadamente a Dinheiro como salvador.
Jesus também disse: “Eu sou Senhor e Mestre”, mas “vim para servir, não para ser servido”; “quem quiser ser o primeiro seja servidor”. Deus é omnipotente? Sim, tem todo o poder, mas não enquanto dominação mas Força infinita de criar.
O latim pode ser iluminante. Mestre tem na sua origem magister, com base em magis, que significa mais, de tal modo que o mestre é o que está acima, o maior, em contraposição com ministro, que vem de minister, com base em minus, menos, e que é o servente, o que serve. (Quantos ministros — também os ministros da Igreja — se lembram que devem ser os que servem, os serventes?). E isso nada tem que ver com ser incompetente. O exemplo é Jesus: ele é o verdadeiro Mestre e Senhor, mas é servidor. Assim, todos devem levar o mais longe possível os seus dons, não para dominar, mas para a maior realização de todos.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 15 de outubro de 2022
Vivemos uma paz armada com os nossos corpos instalados na paz e os nossos espíritos situados entre bombas e escombros. Atacamos um inimigo com palavras, e ele ataca-nos com ameaças, mas dormimos na nossa cama e não num abrigo. E, no entanto, participamos na verdadeira guerra, sem que tenhamos entrado, mas fazendo entrar nela armas e munições.
A guerra da Ucrânia internacionalizou-se progressivamente. À ajuda humanitária e depois alimentar às populações ucranianas vítimas da agressão russa, sucedeu a ajuda militar em armas, primeiro defensivas e depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade crescem principalmente com o contributo massivo dos Estados Unidos, acompanhados pela maior parte dos países da União Europeia.
A estratégia do exército russo é implacável. É filha do método de Jukov, da Segunda Guerra Mundial, com formidáveis bombardeamentos de artilharia, não só contra as tropas inimigas, mas também contra as cidades a tomar, com destruição completa pela artilharia pesada da capital do Reich, Berlim. Como acontece com qualquer exército vencedor, mas mais terrivelmente no caso do avanço soviético na Alemanha, as mortes e as violações multiplicaram-se. Soubemo-lo então, mas fomos impedidos de os denunciar, explicando-os como vingança dos enormes sofrimentos e mortes infligidos pela Alemanha nazi às populações soviéticas.
No tocante à Ucrânia, o povo senão irmão pelo menos parente próximo do povo russo, podemos perguntar-nos se as mortes e violações são devidas à desordem de algumas tropas, ao furor da derrota ou a uma vontade de aterrorizar.
Não sabemos ainda se a intenção primeira da agressão de Putin foi a de fazer cair toda a Ucrânia como um fruto maduro, decapitando-a desde os primeiros assaltos. Parece que a ambição atual sob o efeito da resistência ucraniana seja conquistar duradouramente as regiões maioritariamente russófonas do Donbass e o litoral do mar de Azov.
No momento em que escrevo (maio de 2022), a luta é intensa e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa mas o exército ucraniano, no decurso da guerra desde 2014 contra os separatistas russófilos estabeleceu fortificações em profundidade e escalonadas, que travam consideravelmente os avanços russos ainda pouco decisivos.
O que parece provável daqui em diante, salvo um golpe de Estado no Kremlin, um golpe militar fatal ou ainda um golpe de teatro diplomático (cessar fogo, compromisso de paz), é que a guerra deve durar e intensificar-se com o contributo cada vez mais abundante de armas ocidentais e retaliações cada vez mais amplas da Rússia.
O carácter internacional da guerra da Ucrânia vai crescendo. É certo que o campo ocidental guiado pelos Estados Unidos declara não fazer guerra à Rússia. Mas a intervenção militar de apoio à Ucrânia é uma guerra indireta a que se junta uma guerra económica acrescentada pelo crescimento das sanções.
Estamos em plena escalada, sustentada por novos bombardeamentos, por novas acusações mútuas, por novas vagas de criminalização recíproca. A guerra indireta em que se tornou a guerra da Ucrânia pode a todo o momento alargar-se com bombardeamentos não acidentais em território russo ou europeu.
Nesse ponto Putin retomou o seu anúncio de uma resposta «rápida e avassaladora» se um certo limiar não precisado de hostilidade ou ingerência puder ameaçar a Rússia, criando condições para o uso de uma arma decisiva, desconhecida de todos os outros países, de que a Rússia seja a única possuidora.
Esta ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados, em virtude de um argumento racional, bem conhecido depois da guerra fria. Se a Rússia nos quer menorizar, a resposta imediata menorizá-la-ia. Este argumento racional não considera um possível carácter acidental e a possível irracionalidade. O possível carácter acidental seria o lançamento involuntário de um engenho nuclear sobre o inimigo potencial, o que deflagraria uma resposta nuclear imediata. A possível irracionalidade é a de um ditador cheio de raiva ou perturbado pelo delírio.
De todo o modo, é atualmente provável (sabendo-se que o improvável pode acontecer) que de derrapagem em derrapagem a guerra se alargue nos territórios europeus e se amplifique pelos misseis intercontinentais nos territórios russo e americano sem sequer poupar a Europa. Uma terceira guerra mundial, dum tipo novo, com utilização de armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberguerra com destruição de sistemas de comunicação que asseguram a vida das sociedades, seria a concretização lógica da ampliação da atual guerra internacionalizada.
Juntemos uma verificação importante: a guerra introduz nos países em conflito controlos, vigilâncias, eliminação de todas as opiniões diferentes da linha oficial e o desenvolvimento de propaganda de justificação permanente dos seus atos e de criminalização ontológica do inimigo. A Rússia de Putin era já um Estado autoritário às ordens de um ditador. A guerra agravou o controlo e a repressão, atingindo aqueles que não só se opunham à agressão, mas também àqueles que duvidavam dos seus fundamentos. Na Ucrânia a caça aos espiões e terroristas suscitou um controlo das populações, os excessos cometidos por algumas das suas tropas ou grupos são ocultados e, denunciando os desvios reais, a propaganda desenvolve-se contra um inimigo totalmente criminalizado. Em França, embora não beligerante e ainda com o conforto último da paz, só temos acesso às considerações mais enganadoras da Rússia de Putin e às imagens de destruição que esta causa.
Estamos na escalada da desumanidade e da destruição da humanidade, na escalada do simplismo e da destruição da complexidade. Mas, sobretudo, a escalada para a guerra mundializada significa o arrastamento da humanidade para o abismo. Poderemos escapar a esta lógica infernal?
A única possibilidade seria uma paz de compromisso que instaurasse e garantisse uma neutralidade na Ucrânia. O estatuto das regiões russófonas do Donbass poderia ser tratado por referendo. A Crimeia, região tártara em parte russificada, mereceria também um regime especial. Em suma, as condições de um compromisso, tão difícil de estabelecer, são claras. Mas a radicalização e a ampliação da guerra levam a recuar nas possibilidades positivas de modo indefinido. A situação geopolítica da Ucrânia e a sua riqueza económica em trigo, aço, carvão, metais raros atraem os grandes predadores, que são as duas superpotências. A inclinação da Ucrânia para ocidente, depois de Maidan, suscitou a agressão russa, e a agressão russa suscitou não apenas o apoio a uma nação vítima de invasão, mas a vontade de a integrar no mundo ocidental, o que correspondia de resto ao voto maioritário dos ucranianos.
A Ucrânia é mártir não somente da Rússia, mas do agravamento das relações conflituais entre os Estados Unidos e a Rússia e do alargamento da OTAN, ele mesmo inseparável das inquietudes suscitadas pela guerra russa na Chechénia e da sua intervenção militar na Geórgia.
O objetivo da Ucrânia não é apenas libertar-se da invasão russa, mas também libertar-se do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos. Esta dupla libertação permitiria às nações da União Europeia libertarem-se igualmente desse conflito e procurarem ligar segurança e autonomia.
As sanções contra a Rússia, atingindo duramente não apenas o regime de Putin, mas também o povo russo, não se sabe até que ponto atingem igualmente os sancionadores, virando-se contra eles: não é apenas o seu abastecimento em energias e em alimentação que é ameaçado, é, sem dúvida, com a inflação aumentada e as restrições anunciadas, a sua economia e toda a sua vida social. Uma crise económica é sempre ela mesma geradora de regressões autoritárias e de instalação duradoura de sociedades submetidas.
A Rússia de Putin é um abominável regime autoritário. Mas não é semelhante à Alemanha de Hitler; o seu hegemonismo pan-eslavo não é, como foi o hitleriano, a vontade de colonizar a Europa e de escravizar povos racialmente inferiores. Toda a hitlerização de Putin é excessiva.
Estamos num mundo dominado pelos antagonismos entre superpotências e entregue aos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas e racistas. Por muito repugnantes que sejam as superpotências a títulos diversos o apaziguamento dos seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados. Devemos aspirar a um compromisso. A humanidade não seria salva, mas ganharia uma trégua e talvez uma esperança.
(Direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização do autor) Foi publicado em “Ouest-France” em 18/03/2022
Qualquer Estado pelo mero facto de ser maior territorialmente, mais forte, ter uma mentalidade imperial e reclamar zonas de influência, não tem o direito de agredir outro, violando o Direito Internacional.
Após a invasão, indicia-se poder desaparecer a função de estado tampão da Ucrânia para a Rússia. O país agredido quer ficar do lado europeu ocidental. O país agressor quer que fique do lado russo.
Quando há choques geopolíticos importantes, a Europa reage. Com o fim da segunda guerra mundial e o começo da guerra fria, reagiu com a integração europeia e a criação de dois blocos, um a oeste (ocidental) e outro a leste (comunista). Com o fim da guerra fria, reagiu com o alargamento a leste, através da União Europeia e da Nato. E reagiu, agora, com a aplicação de sanções ao invasor e a promessa de adesão da Ucrânia à União Europeia, bem como com ajuda humanitária e militar (esta última maioritariamente dependente dos Estados Unidos), juntamente com aliados de outros continentes: Canadá, Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Austrália e Nova Zelândia.
Em qualquer caso, a Rússia sempre foi um país com raízes europeias, em termos de cultura e mentalidade, apesar de ser um país euroasiático do ponto de vista geográfico.
Mas o desejo de ter nas relações internacionais um papel digno da sua dimensão territorial e poderio militar, em conjugação com a convicção de ter uma cultura específica suscetível de se universalizar, uma especificidade, excecionalidade e universalidade russa, faz com que tenha uma mentalidade imperial, que tem por justificada em termos históricos e culturalmente.
Vejamos, numa sucinta síntese, as correntes fundamentais do pensamento filosófico e político russo, incluindo as tidas como subjacentes à atual invasão da Ucrânia.
Desde início do século XIX o pensamento russo divide-se em dois movimentos marcantes e opostos: o ocidentalismo e os eslavofilismo, englobando este os pan-eslavistas e os nacionalistas russos.
Para os ocidentalistas a Rússia, desde Pedro, O Grande, tem a vocação de ser parte integrante da Europa e a obrigação de recuperar o atraso que a distancia do eurocentrismo ocidental, o que implica o abandono da arbitrariedade imperial, da limitação ou proibição das liberdades e direitos fundamentais, da identidade ortodoxa da igreja russa e do nacionalismo, tendo como representantes Piotr Chaadaev, Aleksandr Herzen e Vissarion Belinski.
Os eslavófilos consideram a cultura europeia-ocidental decadente, fonte de declínio espiritual e moral, promovendo como ideal um arquétipo nacional que reúne as virtudes de um povo russo essencialmente agrícola, bom, gentil e pacífico, baseado numa visão religiosa do mundo apoiada na fé ortodoxa e na verdade da “via russa”, encontrando em si forças para a modernização, tornando-se um exemplo de referência para o Ocidente. São eslavófilos Alexis Khomiakov, Konstantin Aksakov, Ivan Kireievski, Ivan Aksakov, Mikhail Katkov, Iuri Samarin e Fiodor Dostoiévski.
Esta visão orgânica, doméstica, idealista e romântica dos primeiros eslavófilos promovia o apoliticismo, em que o czar era tido mais como um pai, que uma autoridade formal. Daí que, entre outros, Khomiakov visse a missão do povo russo na vida suprema do espírito, e não na vida política, impossibilitando associar esta visão inicial a uma política estatal e imperial.
O dualismo entre ocidentalistas e eslavófilos estruturou para sempre o espaço intelectual russo, evoluindo, adaptando-se e reinventando-se, inclusive nas elites culturais e políticas da União Soviética, onde a nível intelectual teve, entre os dissidentes, um Sakharov ocidentalista, em oposição ao eslavófilo Soljenítsin.
À filosofia especulativa e romântica dos primeiros eslavófilos, sucedeu um sistema filosófico mais positivista de filósofos e pensadores russos de segunda geração, nacionalistas e anti-ocidentalistas, tidos como inspiradores e mentores decisivos da atual política russa que subjaz à invasão da Ucrânia, a que aludiremos no próximo texto.
A quem é que, perante as imagens de horror desta guerra na Ucrânia ditada por um megalómeno humilhado e insensato — mortes incontáveis, a tragédia de valas comuns, milhões de deslocados e refugiados, mulheres, crianças, idosos em total desamparo, na falta de tudo, quando nada é poupado à destruição: maternidades, escolas, hospitais —, não vieram já as lágrimas aos olhos?
O Papa Francisco não se cansa de clamar contra a guerra e apelar à paz: “Em nome de Deus peço-vos : parem este massacre!” “Um massacre sem sentido” e de “uma crueldade inumana e blasfema”. Por ocasião da celebração da Páscoa ortodoxa, no fim de semana passado, ele, a ONU, o Conselho Mundial das Igrejas apelaram a um cessar-fogo, também para abrir a possibilidade de corredores humanitários, mas não foram ouvidos. Quero sublinhar que, atendendo às celebrações pascais, o arcebispo de Munique, cardeal Reinhard Marx, foi particularmente duro na saudação pascal. Chamou “perversos” aos líderes religiosos que, como o Patriarca de Moscovo, Kirill, apoiam a guerra na Ucrânia, lamentou que ao longo da História “os cristãos tenham usado a violência sob o sinal da cruz”, algo que se repete hoje “na guerra actual, com cristãos baptizados a matar outros cristãos e receebendo o apoio de líderes das suas Igrejas”. A Igreja “deve erguer-se como um lugar de não violência, e a cruz como sinal da violência sofrida e superada.” Chamou “ditador” a Putin: “a Páscoa é a rebelião de Deus contra todas as forças da violência e da morte. A vitória da vida sobre a morte não pode ser detida, nem sequer com as armas de Putin e outros ditadores”.
Francisco confessa numa entrevista a “La Nación” que “está disposto a fazer tudo para deter a guerra — o Vaticano nunca descansa” — e acaba de publicar um livro precisamente com o título Contra a guerra. A coragem de construir a paz. Ficam aí algumas ideias fundamentais, a partir de Religión Digital.
Começa por lembrar como há um ano, na sua peregrinação ao martirizado Iraque, pôde constatar directamente o desastre causado pela guerra, a violência fratricida, o terrorismo, viu os escombros dos edifícios e as feridas dos corações. Também viu sementes de esperança. E “nunca teria imaginado que um ano depois rebentaria um conflito na Europa.”
Referi aqui muitas vezes que desde o início do seu pontificado Francisco falou da Terceira Guerra Mundial em curso, mas “aos pedaços, por partes”. O que é facto é que essas partes se foram tornando cada vez maiores e ligando-se entre si. Neste momento há muitas guerras espalhadas pelo mundo, que causam “imensa dor, vítimas inocentes, especialmente crianças”, milhões de pessoas obrigadas a deixar a sua terra, as suas casas, as suas cidades destruídas. Mas essas guerras esquecemo-las, pois andamos distraídos e elas passam-se longe. “Até que, de repente, a guerra rebentou perto de nós. A Ucrânia foi atacada e invadida. E, no conflito, os mais atingidos são, desgraçadamente, muitos civis inocentes, muitas mulheres, muitas crianças e muitos idosos”, obrigados a viver em bunkers para proteger-se das bombas ou com as famílias separadas, pois, enquanto as mães e as avós atravessam fronteiras à procura de refúgio, os maridos, pais e avós ficam para combater.
Perante as imagens terríveis de horror que nos chegam todos os dias, “não podemos fazer outra coisa que não seja gritar: ‘Parem!’ A guerra não é a solução, a guerra é uma loucura, a guerra é um monstro, a guerra é um cancro que se autoalimenta devorando tudo. Mais: a guerra é um sacrilégio, que causa estragos no mais precioso que há sobre a terra: a vida humana, a inocência dos mais pequenos, a beleza da criação.” “Sim, a guerra é um sacrilégio”.
Pela enésima vez estamos perante a barbárie, porque perdemos a memória: esquecemos a História, esquecemos o que nos disseram os nossos avós, os nossos pais. “Se tivéssemos memória, não gastaríamos dezenas, centenas de milhares de milhões para nos equiparmos com armamentos cada vez mais sofisticados, para aumentar o mercado e o tráfico de armas que acabam por matar crianças, mulheres, anciãos. 1981 mil milhões de dólares por ano, segundo os cálculos de um importante centro de investigação de Estocolmo.”
Se tivéssemos memória, “saberíamos que a guerra, antes de chegar à frente de combate, tem de ser parada nos corações. É necessário o diálogo, a negociação, a escuta, a habilidade e criatividade diplomática, uma política com visão de futuro capaz de construir um novo sistema de convivência que já não se baseie nas armas, no poder das armas, na dissuasão.” Toda a guerra “representa não só uma derrota da política, mas também uma vergonhosa rendição perante as forças do mal.”
Acrescenta: em 2019, em Hiroshima, “cidade símbolo da Segunda Guerra Mundial, cujos habitantes foram massacrados, com os de Nagasaki, pelas bombas nucleares, reafirmei que o uso da energia atómica com fins bélicos é, hoje mais do que nunca, um crime. O uso da energia atómica com fins bélicos é imoral, como o é a posse de armas atómicas. Quem podia imaginar que menos de três anos depois, o espectro da guerra nuclear pairaria sobre a Europa? Assim, passo a passo, avançamos para a catástrofe. Pouco a pouco, o mundo corre o risco de transformar-se no cenário de uma única Terceira Guerra Mundial. Avançamos para ela como se fosse inelutável. Pelo contrário, devemos, todos juntos, repetir, com força: ‘Não, não é inelutável’. A guerra não é inelutável!”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 de abril de 2022
Edgar Morin, o pensador da complexidade, que fez 100 anos em Julho de 2021, continua a ser um dos filósofos e sociólogos mais atentos e merecedores de atenção. Acabou de publicar um novo livro, reflectindo sobre o mundo actual - Réveillons-nous (Despertemos). Sobre ele deu uma entrevista a Jules de Kiss, publicada em Março deste ano em “Franceinfo”. As reflexões que se seguem acompanham a entrevista.
A primeira é um apelo à urgência de pensar séria e profundamente sobre o que está a contecer. Com Réveillons-nous, Edgar Morin não quer simplesmente fazer eco, doze anos depois, ao livro de Stéphane Hessel, Indignez-vous (Indignai-vos): “Hessel dizia: Indignai-vos. Ele dirigia-se a pessoas já despertas. Eu, eu tenho a impressão de que vivenciamos os acontecimentos um pouco como sonâmbulos. Aliás, o que eu vivi, na minha juventude, nos dez anos que precederam a Guerra. Eu peço que se tente ver e compreender o que se passa. Caso contrário, sofreremos os acontecimentos como, infelizmente, sofremos a última Guerra mundial.” (Pessoalmente, chamo permanentemente a atenção para a necessidade de pensar. Pensar vem do latim, pensare, que sgnifica pesar razões; daí vem também o penso sanitário, pois pensar cura.
Como vê esta nova guerra na Europa, com a invasão da Ucrânia? Certamente, há “uma surpresa, mas não total”. De facto, num artigo no Le Monde em 2014, por ocasião da crise ucraniana, concretamente na Crimeia, escreveu: “Atenção, é um foco de infecção com o risco de ter consequências desastrosas. Durante anos, fechou-se os olhos a esta infecção…” O problema agora é que há “um desequilíbrio”: “estamos numa espécie de contradição, porque, por um lado, pensamos que a resistência ucraniana é justa — é uma guerra patriótica —, mas ao mesmo tempo pensamos que, se entrarmos no conflito, corremos o risco do que Dominique de Villepin chamava um ‘tsunami mundial’: passo a passo, chegar à explosão.” Não nos podemos enredar na lógica da guerra e “interveir militarmente. Por isso, sinto esta contradição que vivemos todos e que é preciso assumir”. “Por um lado, queremos apoiar um país que resiste e, por outro, não podemos fazê-lo de modo integral, isto é, entrar na guerra. Estamos no meio: fornecemos armas e reabastecimento”.
Os seus três escritores russos preferidos são: Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov. “Eles ajudam-no a compreender a guerra hoje?” “Não, eles ajudam-me sobretudo porque transportam com eles um humanismo russo que, diferentemente do humanismo occidental, que é sobretudo abstracto, é concreto. Está cheio de compaixão pelo sofrimento e a miséria humana. E o que estes autores me ensinaram de modo profundo foi este humanismo da compaixão pelo sofrimento.” Aqui, pessoalemnte, pensei no meu íntimo: Nem Putin nem Kirill leram Dostoiévski, Tolstói, Tchekov, ou não entenderam… ou não querem entender.
E voltamos à necessidade urgente de pensar. Estamos mergulhados em crises gravíssimas, que podem colocar a Humanidade perante a possibilidade do seu fim. “Em todo o mundo há crise das democracias, uma crise do progresso. Acreditámos durante muito tempo que o progresso era certo, uma lei da História; ora, hoje percebemos que o futuro é cada vez mais incerto e inquietante. Há a crise do futuro, a angústia, as crises que aconteceram: a económica em 2008, depois a pandemia. As angústias que isso gera provocam um retraimento, um fechar-se sobre si mesmo.” E nota-se uma espécie de derrota dos intelectuais e políticos, que não conseguem fazer-se ouvir. Há uma questão que é “muito impotante hoje. Porque estamos num mundo de experts (peritos) e especialistas em que cada um vê apenas uma pequena parte dos problemas, isolados uns dos outros. Existe hoje de facto essa deficiência.”
De novo o jornalista: “Conversámos sobre a guerra na Ucrânia, tendo como pano de fundo a ameaça nuclear. Também dedica um dos quatro capítulos do seu livro ao aquecimento global. Mestas condições, é possível pensar o futruo com serenidade?” Resposta: “Não podemos ficar serenos perante perspectivas tão preocupantes. O que eu quereria mostrar, mesmo antes da guerra na Ucrânia, é que, desde Hiroshima, uma espada de Dâmacles paira sobre a cabeça de todos, e ela agravou-se com a crise ecológica, que mostra que realmente a bioesfera, o mundo vivo e as nossas sociedades estão ameaçados. Não é só o clima. O clima é um elemento dessa crise geral e a pandemia também contribuiu para o carácter global da crise. Penso que entrámos num novo período. Pela primeira vez na História, a Humanidade corre o risco de aniquilação, talvez não total — haverá alguns sobreviventes —, mas uma espécie de ‘reinício’ a partir do zero em condições sanitárias sem dúvida terríveis. É esse perigo, que eu já tinha diagnosticado como potencial, que, de repente, se torna actual com esta história de guerra russa.”
Claro que “só podemos pensar o futuro, se estivermos conscientes do passado e do que se passa no presente. Não se pode pensar o futuro isolado. E hoje o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a Humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, eu penso que é urgente pensar o futuro. Porquê? Até agora pensava-se que o futuro era uma espécie de linha recta que ia continuar. Ora, é preciso imaginar os diferentes cenários. É preciso estar vigilante. É preciso esperar o inesperado para saber navegar na incerteza. Há toda uma série de reformas, o modo de pensar, de se comportar, que são hoje necessários.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 23 de abril de 2022
1. Depois de uma invasão injustificável e uma uma guerra cruel, com milhões de deslocados e refugiados, crianças traumatizadas para sempre, prédios arrasados, o que fica para trás, após a retirada russa de perto de Kiev, nomeadamente em Butcha, é de uma atrocidade de pesadelo: corpos de civis com as mãos atadas e assassinados, valas com cadáveres ao abandono, mulheres violadas, num cenário de tragédia indescritível. Não há palavras. E alguém beneficia com estas atrocidades? Aqui, veio-me à mente um livrinho famoso. O seu autor: Carlo M. Cipolla (1922-2000), historiador da economia O seu título: As leis fundamentais da estupidez humana, de que fica aí uma resumo.
2. Para estabelecer as leis fundamentais da estupidez, é preciso, primeiro, definir quem é o estúpido. Quando temos um indivíduo que faz algo que nos causa uma perda, mas lhe traz um ganho a ele, estamos a lidar com um bandido. Quando alguém age de tal maneira que todos os interessados são beneficiados, temos uma pessoa inteligente. Ora, o nosso quotidiano está cheio de incidentes que nos fazem "perder dinheiro, e/ou tempo, e/ou energia, e/ou o nosso apetite, a nossa alegria e a nossa saúde", por causa de uma criatura ridícula que "nada tem a ganhar e que realmente nada ganha em causar-nos embaraços, dificuldades e mal". Ninguém percebe por que razão alguém procede assim. "Na verdade, não há explicação ou, melhor, há só uma explicação: o indivíduo em questão é estúpido."
Cá está a primeira lei: "Cada um subestima sempre inevitavelmente o número de indivíduos estúpidos que existem no mundo." Já a Bíblia constata: o seu número é infinito.
Os estúpidos estão em todos os grupos, pois "a probabilidade de tal indivíduo ser estúpido é independente de todas as outras características desse indivíduo": segunda lei.
A terceira lei corresponde à própria definição do estúpido: "É estúpido aquele que desencadeia uma perda para outro indivíduo ou para um grupo de outros indivíduos, embora não tire ele mesmo nenhum benefício e eventualmente até inflija perdas a si próprio." A maioria dos estúpidos persevera na sua vontade de causar males e perdas aos outros, sem tirar daí nenhum proveito. Mas há aqueles que não só não tiram ganho como, desse modo, se prejudicam a si próprios: são atingidos pela "super-estupidez".
É desastroso associar-se aos estúpidos. A quarta lei diz: "Os não estúpidos subestimam sempre o poder destruidor dos estúpidos. Em concreto, os não estúpidos esquecem incessantemente que em todos os tempos, em todos os lugares e em todas as circunstâncias tratar com e/ou associar-se com gente estúpida se revela inevitavelmente um erro custoso." A situação é perigosa e temível, porque quem é racional e razoável tem dificuldade em imaginar e compreender comportamentos irracionais como os do estúpido. Schiller escreveu: "Contra a estupidez mesmo os deuses lutam em vão."
Como consequência, temos a quinta lei: "O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso." O corolário desta lei é: "O indivíduo estúpido é mais perigoso do que o bandido." De facto, se a sociedade fosse constituída por bandidos, apenas estagnaria: a economia limitar-se-ia a enormes transferências de riquezas e de bem-estar a favor dos que assim agem, mas de tal modo que, se todos os membros da sociedade agissem dessa maneira, a sociedade no seu conjunto e os indivíduos encontrar-se-iam numa "situação perfeitamente estável, excluindo toda a mudança". Porém, quando entram em jogo os estúpidos, tudo muda: uma vez que causam perdas aos outros, sem ganhos pessoais, "a sociedade no seu conjunto empobrece".
A capacidade devastadora do estúpido está ligada, evidentemente, à posição de poder que ocupa. "Entre os burocratas, os generais, os políticos e os chefes de Estado, é fácil encontrar exemplos impressionantes de indivíduos fundamentalmente estúpidos, cuja capacidade de prejudicar é ou tornou-se muito mais temível devido à posição de poder que ocupam ou ocupavam. E também não se deve esquecer os altos dignitários da Igreja." É assim o mundo.
3. Ao ler Igreja, lembrei-me do Papa Francisco, esse cristão que é uma bênção para a Igreja e para o mundo. Ele, atravessado pela angústia dos migrantes e da guerra “sacrílega”, como a caracteriza, da Ucrânia, visitou no fim de semana passado a ilha de Malta, manifestando, mais uma vez, a sua predilecção pelas periferias — “é preciso ir à periferia para ver o mundo como é”, diz.
Já na ida de Roma para Malta, tinha manifestado a sua disponibilidade para ir a Kiev: “Uma visita a Kiev está em cima da mesa”. Já de regresso, na habitual conferência de imprensa, agradeceu as notícias sobre os horrores de Butcha, que desconhecia, e declarou: “A guerra é cruel, desumana. Estou disposto a fazer tudo o que possa ser feito. A Santa Sé está a fazer a sua parte diplomática: o Cardeal Parolin, Monsenhor Gallagher estão a fazer tudo. Por razões de prudência, não se pode publicar tudo, mas estamos a levar o nosso trabalho até ao limite. Entre as várias possibilidades, está a viagem. Digo com sinceridade: há sempre disponibilidade para partir. Está em cima da mesa. É uma das propostas, mas não sei se é possível e se será conveniente. Tudo está no ar. Há algum tempo que também pensei num encontro com o Patriarca Ortodoxo de Moscovo. Estamos a trabalhar no sentido de concretizá-lo.”
Desgraçadamente, digo eu, o Patriarca Cirilo está ao lado de Putin.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 9 de abril de 2022
“A Mais Breve História da Rússia, dos Eslavos a Putin” de José Milhazes (D. Quixote, 2022) é um importante documento no qual encontramos o essencial da história russa, o que nos permite compreender melhor os acontecimentos mais recentes, designadamente na Ucrânia.
UMA HISTÓRIA RICA E COMPLEXA Ao falarmos da Ucrânia estamos perante um caso especialmente difícil, longe do que quer a narrativa de Putin, porque a história envolve um conjunto vasto de razões. Kiev está na origem da civilização russa. Segundo a tradição, no século VI, aí se reuniram treze tribos eslavas orientais voluntariosas e determinadas, que fizeram prosperar a região do Dniepre. Se o primeiro Estado russo nasceu em Novgorod, quando o príncipe Riurik, um normando, não eslavo, foi convidado a assumir o poder, foi o seu irmão Oleg que transferiu para Kiev a capital da Rus. Iniciaram-se então as relações com Bizâncio e geraram-se as raízes dos povos russo, ucraniano e bielorusso. Kiev tornou-se o coração da Santa Rússia, herdeira da segunda Roma (Constantinopla). Contudo, no ocidente da Ucrânia, em Lviv, cidade fundada pelo Grão-duque da Ruténia, em 1256, encontramos, de certo modo, uma outra história. A cidade passou sucessivamente da soberania polaca, em 1340, para a austríaca em 1772, integrando o Império Austro-húngaro. Depois, a cidade foi polaca, em 1919, no fim da Grande Guerra, e tornou-se ucraniana em 1939. Em 1945, nas partilhas territoriais do fim da 2ª Guerra, a região foi integrada na República Soviética da Ucrânia, que viria a ser fundadora das Nações Unidas, ao lado da URSS e da Bielorrússia. A soberania de Direito da Ucrânia é assim inequívoca e antiga. A Ucrânia é um Estado soberano, com raízes históricas complexas e claras, a partir de influências que se completam – eslava e europeia central. Kiev é uma das cidades mais antigas da Europa e uma referência matricial da rica cultura eslava. Fundada no século V é um centro da economia e da cultura. E o cristianismo ortodoxo, de bases profundas, teve Kiev como matriz. A própria língua ucraniana tem raízes próprias, próximas da língua russa, do servo-croata e do polaco. A palavra “ukraina” significa zona fronteiriça, onde o domínio cossaco se distinguia dos principados eslavos do norte e oeste e das hordas turcas do sul. Em 1240, a cidade foi ocupada e destruída pelo Império tártaro-mongol, na conquista iniciada por Gengis-Khan. Kiev perdeu influência, mas manteve autonomia, no âmbito do Canato da Horda do Ouro. Em 1321, a cidade seria conquistada pelo Grão-Duque da Lituânia, passando ao domínio polaco-lituano até ao final do século XVII, quando Kiev passou para a esfera do Império russo, tornando-se o mais importante centro cristão ortodoxo, antes da transição para Moscovo. Nos séculos XVIII e XIX a vida da cidade foi dominada pelas autoridades militares e eclesiásticas, em 1834 foi criada a Universidade de S. Vladimir e em 1846 constituiu-se a proibida Irmandade de S. Cirilo e S. Metódio, defensora de uma Federação eslava de povos livres, animada por Nikolay Kostomarov. Kiev foi a terceira cidade do império, importante centro de comércio, beneficiando do rio Dniepre. As lágrimas e a vontade de um povo resistente reforçam a história, a herança e a memória de um dos fundamentos da civilização europeia, que a cegueira bárbara de um ditador será incapaz de destruir.
A CULTURA RUSSA E A EUROPA A cultura russa faz parte integrante da cultura europeia. Confundir as decisões de um ditador com o espírito de um povo é não compreender a essência da humanidade e da cultura. Cada nova guerra põe novas questões, mas não pode fazer-nos esquecer a memória histórica e o seu significado. A literatura russa é, aliás, bem ilustrativa da importância dos testemunhos e das reflexões sobre a guerra. Tolstoi e Pushkin muito nos ensinaram nesse domínio, como Dostoievski e Tchekov em matéria de psicologia humana. Os escritores são as melhores testemunhas das suas épocas. E muitos grandes artistas russos têm sido, ao longo dos tempos, dos melhores intérpretes da vida humana. Lembremo-nos de Berdiaev e da compreensão profunda da existência humana. E não esqueçamos que a identidade de Kiev e da atual Ucrânia estão no coração histórico da civilização russa, com um rico património, que está a ser destruído. E eis que não poderemos cultivar animosidade que atinja a sublime cultura eslava na sua diversidade. A grande Rússia é um complexo caleidoscópio, uma simbiose, ligada a uma história complexa, entre a tradição da Rus e a presença dos mongóis da Horda do Ouro, uma mistura de eslavos, fino-úgricos, alanos e turcos.
QUE FUTURO DA EUROPA? O futuro da Europa dependerá de um modus vivendi abrangendo a galáxia eslava, que em lugar da lógica imperial, deverá basear-se no respeito da Carta das Nações Unidas, na democracia, no Direito Internacional e nos direitos humanos. A Ucrânia constitui um caso especial de convergência entre as raízes culturais da Rússia, como herdeira da segunda Roma (Bizâncio), e as tradições dos povos ocidentais, que integraram a Polónia e o Imperio Austo-húngaro. A comunidade internacional tem de contrariar energicamente a lógica da guerra, do ressentimento e da mútua humilhação. A barbárie não pode continuar a impor-se à civilização. Andrei Kourkov, escritor de língua russa, defende a causa ucraniana, rebelando-se contra a guerra total e a destruição de teatros, museus, hospitais e escolas, património comum da humanidade. Não é só a Ucrânia a estar em causa. Eis por que faz sentido, o apoio aos cidadãos russos ilustrados e democráticos e o acompanhamento das consequências das sanções económicas, de modo a criar condições concretas para uma saída do conflito que limite as consequências desumanas. “A liberdade do homem distingue-se de qualquer outra força, porque é reconhecida pela nossa consciência, mas aos olhos da razão em nada se distingue das outras”. Foi Tolstoi quem o disse, no fecho do seu romance maior.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
A guerra da Ucrânia está a pôr em grave perigo um património cultural de valor incalculável, que aqui referimos. É a humanidade que está em causa, uma vez que a memória histórica é a memória das pessoas e das culturas.
CULTURA EM PERIGO! Quando o património cultural está em perigo é a própria humanidade a estar em causa. E temos insistido em que não falamos de pedras mortas, mas de pessoas, como pedras vivas, na expressão do “nosso” António Sérgio, mas também de Rabelais. Longe do entendimento tradicional de um património visto como referência do passado, falamos de uma realidade viva, que abrange transversalmente todos os domínios dos direitos humanos. Quando a Diretora-Geral da UNESCO Audrey Azoulay lançou um dramático alerta a propósito dos bombardeamentos indiscriminados a que temos assistido nas últimas semanas na Ucrânia, afirmou expressamente: “Devemos salvaguardar este património cultural, como testemunho do passado mas também como vetor de paz para o futuro, que a comunidade internacional tem o dever de proteger e preservar para as gerações futuras. É também para proteger o futuro que as instituições de ensino devem ser consideradas santuários”.
De facto, o apelo envolve os monumentos históricos, mas também as escolas e as instituições da ciência e da cultura. Lembramo-nos do hediondo assassinato de Khaled Al Assad, estudioso e guardião de Palmira, que demonstra a ligação íntima que se estabelece naturalmente entre a defesa dos direitos das pessoas concretas e a salvaguarda da sua memória cultural e histórica. Como se sabe, quando se começam por queimar livros ou a destruir a memória humana, acaba-se por matar as próprias pessoas. No fundo, a criação cultural, a sua preservação e a sua comunicação têm a ver com a essência do ser humano. O avanço na UNESCO e no Conselho da Europa relativamente aos conceitos de património cultural e de direitos culturais tem contribuído, de facto, para ligar os direitos da Declaração Universal de 1948 à vida e à dignidade humana no sentido mais essencial. O caso da Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005) é bem demonstrativo disso mesmo. Por isso, o património cultural envolve direitos e deveres, não retrospetivos mas prospetivos, abrangendo o presente e o futuro, de modo a acrescentarmos valor ao que recebemos das gerações que nos antecederam. E o que está hoje em causa no tocante à necessidade de respeitar a Carta das Nações Unidas é a defesa de uma verdadeira cultura de paz e de respeito mútuo. João XXIII disse-o claramente na Encíclica “Pacem in Terris”.
DIREITO PATRIMONIAL COMO DIREITO HUMANO Quando um tirano viola claramente o direito internacional comummente aceite, e até se propõe erradicar da face da terra um Estado soberano e um povo, de um modo unilateral, recusando o Direito e a própria História, compreende-se que a invocação de direitos culturais assuma uma importância insofismável. Falamos dos fundamentos dos valores éticos, morais e jurídicos. Julgar que se pode tornar a Carta das Nações Unidas letra morta, esquecendo garantias essenciais como o primado da lei, o multilateralismo, a estabilidade de fronteiras, a soberania legitima, ou o direito de fazer a paz e a guerra são gravíssimos atentados de natureza humanitária, que tocam a essência da memória cultural dos povos e da partilha de um património comum da humanidade. Desde 1945 que a dúvida se não punha, e qualquer incerteza neste domínio a todos prejudicará, uma vez que o que os direitos protegem, os direitos garantem; o que os deveres salvaguardam, os deveres consolidam. O primado do direito a todos interessa, porque assenta no respeito mútuo.
A Ucrânia conta atualmente com diversos bens culturais e um natural, declarados como Património da Humanidade pela UNESCO. Todos estão, agora, diretamente ameaçados: a Catedral de Santa Sofia de Kiev, conjunto de edificações monásticas e o Mosteiro de Petchersk,, símbolo da Nova Constantinopla, de um valor espiritual e unificador incalculável (inscrito em 1990); o Conjunto do Centro Histórico de Lviv, onde que se encontra praticamente intacta a topografia urbana medieval, a que se acrescentam as construções barrocas e posteriores (inscrito em 1998 e 2008); Dezasseis Tserkvas de madeira da região dos Cárpatos, nos territórios da Polónia e Ucrânia, trata-se de templos da igreja ortodoxa tradicional (inscrito em 2013); o Arco Geodésico do astrónomo Friedrich Georg Wilhelm Struve (realizado entre 1816 e 1855), abrangendo dez países, desde o Báltico ao Mar Negro (inscrito em 2005); a Residência dos Metropolitas da Bucóvina e da Dalmácia em Tchernivtsi, junto da Roménia e da Moldávia, do arquiteto checo Josef Hlavka, reflexo da política de tolerância religiosa mantida pelo Império Austro-húngaro (inscrito em 2011); a Cidade Antiga de Quersoneso na Crimeia, que apresenta os restos da cidade fundada pelos gregos dóricos no século V a.C. no norte do Mar Negro, importante centro vinícola envolvendo relações entre os impérios grego, romano, bizantino com referências atá ao século XV (inscrito em 2013); e, no domínio natural, as Florestas Primárias de faias dos Cárpatos, abrangendo 12 países (inscrito em 2007). Além destes casos, refira-se o Centro Histórico de Chernigov, perto de Kiev, agora sob ameaça direta, com referência à célebre Catedral da Transfiguração do século XI. Há já a lamentar a destruição confirmada e irreversível do museu de Ivankiv, localidade a noroeste de Kiev. A instituição apresentava 25 obras da Maria Prymachenko (1908-1997), artista fortemente influenciada pelo folclore ucraniano, elogiada por Pablo Picasso, pelo seu caráter percursor. Segundo a imprensa local poucas obras terão sido salvas por um cidadão local, que enfrentou sozinho as chamas. Note-se que a grave situação no terreno levou alguns especialistas, a duvidarem do efeito positivo do pedido de proteção, com receio de atrair atenções…
ESCUDOS AZUIS PARA PROTEÇÃO Entretanto, representantes da UNESCO e das autoridades ucranianas decidiram colocar Escudos Azuis nos bens patrimoniais ameaçados na zona do conflito. Além dos casos referidos, foi também assinalado o centro da cidade e o porto de Odessa. Esta prevenção insere-se na aplicação da Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada na cidade de Haia em 14 de maio de 1954. O Comité Internacional do Escudo Azul (Blue Shield ou Bouclier Bleu) foi fundado em 1996 pelo ICOM (Conselho Internacional dos Museus), ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios), Conselho Internacional dos Arquivos e Federação Internacional dos Bibliotecários e Instituições com o fim de assegurar a proteção do património cultural ameaçado por guerras e catástrofes naturais. O acompanhamento deste tema torna-se neste momento melindroso em virtude de o Comité do Património Mundial ser presidido por Alexander Kuznetsov, de nacionalidade russa, estando prevista em junho uma reunião na cidade de Kazan do referido Comité, o que é fortemente contestado. O fundamental é deixar claro que é motivo muito sério de preocupação por parte das organizações multilaterais o facto de haver na comunidade internacional dificuldade evidente em fazer prevalecer a perspetiva dos direitos humanos, dos valores democráticos e a ligação efetiva destes ao desenvolvimento humano e à cultura.
Ele foi Auschwitz. Ele foi o Goulag. Ele foi e é a Ucrânia... Ele foi/é o abuso ignominioso de crianças pelo clero... A tantos homens e mulheres a quem foi prometida a liberdade, e eles desafiaram o medo! Depois, precipitaram-nos no inferno. Deportaram-nos, fuzilaram-nos, massacraram-nos. Eles gritaram, clamaram, já não havia lágrimas... O Calvário do mundo...
Onde está o Homem? Quanto vale um homem, uma mulher, uma criança? Perante tanta iniquidade e horror, assalta-nos a vergonha.
As palavras dignidade, indignidade, direito, justiça, injustiça, vergonha, bondade, civilização, honra, ternura, compaixão... ainda fazem parte das línguas dos humanos ou foram varridas dos dicionários?
“Senhora, tem piedade... Senhor, tem piedade de nós! Senhor, tem piedade do povo... Senhor, tem piedade de mim!”
Mas, aparentemente, também Deus se mantém mudo.
Será que Deus não tem vergonha? A própria Bíblia a um dado momento, perante o crescendo da maldade humana, diz que Deus se arrependeu de ter criado o Homem. Arrepender-se também quer dizer ter vergonha e pena.
Perante o sofrimento dos inocentes, Ivan Karamázov apressa-se a devolver o seu bilhete de entrada na harmonia futura. Em A Peste, Albert Camus coloca o médico Rieux a dizer ao jesuíta Paneloux: "Não, padre. Eu estou disposto a recusar até à morte amar uma criação onde as crianças são torturadas".
Face à crueldade hedionda e à mesquinhez bárbara e reles dos humanos e à massa incrível da história do sofrimento, sobretudo dos inocentes, para muitos está decidido: Não há Deus! O padre Eloi Leclerc, franciscano, que, com apenas 20 anos, viveu a terrível experiência dos campos de concentração nazis, a descida aos infernos, disse: “Quem não passou por essa experiência não pode sequer imaginar o que isso é. É o momento do silêncio absoluto de Deus, da ausência. Podia elevar os olhos ao Céu, mas o Céu não respondia. Os gritos não chegavam lá. Então compreendi que se pode perfeitamente ser ateu. Perante tanta desgraça, solidão e sofrimento, pode-se ainda acreditar no Deus do Amor?”
Mas, aqui, recomeçam as perguntas: Donde vem a nossa indignação? Qual é a fonte da nossa revolta, da nossa rebelião? E porque é que não nos resignamos?
Afinal, criminoso, horrendo, infame, brutal, insuportável, arrepiante, intolerável..., ainda são valorações morais. Indignar-se com Deus, rebelar-se, protestar contra Ele, ainda é por exigência moral. Estamos atenazados: somos seres morais, exigindo o Bem infinito, e comportamo-nos ignominiosamente.
Como escreveu o teólogo Johann Baptist Metz, "a pergunta a Deus é a piedade da teologia", e, assim, também sabemos que um Deus indiferente não seria Deus, mas um monstro. Na cruz de Cristo, Deus revelou-se como aquele que sofre connosco e por nós. Um Deus indiferente à dor só poderia conduzir os humanos à indiferença.
Mas que pensar do sacrifício na sua relação com Deus?
Perguntam-me por vezes o que é que eu penso sobre o gesto daquela gente que, em Fátima, se arrasta de joelhos...
A resposta é simples: evidentemente, tenho compreensão sincera e compassiva (no sentido etimológico da palavra compaixão) para com aqueles e aquelas que, no abismo da sua dor ou tragédia, se convenceram de que, arrastando-se diante da divindade, a comoveriam e forçariam a ajudá-los...
Mas também é evidente para qualquer ser pensante que um Deus que, para ser favorável ao ser humano, precisasse de toda aquela humilhação e tortura era um Deus sádico, que, por isso mesmo, não poderia merecer consideração nem respeito. Perante um Deus sádico, só há uma atitude humanamente digna: ser ateu.
No entanto, foi pregado tonitruantemente ao longo de demasiado tempo que Deus precisou do sangue do próprio Filho para aplacar a sua ira...
Pergunta-se: como é que foi possível pregar e acreditar num Deus vingativo e sádico, um Deus pior que qualquer pai humano sadio, decente?...
É evidente que Jesus não morreu na cruz para aplacar a ira de Deus. Jesus foi vítima daqueles que não aceitaram a sua mensagem, o seu Evangelho, notícia boa e felicitante, que é: Deus é bom. Há quem não queira o Deus bom.
A cruz de Cristo é a expressão máxima do amor incondicional de Deus para com todos os homens e mulheres. Jesus, o excluído, é aquele que não exclui ninguém. Pelo contrário, inclui a todos no amor sem condições.
É isso: o sacrifício pelo sacrifício é detestável. Mas, por outro lado, nada vale realmente sem sacrifício. Por causa do império de uma banalidade mole hoje triunfante, é recusado a muitos o sabor daquela alegria que resulta da superação de obstáculos. De facto, nada de grande, belo e valioso e digno se faz e constrói no mundo sem sacrifício. Os valores merecem que nos batamos por eles, e é esse sacrifício enquanto luta por aquilo que vale que nos engrandece como seres humanos.
Quem diz que ama e não está disposto a sacrificar-se por aquele que ama anda enganado e mente a si próprio. Quem ama verdadeiramente está disposto a sacrificar-se por aquele, por aquela, por aqueles que realmente ama. É esse amor que salva o mundo.
Àqueles que o criticavam por participar em banquetes oferecidos por pecadores públicos Jesus respondeu: "Ide aprender o que significa: “O que eu quero é misericórdia e não sacrifício'". E também disse: "Quem quiser seguir-me tome a sua cruz todos os dias". Referia-se àquela cruz que dá testemunho da verdade e que acompanha o combate pela liberdade, pela dignidade, pela justiça, pelo amor. Pela solidariedade com a Ucrânia...
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 19 de março de 2022