Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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221. 2. O EQUILÍBRIO ENTRE O UNIVERSALISMO E AS DIFERENÇAS
Amin Maalouf (AM) argumenta que se quisermos enfrentar as alterações climáticas temos de sentir que estamos no mesmo barco, numa luta comum, numa nação humana e global, o que nos obriga a fixar um tipo de relações diferentes e não limitadas a esta questão, mas extensivas a outras que nos definem enquanto povos e cujos valores devem ser universalizados, o que justifica respondendo:
“Acredito que há princípios e valores básicos que terão de ser comuns a todos os seres humanos. A democracia, liberdade de expressão, direitos das mulheres… Tudo o que constitui a dignidade básica dos seres humanos, independente do género, raça, credo, linguagem, grupo étnico. Não aceito a ideia de que deverão existir uns direitos humanos para os europeus e outros para os povos islâmicos, africanos, asiáticos. Têm que ser os mesmos. Mas depois deverá existir uma grande diversidade de expressões culturais. A principal é a linguagem. Cada povo deverá sentir que o seu idioma não é marginalizado. Toda a cultura associada à língua deverá tornar-se conhecida, mesmo para lá das fronteiras dessa cultura” (JL n.º 1014).
A mensagem é que há uma dimensão universal da dignidade humana mais forte que os seus elementos constitutivos, as suas diferenças e os seus particularismos, em que a globalização não pode ceder lugar à uniformização, defendendo-se a unidade com diversidade e não a diversidade sem unidade ou a unidade sem diversidade.
Aos olhos da tese universalista dos direitos humanos a unidade do género humano sobrepõe-se à diversidade das culturas humanas, porque há uma identidade humana universal, por referência à qual e à irredutível dignidade da pessoa humana se justifica a universalidade de tais direitos, titulados por todos os seres humanos em virtude da sua condição, pelo que negar-lhes essa integralidade (condição indispensável) significa negá-los.
Não significando esse universalismo absolutismo, uniformidade ou inflexibilidade, defende-se que terão de ser direitos humanos universais contextualizados, tendo em conta as particularidades específicas das sociedades a que se destinam, conciliando a diversidade cultural e a existência de um conjunto de valores “transculturais” comuns, de modo a poder ser definido por um diálogo intercultural, um conjunto de valores partilhado por todas as culturas.
Têm por fim alcançar um modelo mínimo de direitos humanos ao alcance de todas as culturas reconhecendo, ao mesmo tempo, a sua inevitável incompletude, havendo quem fale numa conceção multilateral desses direitos.
Ao invés do universalismo, há o relativismo, defendendo não ser universal a dimensão cultural da natureza humana, conhecendo a dignidade humana formas muito diferentes de expressão, tantas quantas as formas de se ser pessoa humana, sendo o ser humano, acima de tudo, um ser situado numa multiplicidade cultural do mundo que não está ordenada por um princípio valorativo que nos permite beneficiar umas culturas em detrimento das outras. Se todas as culturas são merecedoras de igual reconhecimento e respeito, não existe uma cultura dominante, pelo que a origem ocidental (e marcas de ocidentalidade) dos direitos humanos não são mais que uma concreta forma encontrada pelo Ocidente para homenagear, à sua maneira, a dignidade humana, numa manifestação de arrogância, superioridade e desrespeito pela dignidade de outros.
A tese relativista levada até às suas últimas consequências impõe que, por respeito pelo diferente (que não estamos autorizados ou capacitados a avaliar), toleremos a intolerância. Uma das contradições fundamentais do relativismo cultural consiste em o respeito pelas culturas alheias e o reconhecimento do outro levar, inevitavelmente, a reconhecer culturas que não reconhecem nem respeitam o outro.
Se, como advoga AM, “a indiferença relativamente às diferenças culturais mata a capacidade de compreender” e têm que ser os mesmos os direitos humanos para os europeus e todos os outros povos, tem que haver um diálogo, um debate plural e construtivo, uma capacidade para colocar em contacto as diversas culturas, sem as absolutizar, dado que a absolutização cultural retira às pessoas a capacidade de questionar, não apenas os valores alheios, mas também os que são seus.
AM sanciona que a partilha de valores comuns sejam essencialmente de origem ocidental, aceites pela maioria, mesmo que se diga o oposto, exemplificando que “As pessoas na Argélia ou no Irão querem ter sistemas políticos como os do Ocidente. Não acredito que queiram realmente ter um sistema em que existe um líder religioso que decide quem é cândido e não é”, declarando ainda: “o Ocidente precisa de sair do excesso de confiança de si mesmo, enquanto o mundo árabe precisa de sair do poço histórico em que caiu”.
Se falhar, acrescenta AM: “Não temos escolha senão a esperança. É uma necessidade”.
220. 1. O EQUILÍBRIO ENTRE O UNIVERSALISMO E AS DIFERENÇAS
Amin Maalouf (AM), escritor de origem libanesa, aquando do lançamento, entre nós, do seu livro Um Mundo sem Regras, numa entrevista onde questionado sobre o que é, para ele, uma cultura global, respondeu:
“Aquela em que cada elemento importante de cada cultura se tornaria global. Onde ninguém sentiria que o principal elemento da sua cultura só seja conhecido pelo seu povo, seja arte, música, literatura. Acredito num mundo em que as nações lidem principalmente com estas expressões culturais. E onde todos os comportamentos de estados e nações ao longo da História - lutar por territórios - desapareçam”.
Prosseguindo, acrescenta:
“Seria o fim da Pré-História. A História que conhecemos, de luta entre tribos, deveria acabar, para entrar numa História em que se partilhem valores comuns. E não me importo que sejam sobretudo valores ocidentais. Penso que, na sua maioria, são aceites, embora muitas vezes se diga o contrário. (…) Mas o Ocidente deveria tornar-se menos orientado para si mesmo no que respeita à cultura. Precisamos de ir em direção a um mundo em que os valores sejam comuns, mas em que exista um verdadeiro florescimento de linguagens, literatura, arte, ciência. Isto é o futuro da humanidade”.
Sobre saber se o futuro só é possível através da cultura, diz estar convicto de não poder existir de outro modo: “Qual a razão de ser da civilização se não for a cultura e o conhecimento? Para mim a cultura não é um aspeto da civilização, mas a sua finalidade”, complementando que ter esperança no futuro é uma necessidade (JL n.º 1014).
Esta noção de cultura tem a sua particularidade, dado não prescindir de traçar uma nítida distinção entre civilização e cultura, ao invés de muitos autores que a usam indistintamente, defendendo uma identidade de princípios entre os dois conceitos. Entre os vários critérios de distinção, o mais universalizado está associado à doutrina sociológica alemã, ao identificar a civilização com o substrato técnico e organizacional das sociedades, incluindo não apenas as técnicas e os instrumentos materiais, mas também os sistemas de organização política e social, adaptando a natureza às necessidades humanas.
No seu oposto e numa relação de complementaridade, está a cultura, compreendida como a reunião dos valores morais e espirituais. Institui-se um entendimento redutor da civilização que a torna subordinada da cultura. Mais importante que a técnica (que é apenas um meio ao dispor dos indivíduos), são as manifestações do espírito, de que depende o desenvolvimento das forças interiores da humanidade.
O conceito de civilização emerge como um estádio embrionário do aperfeiçoamento humano, que só será finalizado quando atingido o nível superior da cultura. Cabe à cultura a primazia, integrando os ideais, os valores, os princípios normativos, o espírito das sociedades humanas.
Intui-se, assim, ser esta a doutrina que agarra mais de perto o entendimento de cultura defendido por AM, dado que o futuro da humanidade só é, então, possível através da cultura, não sendo esta um aspeto da civilização, mas o seu fim.
Uma cultura que será apologista da dignidade humana, o que nos remete para a problemática do universalismo dos direitos humanos e as diferentes diferenças que nos individualizam.
3. UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO NOS DIREITOS HUMANOS (II)
3.1. Segundo uns, os direitos humanos são uma aspiração intemporal, tão antiga como a antiguidade humana. Segundo outros, um produto recente, nascido da colaboração entre várias culturas. Para outros, são direitos de génese ocidental, uma imposição de um modelo civilizacional das principais potências ocidentais. É verdade que são um produto da Europa moderna, dado que a formulação da dignidade humana em termos de direitos subjetivos dos indivíduos pertence à modernidade europeia. O Renascimento, de génese antropocêntrica, recupera a confiança na primazia da pessoa assumidamente livre e liberta dos embaraços ditados pela tradição. A Reforma, combatendo a autoridade da igreja, defende o princípio do livre acesso à verdade religiosa, de que derivaria o direito à liberdade de consciência, tido como o primeiro entre os direitos humanos a ter consagração legal. Laicismo, tecnicismo, humanismo e individualismo são caraterísticas dos direitos ocidentais, extensivas aos direitos humanos, tendo estes como pressuposto fundamental a Pessoa, a sua autonomia, liberdade e dignidade, assente na exigência de respeito pela dignidade da pessoa humana, ser único e irrepetível, titular de direitos inalienáveis e centro nuclear e total de todo e qualquer sistema jurídico. Centram-se na dignidade do ser humano, antecedem-se e antepõem-se ao Estado, aos poderosos e agentes de autoridade, sendo uma limitação ao exercício do poder, limitando-o, protegendo os indivíduos e grupos, por maioria de razão os mais vulneráveis, não podendo ser suprimidos nem negados, sendo iguais e interdependentes. No confronto entre os mais fortes que têm o poder e a fragilidade do indivíduo e dos mais fracos, sobressai a dignidade da pessoa humana como um núcleo central, indivisível e inviolável.
3.2. Esta sua essencialidade que se pretende comum e universal a todos os humanos, pode não equivaler sempre a uma uniformidade e inflexibilidade, podendo revestir a forma de direitos universais contextualizados que assumem a sua eficácia por particularismos específicos das várias diversidades culturais. Imprescindível é manterem a sua essencialidade, dado que a apelativa sedução do relativismo cultural levada às suas últimas consequências pressupõe que, por respeitar e tolerar sempre o diferente, aceita a intolerância, o terror e a violência, uma vez que a pura aceitação e mero reconhecimento da cultura do outro, conduz inevitavelmente a que se aceitem culturas que não reconhecem nem respeitam os outros. Será em nome da essencialidade e universalidade humana e humanista, e não do relativismo e da racionalidade, que não teremos de excluir as pessoas incapazes da titularidade de tais direitos, atenta a sua natureza inalienável e indisponível. Se os direitos humanos têm a sua génese na racionalidade (kantiana) do ser humano, que fazer com aqueles que nunca tiveram ou perderam as suas capacidades racionais, como os bebés, deficientes, pessoas com Parkinson, Alzheimer, ou incapacidades similares? Legitima-se a sua exclusão em nome de uma ausência de capacidade racional potenciadora, em muitas situações, de razias genéticas e abates seletivos? Se tudo é relativo, sendo uma falácia falar-se em essencialidade e universalidade, absolveremos e fecharemos os olhos a violações flagrantes da dignidade de toda a pessoa humana, desde os crimes contra a humanidade, como o genocídio, à proibição da liberdade de expressão, que uma menor se recuse a um casamento forçado contratado pelos pais, a sofrer uma mutilação sexual feminina? Em qualquer situação, não devemos prescindir, aqui, agora e sempre, de referentes comuns e universais a todos os seres humanos. Mesmo que forçados a dialogar por potenciais novos acordos universais tendo por fim a resolução de problemas comuns, como a defesa do meio ambiente, proliferação nuclear e a engenharia genética. Afinal, antes de sermos portugueses, ibéricos, europeus, cristãos, asiáticos, africanos, americanos, australianos, brancos, negros, amarelos, budistas, muçulmanos, somos todos, sem exceção, seres humanos.
2. UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO NOS DIREITOS HUMANOS (I)
A 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, positivando-os em normas universais, também consagradas e especificadas no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Merece também referência a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a criação do Tribunal Penal Internacional. Tidos como direitos iguais e inalienáveis, o artigo 1.º da DUDH proclama: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Será que os direitos humanos são mesmo universais? Poderemos continuar a defender a sua universalidade, ou seja, que são direitos comuns a todas as pessoas e a todos os lugares? Mesmo sabendo que no plano mundial a sua natureza universal é constantemente ameaçada e é dececionante o seu efetivo cumprimento?
2.1. A TESE UNIVERSALISTA
Há uma identidade humana universal, em que a unidade do género humano se sobrepõe à diversidade das culturas humanas. É por referência a essa identidade humana comum e universal, bem como à irredutível dignidade da pessoa humana, comum a todas as pessoas e sustento da profunda unidade do género humano, que se justifica a natureza universal dos direitos humanos. Titulados por todos os seres humanos em virtude dessa condição, caraterizam-se pela universalidade, sendo esta uma sua caraterística e condição indispensável. A universalidade dos direitos humanos não significa uniformidade, rigidez ou inflexibilidade, nem impele os seres humanos a abdicarem da sua cultura, sendo compatíveis com os particularismos nacionais, regionais ou locais determinados pelas diferenças culturais, determinando as formas concretas que assumem e a sua eficácia, dado que a diferenciação cultural é enriquecedora para a sua concetualização. Fala-se em direitos universais contextualizados, numa noção multicultural, numa mestiçagem, em equivalentes homeomorfos e no princípio da essencialidade dos direitos humanos, de modo a poder definir-se um conjunto de valores que sejam partilhados por todas as culturas mundialmente disseminadas. Um modelo mínimo ao alcance de todas as culturas, em que o seu fundamento reside em valores próprios da vida comunitária enquanto tal, independentemente da forma adotada. Valores que sejam “cross-cultural universals”, nas palavras de Alison Dundes Renteln.
2.2. A TESE RELATIVISTA
A sua origem ocidental e a formulação concreta, concetual e linguística, encontrada pelo Ocidente para prestar homenagem à dignidade da pessoa humana, são causa de fortes críticas de autores relativistas contra a sua pretensa universalidade. Não são mais que uma retórica específica do Ocidente para homenagear a dignidade humana, traduzindo-se a sua universalidade numa arrogante expressão pública de aparente superioridade, numa racionalidade neocolonialista e unilateral de imposição de uma verdade, numa postura de ausência de respeito pela dignidade de outros seres humanos. Trata-se, para os relativistas, da imposição de um modelo civilizacional liberal e ocidental, de uma inadmissível intromissão na soberania estadual, dado que não sendo a cultura universal, de igual modo os direitos humanos o não poderão ser. Assim, a prioridade dada ao indivíduo sobre o grupo é um desvio da natureza humana, sendo indefensável ter a pessoa humana como anterior à comunidade, acima ou independente dos seus valores. O individualismo é tido como responsável direto pela alienação e desenraizamento das pessoas, enquanto indivíduos, o que só pode ser superado pela recuperação dos valores comunitários, subordinando os interesses individuais aos do grupo. O que é comprovado pelo confronto entre a génese antropocêntrica da cultura ocidental, centrada na primazia do indivíduo, com a cultura africana ou asiática, aderentes de ideologias comunitaristas. Não existindo uma única forma de ser humano, nem uma só maneira de o proteger através do Direito, são inaceitáveis e ilegítimas qualificações tendo como universais os direitos humanos, tidos como um produto histórico da civilização ocidental. Entre o universalismo e o relativismo, há formulações intermédias, mas é entre o entendimento universalista e relativista dos direitos humanos que os seus defensores e críticos se posicionam.