Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
"A Misteriosa Chama da Rainha Loana" de Umberto Eco (Difel, 2005) é um romance inesperado que aborda o tema da memória literária e juvenil. Mais do que da nostalgia, do que se trata é de uma séria interrogação sobre a cultura, que é, na definição clássica, o que fica quando tudo se esquece…
UMA QUESTÃO DE MEMÓRIA
Apesar de se tratar de um romance profusamente ilustrado, o autor fez questão de lembrar que se trata de uma obra envolta em nevoeiro, de que Yambo se vê rodeado depois de ter um AVC, que o faz perder a memória. Mas não se trata da perda de toda a memória. Yambo lembra-se da chamada memória semântica – de tudo que aprendeu, desde os pormenores da História romana aos poemas que decorou ao longo da vida. O problema está no esquecimento da memória autobiográfica, desde o seu nome até ao não reconhecimento da mulher e das filhas. O protagonista de nada se lembra sobre o seu passado pessoal e sobre a sua infância. Urgia, pois, realizar uma lenta recuperação de si próprio, por isso a mulher convenceu-o a regressar à casa de campo, onde estavam os livros de infância, as histórias de quadradinhos que leu em criança, os cadernos escolares, os livros de leitura, os discos, o que tinha a ver com a existência comum. Importa lembrar que estamos em Itália, com um passado que muitos não desejam lembrar, contudo perante uma situação de emergência havia que recordar os claros e os escuros que podiam fazer luz sobre o que importaria lembrar. Ouvem-se as canções fascistas e as recordações populares. A sombra de Mussolini mistura-se com Emílio Salgari e Flash Gordon, e encontram-se as memórias do pequeno balilla, os arremedos patrióticos e uma ideia imperial anacrónica. «Era difícil dizer se estava a descobrir alguma coisa ou se estava simplesmente a ativar a minha memória de papel, pois fala-se muito ainda hoje de Salgari, e críticos sofisticados dedicam-lhe artigos cheios de nostalgia”. Yañez de Gomera (o português, com nome estranho, inventado por Salgari, designado na tradução portuguesa, com maior verosimilhança, como Gastão de Sequeira) aventura-se com Sandokan nas terras de Mompracem, que nos faz lembrar as andanças de Fernão de Magalhães… Sucedem-se as referências míticas, desde Mandrake, o Mágico, com o seu servo e amigo negro, Lotar, que derrotava os maus com golpes de magia, até à Rainha Loana, de um reino misterioso, onde se guarda uma misteriosíssima chama que proporciona vida longa ou até mesmo a imortalidade, no reino de uma tribo selvagem com dois mil anos.
O MUNDO VAI-SE RECONSTRUINDO
De súbito, o sonho da banda desenhada desvanece-se e encontramos a leitura mais adulta e apimentada do Conde de Monte Cristo e dos Três Mosqueteiros. Metaforicamente, vem à baila a recordação do fim da grande guerra, a queda de Mussolini e o fim de muitos sonhos impossíveis. E ouvimos Yambo: “Agora estou aqui, no escritório do avô, a tocar no meu tesouro com as mãos a tremer. Depois de tantas rajadas de bruma, entrei no Hotel das Três Rosas. Não é a foto de Lila, mas um convite para voltar para Milão, para o presente. Se aqui está o retrato de Shakespeare, lá há de estar o retrato de Lila. O Bardo há de guiar-me até à minha Dark Lady. Com este in-folio estou a viver um romance bastante mais empolgante do que todos os mistérios do castelo vividos por entre as paredes de Solara, durante quase três meses de tensão alta. A emoção está a confundir-me as ideias, sobem-me ao rosto da de calor. É seguramente o grande golpe da minha vida”. Depois, vem um outro momento, precipitam-se as coisas e muda o contexto. “Lá fora, Paola, as minhas filhas, todos os que gostam de mim (e Gratarolo a dar socos na cabeça por me ter dado alta, quando porventura devia manter-me sob vigilância apertada durante pelo menos seis meses) consideram-me em coma profundo. As suas máquinas dizem que o meu cérebro não dá sinais de vida, e desesperam-se, perguntando-se se devem desligar a máquina ou esperar, talvez anos”.
E fica um epílogo. A Rainha Loana suscita muitas perguntas sobre a memória e a leitura, sobre a iniciação e a formação de um jovem. E aqui está a metáfora da memória. O livro em papel sobreviverá ao digital? A aprendizagem de hoje comprometerá os métodos tradicionais da leitura e da escrita? Num mundo complexo, teremos de saber lidar com a diversidade, mas nunca poderemos perder a relação de diálogo entre pessoas e saberes. Se falamos de cultura e de artes, temos de compreender que o saber e o saber fazer obrigam sempre à comunicação e à memória. O caminho longo que fizemos desde os aedos, que transmitiram de memória a “Ilíada” ou a “Odisseia”, até aos tipos móveis de Gutenberg ou às novas tecnologias de informação e comunicação obriga a compreender que um audiolivro, um e-book, um livro em papel, ajudam-se mutuamente, porque o que está em causa é a ligação entre ler e pensar, entre saber e dialogar, entre representar e refletir. O modo de ler altera-se ao longo do tempo. Daí a importância da procura de quem somos através da memória. Há uma evolução que corresponde à necessidade de compreender melhor o mundo e os outros. A liberdade e a autonomia individual alcançam-se e evoluem mercê do acesso ao conhecimento. Daí a importância da educação, com um efeito multiplicador extraordinário, desde a cultura à saúde, da defesa do bem comum à coesão social. Umberto Eco leva-nos às memórias da formação e ao modo como marcam a identidade. Com um pano de fundo dramático, do que se trata é de recorrer ao imaginário juvenil para procurar descobrir como a cultura nos vai construindo, também com a ajuda da Rainha Loana.
Umberto Eco – A Biblioteca do Mundo de Davide Ferrario é mais do que um documentário. É um elogio da Biblioteca e da leitura como lugares de memória.
COMO TUDO COMEÇOU… Tudo começou na Bienal de Veneza em 2015 quando nasceu a ideia de fazer uma vídeo-instalação sobre a memória. O melhor seria organizar uma conversa com Umberto Eco, enquanto “estrela” do mundo da cultura, como especialista das linguagens e das línguas. Depois de uma primeira troca de ideias, Eco aceitou e convidou o realizador a visitar a sua biblioteca. A resposta foi positiva, mas Ferrario compreendeu que teria de fazer algo diferente do que tinha inicialmente pensado. Haveria que ir a um sétimo céu, a um labirinto com corredores mágicos, paredes integralmente forradas de livros de todas as idades e épocas, com os mais variados temas, e diversas escadas móveis capazes de permitir o folhear livros reveladores do carácter inesgotável da procura do conhecimento. Património de cultura e memória desperta ali estavam ao alcance de um qualquer visitante numa espécie de montanha-russa em que se juntavam incunábulos austeros, contos infantis, cancioneiros eruditos e populares, romanceiros e enciclopédias… E tratando-se de um labirinto, haveria que ter cuidado em munir-nos com um indispensável fio de Ariadne que permitisse não nos perdermos nos milhares de caminhos, travessas, becos, encruzilhadas e armadilhas encontráveis num espaço misteriosamente indecifrável.
UM SANTUÁRIO EM MILÃO A casa de Umberto Eco fica no centro de Milão, na proximidade do castelo dos Sforza, tem um longo corredor com trinta passos de estantes totalmente cheias, com encadernações diversas, de pergaminho, de pele, de couro macio, de pano, dos mais diversos tipos de papel, de diferentes cores. Percebia-se uma curiosidade infinita por parte do anfitrião, com gosto pelo insólito. E compreende-se a lenda verdadeira de que Umberto Eco se refugiava na sala ampla, com aparência de arquivo, com uma mesa-redonda cheia de livros em montes, para tocar flauta, rodeado daquele universo de memórias vivas. Qual o grande enigma da cultura senão essa possibilidade transcendente de encontrar os maiores espíritos de todos os tempos e de dialogar com eles ao folhear o que escreveram e pensaram? E a própria flauta é a metáfora da vida, como diria o alquimista Robert Fludd – “o ar soprado por Deus para dar vida ao mundo” passa pelo tubo escuro que o escritor prefere a qualquer instrumento eletrónico… E vem a definição daquele lugar (ou livraria, como diria meu avô): “Bibliotheca, semiológica, curiosa, lunática, mágica e pneumática”. Lembramo-nos dos ocultistas de O Pêndulo de Foucault, que acreditavam em tudo com fanatismo. Baudolino era um falsário genial. A ciência falsa e oculta, as linguagens imaginárias – tudo isso entusiasmava Eco. Mais importantes do que a obra fundamental de Galileo Galilei eram as respetivas refutações falsas. É a mentira que revela a verdade. E qualquer obra revela-se como necessariamente aberta. Poética ou artística a obra abre-se a uma série infinita de leituras possíveis. Autor de uma tese de doutoramento em filosofia sobre S. Tomás de Aquino e a teoria da beleza na Idade Média, Umberto mostrou-se avesso à ideia de escrever um romance. Mas a oportunidade veio inesperadamente. Nascia O Nome da Rosa, e o convite para um pequeno conto, tornou-se oportunidade para uma trama romanesca iniciado com uma lista de monges medievais e com a perigosa pergunta discretamente a um especialista amigo: como se poderia envenenar uma pessoa que estivesse a ler um livro… E a continuação da história é sabida. Conheci Umberto Eco em Lisboa, quando aqui veio a convite de Mário Soares, por sugestão de Fernando Gil. Com António Tabucchi fomos buscá-lo ao Aeroporto, contando com o seu fino humor e uma aversão sistemática aos idiotas. A conferência que realizou na Fundação Calouste Gulbenkian, apresentada por Eduardo Prado Coelho, em 11 de fevereiro de 1988, foi magnífica – “O Irracional, o Misterioso e o Enigmático”, e começava pela afirmação: «Há uma frase de Chesterton de que não consigo recordar o contexto original e que cito de memória: ‘Desde que os homens deixaram de acreditar em Deus, isso não significa que já não acreditem em nada, acreditam em tudo».
RECORDAR FUNES Nesse tempo, não havia ainda nem telemóveis nem internet, mas profeticamente Umberto Eco já temia a tentação de abarcar o conhecimento universal através de uma espécie de super-memória, como no caso do conto de Jorge Luís Borges “Funes ou a Memória”, de 1944 (in “Artifícios”, Ficções), lembrado no filme, como referência preventiva, perante a evocação dos perigos das tecnologias de informação… Ireneo Funes era um rapaz uruguaio com qualidades inatas que o singularizavam por algumas estranhezas, como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre as horas como um relógio. Um dia foi derrubado por um cavalo bravo e ficou paralisado sem esperança. Não saía da enxerga, de olhos postos na figueira do fundo ou numa teia de aranha. Ao cair perdera o conhecimento, mas quando o recuperou “o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido que se tornara, e também as memórias mais antigas e mais triviais”. Tornou-se um extraordinário cadinho de memórias, afirmando: “Mais recordações tenho eu sozinho do que devem ter tido todos os homens desde que o mundo é mundo”. Ireneo não só se lembrava de “cada folha de cada árvore de cada monte, como também de cada uma das vezes que a tinha notado ou imaginado”. Mas resolveu reduzir cada uma das suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças para poder abarcar o que poderia valer a pena. Uma vez, pediu emprestados alguns volumes com os mais difíceis problemas do latim, como a Naturalis Historia de Plínio, que está na origem das enciclopédias modernas. E desenvencilhou-se perante as mais difíceis sentenças, designadamente no inusitado primeiro parágrafo do capítulo 24 do livro sétimo, exatamente sobre a memória, como “ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum”, ou seja, “de modo que nada seria reproduzido sem ouvir as mesmas palavras”. Funes tinha “aprendido sem esforço inglês, francês, português e latim. Suspeito, no entanto, de que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos”. O exemplo do “memorioso” era, afinal, uma verdadeira metáfora atual sobre o pequeno clique digital que nos dá acesso a uma bibliografia de dez mil volumes, quando ninguém, de facto, poderá lê-los. Por isso, Ireneo Funes tinha a estranha angústia sobre a multiplicação de gestos inúteis. Antigamente líamos três ou quatro livros e ainda poderíamos aprender qualquer coisa. Agora somos obrigados a ter de eliminar o máximo de informação, protegendo-nos o mais possível dos ataques de quem nos quer importunar a todo o custo, num mundo sobrecarregado de mensagens. Naquele mágico labirinto, o verdadeiro enigma continua a ser o que permitiu a Teseu libertar-se de Minotauro…
É sempre dificílimo escrever sobre os livros de excelência.
Só devagar, muito devagar nos chega a coragem para que não fique por dar o reconhecimento às coisas da beleza, da memória, do entendimento e do horizonte.
E que as palavras consigam deixar um perfume, uma exaltação, um convite inequívoco a infinitos pormenores.
EUGENIO CARMI
Pintor, autodefine-se «fabricante de imagens».
Com Umberto Eco, tornou-se ilustrador.
UMBERTO ECO
Filósofo, medievalista, semiólogo e escritor, autodefine-se «fabricante de palavras». Com Eugenio Carmi tornou-se fabulista.
Neste livro, a linguagem apoiada por belíssimas ilustrações, propõe o convite para refletirmos sobre a tolerância na resolução dos conflitos, no legado às gerações futuras, nas consequências do ódio e do consumo e da incapacidade dos afetos se gerarem e multiplicarem com devoção e força.
Para tanto as entrelinhas da pintura e das palavras.
A ironia e o sarcasmo estão presentes como arestas indispensáveis ao que se invoca.
E era uma vez um general a quem os átomos faziam frente impedindo-lhe a decisão das guerras, a desarmonia das mães, das arvores e das casinhas brancas, conhecedores que eram da loucura dos buracos negros.
O general carregava na farda inúmeros galões o que muito acabou por ajudar ao seu novo emprego como porteiro de hotel. Por agora.
E era uma vez a Terra e Marte.
A Terra, demasiado apertada queria conquistar Marte e enviou cosmonautas.
Eram eles um americano, um russo e um chinês que afinal se entenderam quando o americano disse: - Mommy…
O russo disse: - Mama.
O chinês disse: - -Ma-Ma.
Viviam, enfim, os mesmos sentimentos!
Contudo quando conheceram o marciano dos seis braços não foram capazes de o amar, não fosse a intervenção de um passarinho que de muitos modos e só um, afinal, fez a todos concluir que a diferença não é inimiga.
E era uma vez um imperador que, desesperado, enviou um explorador para o espaço a fim descobrir novos territórios.
Este, tão logo viu um, muito belo e de gente prazenteira, dirigiu-se-lhes dizendo que vinha para os descobrir.
Os gnomos, habitantes deste planeta lindo, surpreenderam-se e responderam que estavam convencidos de terem sido eles a descobrir o explorador.
Na verdade, o explorador não gostou do que ouviu já que lhe tinham ensinado que tão logo se levasse civilização, os indígenas adotavam-na sem qualquer protesto.
Estava-se à vontade.
De regresso à terra do imperador, as forças falaram em voz pasma …
Julgamos que estamos confusos?, ou, quem vence, vence, bem mais na mente dos homens do que nos campos de batalha e a sorte do mundo e a dos povos é a que for a do destino das mentalidades.
Permiti que o digamos assim.
E, em rigor, o estar como se está por entre os terráqueos é como o aceitar de uma nova religião que se propaga e desfigura como a lepra.
Ouviu-se.
E mais:
Condenaram-se os homens aos seus desígnios de escravos, condenação esta tão compatível quanto assertiva pois a maioria aceitou-a.
Ergueram-se pedras, muros contra muitos saberes antigos como se fossem mercadoria impróprias, não vá o saber, neles, ser um saber do ar fresco da vida.
E eis que nem todas as mensagens oxidam. Eis que o inabitual não encandeia.
Eugenio Carmi e Umberto Eco, duas almas-ave ,deixaram-nos este livro qual ajudante-de-campo aos dias até onde e aonde luz e mundo nos permitam antes da partida desvendar o porquê de aqui estar, e qual o nosso destino.
Existe em nós um estímulo suficientemente luz para nos dar coragem à escolha humana deliberada?
E esse estímulo-luz é a procura da paz que ansiamos a fim de nos perdoarmos por não termos inscrito em nós este desígnio?
Ou antes, ele é a busca de uma religiosidade substantiva, realidade que segura a condição do que é mortal?
Ou ainda e para que nos baste face à lucidez de nos desgostarmos de nós, o estimulo-luz é Deus e deuses, mistérios e milagrosos rezares que abraçam imensamente o coração de quem não crê e de quem crê, e no abraço, a razão da tolerância ao princípio do terreno-conflito comum a todos.
De jeito atrevido diríamos que toda a realidade envolve uma verdade que carece de estabilidade, seja ela o mal que nunca deixa de ser mal ou o bem da boa-fé.
Seja ela o nenhum fundamento da morte ou o entendê-la pela antecipação inegável que há no intuir.
Por aqui também passou o nosso refletir na leitura deste livro e tão pouco foi.
Não será, porventura, da responsabilidade da relativização do pensamento, a consequência dos caminhos múltiplos, nem a sua permanente tentação.
E o diálogo, sempre diálogo a que é intrínseca a ideia de medida.
Os homens identificam normas adequadas à qualidade de vida. É uma conceção moral, é uma linguagem que deve ter em conta as mudanças, é uma linguagem onde nunca caberão as mudanças inegociáveis, as prioritárias no sistema da prudência das hierarquias.
Afinal aquilo que se partilha é sempre o princípio da possibilidade.
É-nos muito grato dizer, antes de mais, que coragem e humildade são boa herança prévia à leitura deste livro.
Gostaríamos de ser capazes de exprimir, o quanto a nossa inquietação e a nossa espera, têm sempre perseguido uma comunhão com uma realidade sagrada sim, porque excedendo-nos, exatamente ao não renunciarmos a ela, à sua busca-testemunho.
Contudo, cremos que ter esta noção envolve o outro que na harmonia entra em cena do connosco comungar. O outro chega até nós numa respiração reveladora de quem é e do que somos.
E seremos nós capazes de compreender quem é que somos? Ou sim, somos capazes sim, se o outro nos olhar, e que nesse olhar exista amor em primeiro lugar, ou se existir a obrigação de nos submeter a algo terrível, também nos é bastante para enfim, nos entendermos connosco no descobrir quem somos.
O reconhecimento de que existimos, o reconhecimento do nosso papel é-nos fundamental, e assim o afirmamos na plena abrangência que envolve o amor aos outros.
Pensamos mesmo que a continuidade da vida e o sentido de um profundo dever, anima-nos até a deixar, até deixarmos que seja o vento, o portador crível, do que nos parece bom para aqueles que venham depois de nós.
Cooperar num esforço comum, sem ambiguidades que valham como razão de comportamento moral, poderá ser uma das razões em que se fundamenta o dever de solidariedade sem que se invoque o transcendente como o caminho que a obriga.
O que é humano, e com ele, o que é condicionado, pode injungir a que valha como profunda razão de atuar, o que afinal se impõe, e impõe como dever ao auxílio do outro que está em nós.
E tanto é o tanto que se pode negociar, entre nós e o nós-outro.
Mas haverá que duvidar desta força humana, na medida em que a sua fragilidade reside no nós que se não aguentará no nosso limite?
E se se criar um espaço, um espaço único ao respeito pela dignidade humana, aquela que é a possibilidade maior do que nós mesmos, maior, no sentido de mais elevada à vida, qual parte de um céu que a nós nos conhece com e sem véu. Já bastará?
Desconhecemos. Somos propensos às questões de fronteira que, também aqui, expõem divergências de fundo. Indisciplinas? Tradições? Batizados? Doutrinas? O culto de Ísis, o verbo atar ou a mão do Papa?
Mas, talvez por isso, eis uma das grandiosas razões singulares:
apenas o diálogo, pode aportar um pouquinho de guia, lá mesmo no muito perto da morte ou da vida plena.
Em Que Crê Quem não crê? (Um livro acalorado e nós)
A coragem é muito notável se com ela examinarmos coisas simples e reconhecermos depois que ainda as não entendemos.
Refletir sobre estas coisas simples sem nos desinteressarmos do passado e dos seus erros ajuda-nos à interpretação humilde do que deixamos atras e do que connosco irá até ao futuro.
Mas vivermos sempre abraçado aos erros é como procurarmo-nos insistentemente distantes de nós, incapazes de descortinarmos qual a razão que nos leva a não abandonarmos o que afinal afirmamos rejeitar e que se encontra, absurdamente, ainda por abrir.
Parece-nos que para iniciarmos um entendimento dos tempos do conhecer em nós, necessitamos que a inteligência tenha uma responsável escolha, desde logo, aceitando que a coragem não é uma espera de um fim humilde com manto de elite.
Para tanto, há que ter piedade nas perguntas; há que ter piedade na suposta consensualidade e mesmo nas denúncias; no julgar; no crer.
Para tanto, há que ter coragem! Coragem para que saibamos discernir quais os valores com os quais estamos totalmente de acordo sem nos alongarmos.
Coragem! para que se conheçam muitas das fronteiras minúsculas do não consenso e ainda assim, aceitar que isso bastará.
Todos, afinal todos, temos de ir um tantito mais longe, sem receio algum dos paradoxos, ou neles não coubesse também um gérmen de verdade.
Enfim, temos de ter coragem para considerar que o acreditar origina equívocos, e que os devemos confrontar na perspetiva do que se espera.
E será que tem prevalecido o sentido simbólico enquanto se anulam as realidades?
E se assim for admite-se a carga utópica como uma reserva de força?
Então aquele medo do futuro que se não confessa, multiplica-se, e a experiência interior que dá a palavra «salvação» tem uma tal amplitude que nos revive em todos os sentidos, incluindo o simbólico, graças!
Afinal é como se o caminho da história da condição humana só tivesse possibilidade de ser encontrado fora dela, mas dentro do simbólico e da esperança, enquanto lugares que consolidam o que afinal tem a energia do que é contingente, do que é aventura por entre as ideias.
Desta forma podemos todos dizer coisas muito parecidas, e, no momento mais dramático do que acontece, deseja-se que a misericórdia se integre em nós, e até na nossa escrita, quantas vezes, indignada? depois da morte de quem parte?
Torna-se então claro o quanto bem carecemos de entender a revelação da nossa condição num fim?
Agora, a realidade será sempre mais importante do que o nome que se lhe dá, mesmo que os nomes possam reconhecer valores comuns.
Mas o nosso exercício ainda está longe de esgotar as coisas simples. Creia-se!
Os nossos pequeninos progressos ainda se balançam entre o simbólico e a realidade enquanto repto.
Em Que Crê Quem não crê? (Um livro acalorado e nós)
Existe uma noção de esperança que para todos signifique o mesmo?
Ou existe um otimismo trágico que também pode ser lido por otimismo da vontade?
Ou que o que existe é um tipo de enfermidade acordada, todas as vezes que o fim dos tempos sopra e à qual também chamamos esperança?
E poderá essa enfermidade ter-se tornado num hábito assente num erro e medita se, medita-se, e vamos fingindo ignorar a não resposta?
E também se pode dizer que se deu a essa enfermidade, um significado espiritual para que ela possua a ideia reguladora de nos julgar, e a nossa engenharia humana, aceita. Aceita porque os nossos medos se acostumam que assim seja.
E desafia-se a força desta esperança enferma, a enfrentar a força dos fantasmas, e ao fazê-lo, deixa de fora a sua irrealidade. Quanto alívio!
Às vezes, existe uma cor nos dias que parece aquela cor da alvorada que nunca existiria e que, no entanto, um tema, um dia inteiro expõe irreverente, com todo o poder do capital da cor que subscreve.
Aprende-se então que a cor tem poder de mando, reconhecida mesmo por aqueles que só se vincularam à razão.
Aprende-se que existe sim, uma noção de esperança, e que para todos não significa o mesmo.
É então chegado o tempo da permuta das razões em liberdade.
É então chegado o tempo do entreabrir de uma das portas do futuro dos homens não resignados com o seu presente.
Hoje em dia, quando tanto se apregoam - sobretudo em Portugal - cultores sentimentalistas do que chega a pretender ser "uma exegese poética" da Bíblia (?), diverte-me evocar um subtítulo da obra de Umberto Eco que te referi: São Tomás e a liquidação do universo alegórico. E até te traduzirei uns trechos desse autor, sobretudo uns que me parecem ajudar à diferenciação entre simbologia e "liberdades poéticas" (título, aliás, dum poema do Saramago).
Interroga-se São Tomás, em primeiro lugar, sobre a licitude de metáforas poéticas na Bíblia, concluindo pela negativa, visto que a poesia mais não é do que «infima doctrina» (Summa Theologiae, I, 1, 9): Poetica non capiuntur a ratione humana propter defectus veritatis qui est in eis. (A poética escapa à razão humana pela falta de verdade que nela está - Summa Theologiae, 1-11, 2 ad 2). E comenta Umberto Eco: Tal afirmação não deve todavia ser entendida como um rebaixamento da poesia, nem como definir-se o ato poético, como na terminologia do século XVIII, enquanto «perceptio confusa». Antes se trata de reconhecer à poesia o direito de figurar entre as artes (isto é, a sua qualidade de «recta ratio factibilium»), sem deixar de admitir, por outro lado, que essa operação - esse «facere» - permanece inferior, por natureza, ao depurado conhecimento que nos trazem a filosofia e a teologia. A Metafísica de Aristóteles ensinara a São Tomás que as tentativas de efabulação dos primeiros poetas teólogos tinham constituído uma maneira ainda infantil de tomar conhecimento racional do universo. Na verdade, tal como todos os pensadores escolásticos, ele não sente qualquer interesse por uma teoria da poesia: assunto bom para especialistas de retórica, que ensinavam na Faculdade das Artes e não na Faculdade de Teologia. Quanto a si, São Tomás foi poeta (e poeta excelente); mas em todas as páginas em que fala de conhecimento poético e de conhecimento teológico, ele nunca se desmarca de um tipo de oposição canónica, nem se refere à maneira dos poetas como algo para além de simples termo de comparação (que não é objeto de análise).
A dado passo do trecho dos seus Scritti sul Pensiero Medievale, sobre O Alegorismo nas Escrituras, Umberto Eco aconselha-se com Henri de Lubac - grande teólogo jesuíta, contemporâneo e amigo do dominicano Yves Congar, com quem, aliás, trabalhou em tempos do Concílio Vaticano II e foi igualmente feito cardeal por João Paulo II; mais recentemente foram ambos lembrados pelo papa Francisco que, nesse período de renovação da Igreja, acompanhou, como discípulo, a obra deles. Recorrendo a Henri de Lubac, sobre o modo expressivo e cognitivo medievo, Eco escreve (traduzo):
Na sua tentativa de contrariar a sobreavaliação gnóstica do Novo Testamento em detrimento do Antigo, Clemente de Alexandria estabelece uma distinção e uma complementaridade entre ambos, diligência que Orígenes aperfeiçoará ao proclamar a necessidade de uma leitura paralela das duas escrituras. O Antigo Testamento é esboço do outro, e nele se precisa a letra cujo espírito o Novo encerra. Ou, para falarmos em termos de semiótica, é a expressão retórica do que, no Novo Testamento é o conteúdo. Por sua vez e parte, o Novo Testamento contém uma significação figurativa, já que é promessa de acontecimentos por vir. É com Orígenes que nasce o «discurso teologal», um discurso que deixa de ser - apenas e tão somente - discurso sobre Deus, para ser também sobre a sua Escritura.
E é assim que já desde Orígenes se começa o ouvir falar de sentido literal, de sentido moral (psíquico), e de sentido místico (pneumático). A partir daí se constitui a tríade que associa o literal, o tropológico e o alegórico, que nos conduzirá progressivamente à teoria dos quatro níveis de significação da Escritura: o literal, o alegórico, o moral e o anagógico.
Cabe lembrar-te aqui, Princesa de mim, o título da monumental obra de Henri de Lubac: Éxégèse Médiévale: les quatre sens de l´Écriture (Aubier, Paris, 1959-1964). Esta 1ª, como todas as outras edições seguintes, hoje praticamente esgotadas.
E vou levar-te, por Umberto Eco (agnóstico já quando escreveu a sua tese de doutoramento sobre São Tomás de Aquino), ao dominicano patrono da nossa teologia. Não seguiremos pelo caminho da análise mais profunda da evolução do pensamento medieval sobre os quatro sentidos da Escritura, surpreenderemos um momento revelador do foco e do rigor aquinenses.
Eco considera que São Tomás admite ser normal as Escrituras apresentarem-nos realidades divinas e espirituais - precisamente porque estas ultrapassam a nossa compreensão - sob o aspecto de coisas corpóreas: conveniens est sacrae scripturae divina et spirituali sub similitudine corporalium tradere (Summa Theologiae, I, 1,9). Quanto à nossa leitura do texto sagrado, Aquino diz que devemos procurar o seu fundamento literal e histórico: na verdade, tratando-se de história sacra, o literal é histórico, pois que relata um acontecimento compreensível (a saída dos Hebreus do Egipto, p. ex.) e este determina a narrativa. Illa vero significatio qua res significatae per voces, iterum res alia significant, dicitur sensus spiritualis, qui super litteralem fundatur, et eum supponit - "chamamos sentido espiritual a essa forma de significação pela qual as coisas significadas por meio de palavras vão, por sua vez, significar outras; tal sentido espiritual assenta no sentido literal, e pressupõe-no" (Summa Theologiae, I, 1, 10, resp.)
E Umberto Eco, percebendo que São Tomás designa por sensus spiritualis os diversos supersentidos que podem ser atribuídos a um texto, também entende que o Aquino vai direito à questão fulcral de interpretar o sentido literal como sendo precisamente a intenção do autor, ou seja, o sentido quem auctor intendit. E comenta então: Tal precisão é da maior importância para apreciarmos as posteriores manifestações da sua teoria de interpretação das Escrituras. Ao falar de sentido literal, São Tomás não fala de sentido do enunciado (do que um enunciado exprime pelo código linguístico a que se refere), mas, certamente, ao sentido que lhe é atribuído pelo próprio autor da enunciação. Em linguagem hodierna, se, numa sala cheia de gente, eu disser que «há muito fumo aqui», pode ser para afirmar (é o sentido do enunciado) que há fumo demais na sala; mas também posso querer exprimir a ideia (em função das circunstâncias da enunciação) de que seria oportuno abrir a janela, ou, então, deixar de fumar. É evidente que, para Tomás de Aquino, os dois significados são parte integrante do sentido literal, pela simples razão de que ambos pertencem a um contexto que o enunciador se propunha enunciar. Como duvidar então de que Deus, sendo o autor das Escrituras e, simultaneamente, capaz de apreender e interpretar uma data de coisas ao mesmo tempo, nada obsta a que possamos supor que haja, nas Escrituras, uma pluralidade de sentidos - plures sensus - nem que apenas em virtude só do rudimentar sentido literal?
Creio que poderei dizer-te, Princesa de mim, que esta análise é também pedagógica, porque nos desarma de preconceitos e nos põe a procurar responder às nossas próprias interrogações. Mas, sobretudo, pensossinto que nos ensina o respeito pelo texto e a humildade na sua leitura. Se reparares bem, é por assim nos tornarmos mais pequeninos que ganharemos altura para mais largo e livre entendimento do que nos é dado ler.
E quiçá algum recolhimento reflexivo sobre hiatos, obscuridades e interrogações, com que vamos diariamente deparando na babel leviana da "comunicação" contemporânea, nos pudesse ajudar - não só nem principalmente - a falar e escrever melhor, mas - sobretudo - a conseguir pensar e discorrer com mais construção e associação de ideias, em vez de repetirmos (ainda por cima através, tantas vezes, de neologismos disparatados e dispensáveis estrangeirismos que, para quem estiver atento, são denunciadores de ignorância e relaxamento mental) o que por aí se vai considerando e apregoando convencionalmente correto ou "poeticamente hermenêutico".