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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 30 de setembro a 6 de outubro de 2024


«Deus - A Ciência - As Provas – A Alvorada de Uma Revolução» (D. Quixote, 2024) de Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies constitui um documento importante com interrogações que nos permitem compreender que o tempo das conclusões definitivas sobre a ciência, o universo e a vida terminou, dando lugar à abertura de espírito.


UM DESAFIO A PENSAR
A obra que acaba de ser publicada em Portugal, dada à estampa em França em 2021, resultou de três anos de labor envolvendo vinte cientistas e especialistas dos temas tratados, correspondendo a um trabalho hercúleo, envolvendo quatro séculos de descobertas científicas, de Copérnico a Freud, passando por Galileu e Darwin. Se as descobertas se acumularam de modo espetacular nesse tempo, a verdade é que, depois do otimismo positivista do início do século XX, sucedeu a oscilação do pêndulo da ciência num sentido da ponderação de novos fatores ditados pela descoberta da teoria da relatividade, da física quântica, da expansão do Universo e da complexidade da vida. Os novos conhecimentos abalaram as certezas consagradas e permitiram considerar a lógica materialista como uma crença como tantas outras, com o risco de se converter num entendimento contrário à razão. Eis por que motivo é importante esta obra, cujos autores apresentam em linguagem acessível e de uma forma aberta e crítica, um panorama rigoroso das provas possíveis da existência de Deus. Longe de uma perspetiva confessional, estamos perante a apresentação de um percurso complexo, que não para e que nos obriga a refletir. O objetivo dos autores é apresentarem os elementos necessários para pensar sobre a questão da existência de um deus criador, que se põe em termos completamente novos. A leitura é de facto apaixonante e pressupõe uma evolução, que se traduz numa “grande inversão” em cinco séculos de descobertas desde o crescimento ao declínio das ideias “materialistas”. Senão vejamos. Há um primeiro ciclo que envolve, desde 1543, o heliocentrismo de Copérnico e Galileu, a gravitação de Newton, a idade da Terra de Buffon, o determinismo de Laplace, a evolução de Lamarck, a seleção natural de Darwin, a dialética de Marx e a psicanálise de Freud. Depois abre-se o segundo ciclo da termodinâmica e da morte térmica do Universo, com Carnot, a mecânica quântica e o princípio da indeterminação de Max Planck, Heisenberg e Bohr, a relatividade, a expansão do Universo e o Big Bang, de Einstein e Friedmann, o teorema da incompletude de Gödel, a descodificação do genoma de Watson e Crick, o descrédito das teorias de Freud e o colapso do bloco soviético, a refutação do Big Crunch e o princípio antrópico do astrofísico Brandon Carter. Como afirma no prefácio Robert W. Wilson, prémio Nobel da Física (1978): “vivemos num desses multiversos que beneficiou de boas constantes para nos engendrar como descreve o princípio antrópico bem conhecido. Na minha opinião, porém, nenhuma destas hipóteses avança uma explicação científica convincente sobre a forma como, afinal, o Universo pode ter começado”. Caminhamos numa via de tentativa e erro, não sabendo o suficiente para ser intolerantes, como nos ensinou Karl Popper. Daí a importância de se explorar a ideia de um espírito ou de um Deus criador, que encontramos nas numerosas religiões.


DOIS GÉNIOS
Albert Einstein ajuda-nos a perceber esta obra, afirmando: “Não sou ateu e não creio que possa dizer-me panteísta (…). O que me separa da maioria daqueles a que se chama ateus é o sentimento de uma humildade total perante os segredos inacessíveis da harmonia do cosmos. (…) Os ateus fanáticos são como escravos que continuam a sentir o peso das suas grilhetas que rejeitaram após uma luta encarniçada. São criaturas que, no seu rancor contra a religião tradicional concebida como ‘ópio do povo’, já não conseguem ouvir a música das esferas celestes”. E afirma ainda: “Sentir que, por detrás de tudo o que a experiência consegue apreender se encontra alguma coisa que o nosso espírito não consegue assimilar e cuja beleza e sublime só nos tocam indiretamente sob a forma de um ténue reflexo, isto é a religião. E neste sentido sou religioso”. Por isso, defendia que a religiosidade cósmica seria a mola mais forte e mais nobre da investigação científica. É notável o testemunho de Kurt Gödel, um dos nomes mais importantes no pensamento contemporâneo. Da sua amizade com Einstein em Princeton colhemos este testemunho. “Regresso a casa com Einstein quase todos os dias, e falamos de filosofia, de política e dos Estados Unidos. A religião dele é bem mais abstrata, tal como a de Espinosa ou a da filosofia indiana. A minha é mais próxima da religião da Igreja. O Deus de Espinosa é menos do que uma pessoa, o meu é mais do que uma pessoa, porque Deus não pode ser menos do que uma pessoa. Pode desempenhar o papel de uma pessoa”. Se as religiões estavam cheias de impurezas, haveria que preservar o essencial do fenómeno religioso. E pode dizer-se que Gödel definia assim o seu pensamento: “O mundo não é caótico e arbitrário, mas como mostra a ciência, a maior regularidade e a maior ordem reinam em toda a parte. A ordem é uma forma de racionalidade. A ciência moderna mostra que o nosso tempo, com todas as suas estrelas e planetas, teve um começo e terá provavelmente um fim. Porque haveria, então, de haver este mundo único aqui? Visto que um dia aparecemos neste mundo sem sabermos como, nem de onde, o mesmo pode acontecer de novo num outro mundo da mesma maneira. Se o mundo está organizado de forma racional e tem um significado, então deve haver uma outra vida. Para que serviria produzir uma essência (o ser humano) com tão grande número de possibilidades de desenvolvimentos individuais e de evoluções nas suas relações, mas a quem nunca poderia ser permitido realizar mais do que um milésimo delas? Seria como construir os alicerces de uma casa com grandes dificuldades, e depois deixar tudo ruir”. E assim espírito e matéria são distintos – e esta é a base do teorema da incompletude. “O meu teorema mostra somente que a mecanização das matemáticas, ou seja, a eliminação do espírito e das entidades abstratas, é impossível”. Se há uma conclusão fundamental é a de que, como pretendeu Pascal, qualquer simplificação unilateral é perigosa. Se fossemos testemunhas silenciosas dos diálogos entre Einstein e Gödel em Princeton perceberíamos que a atitude correta é a que nos leva a recusar as opções sem saída. Somos demasiadamente imperfeitos para poder ficar pelas simplificações redutoras. A complexidade reserva-nos inúmeras surpresas e diz-nos que não há uma só motivação para um mesmo acontecimento e que as aparências são profundamente ilusórias.  


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


184. O PARADOXO DE FERMI, O GRANDE FILTRO E A INCERTEZA


1.
O físico italiano, naturalizado estado-unidense, Enrico Fermi, observou que talvez estejamos sós no universo, dada a enorme quantidade de estrelas da nossa galáxia (200 mil milhões), quase todas com planetas, não se tendo encontrado, até agora, qualquer civilização extraterrestre. O que é desesperante e intrigante, pois tendo o universo surgido há biliões de anos e havendo triliões de estrelas dispersas pelo cosmos, seria expectável que a civilização humana tivesse contactado ou encontrado sinais de seres extraterrestres, o que nunca sucedeu. Daí o paradoxo de Fermi: a aparente contradição entre a elevada possibilidade de civilizações extraterrestres e a ausência de provas que certifiquem a sua vivência.   


Há várias respostas, plausíveis e racionais, no âmbito da nossa racionalidade. 


Não investigamos nem procuramos há tempo suficiente: os humanos surgiram há um milhão de anos e só há cinquenta começámos a ter radiotelescópios com capacidade de comunicar a distâncias interestelares.   


Não estamos a olhar para os lugares e sítios certos: englobando o universo tudo o que existe, desde o microcosmo ao macrocosmo, galáxias, estrelas, astros, cometas, nebulosas, buracos negros, partículas subatómicas, o além e o infinito, levará tempo a descobrirmos formas de vida mais complexas. 


Os dados astronómicos até hoje recolhidos (ondas de rádio e de todo o espectro eletromagnético: infravermelho, ultravioleta, luz percetível, micro-ondas, raios x e gama), não provam haver vida inteligente no universo. 


Pelo que sabemos, formas mais simples de vida, a vida unicelular, serão mais comuns, devendo ser raras ou inexistentes as mais avançadas e complexas.


Mesmo que escassas ou existentes numa escala relevante formas de vida complexas e inteligentes, exigem uma civilização tecnológica evoluída, compatível com a nossa, que viabilize uma comunicação espacial e interestelar recíproca. 


Emergiu apenas há duzentos anos a civilização tecnológica do nosso planeta, tempo demasiado diminuto por confronto com o início da vida na Terra.   


Não descobrimos, até ao presente, assinaturas de calor residual de civilizações extraterrestres tecnologicamente avançadas que, em princípio, devíamos detetar através de telescópios terrestres ou espaciais.     


As sondas terrestres não encontraram artefactos, sinais ou vestígios de outras civilizações, nos locais explorados, tudo parecendo intocado.


Embora fosse previsível a descoberta consumada de planetas extrassolares, outras estrelas (como o sol) com planetas, pulsares e rajadas rápidas de rádio, a radioastronomia e outros modelos de astronomia ainda são insuficientes, mesmo que cada vez mais adequados. 


2.
Porém, a resposta mais clássica é o chamado Grande Filtro: tem-se como hipoteticamente comum a todas as civilizações tecnológicas, como a nossa, chegarem a um certo grau de desenvolvimento em que se autodestroem, o que é possibilitado, por exemplo, com a descoberta da bomba nuclear. Daí que, talvez, apenas uma percentagem muito residual seja capaz de ultrapassar esse período de “progresso”, dado que a esmagadora maioria ou a totalidade das sociedades inteligentes finam, autodestruindo-se, antes de encontrarem outras civilizações.


Na civilização terrestre, como sabemos, a possibilidade de guerra coexiste com as armas nucleares, daí podendo resultar horrendas consequências, entre elas a destruição da nossa espécie, em que a doutrina da dissuasão pode ser letra morta. Para evitar um conflito nuclear, é necessário haver sanidade mental. Nem todos a têm. Se assim é connosco, o mesmo pode suceder com outras civilizações extraterrestres inteligentes e tecnologicamente evoluídas.


A que acresce termos que lidar com a quarta revolução industrial, a decorrer: a inteligência artificial (IA).  


Nesta evolução permanente, o grande filtro pode vir da inteligência artificial, e não das armas nucleares. A tecnologia da IA pode vir a ser responsável pelo sucumbir da nossa civilização, impedindo-nos de alcançar o nível tecnológico imprescindível para viagens interestelares. Raciocínio que se aplica, por analogia, a civilizações extraterrestres similares ou mais avançadas que a nossa. Há quem preveja que quando as civilizações usarem, de modo generalizado, a IA, devem durar apenas entre 100 a 200 anos.   


3.
Somos um pequeno mundo dentro de outros mundos, uma pequena parte do cosmos que esmagadoramente desconhecemos, de um universo que nos deslumbra e fascina, nos interroga e põe à prova a nossa finitude, imperfeição e o princípio da incerteza, de que na repetição permanente e sucessiva de interrogações encontramos a razão para continuar, ir mais além do além, até onde o engenho e arte nos permitam.


Há uma curiosidade crescente em sabermos o que não sabemos, resistindo ao cansaço da rotina, do humanamente previsível: se o sistema solar é basicamente pristino (intocado), se há civilizações menos evoluídas, iguais ou mais avançadas que a nossa, se há civilizações que viajam entre as estrelas enviando sondas, robôs ou satélites, se (in)visíveis aos humanos, se as civilizações tecnológicas são raras, efémeras ou vítimas de si próprias exterminando-se ou autodestruindo-se, se há mobilidade da vida entre planetas e  a possibilidade de emergir várias vezes e não uma só, quanto tempo pode estar ativa uma civilização tecnológica, como usa os seus recursos naturais e quais os seus efeitos no impacto ambiental, se tem armas de destruição maciça???, etc. Formulações de porquês, geradoras de outros porquês, até ao infinito… 


Estou convicto que tempos virão em que acharemos ou descobriremos outras civilizações, ou o inverso, gerando uma era de novos achamentos ou descobrimentos, extraterrestres e interestelares, sendo improvável que na infinitude do cosmos não haja outros espaços habitáveis e inteligíveis, quiçá ultrapassando os nossos limites, porque de momento inacessíveis ou invisíveis. Não estarei cá para o testemunhar, por certo, o que muito, muito lamento! 


Filmes e literatura de ficção científica, vão atenuando a nossa curiosidade e incerteza, inspirando a nossa imaginação, o que é melhor que nada, mas não chega.


Para nós, humanos, dado o que conhecemos, o desafio é maior do que nunca, pois apesar de mais poderosos e sofisticados a nível científico e tecnológico, isso não nos garante que os que têm o poder sejam as melhores pessoas para o usarem, não só em termos políticos, mas também éticos e morais, ou de um mero bom senso. Mas podemos e devemos contribuir para que a sua ação se paute por um sentido alto de direção ética, moral e política, mesmo tendo por adquirido que vivemos numa sociedade internacional imperfeita.        


19.07.24
Joaquim M. M. Patrício

CARTAS À PRINCESA DE AGORA E SEMPRE

ponte nevoeiro.jpg

 

   Minha Princesa de sempre :

   Não recordo, não registei, nem sequer medi o tempo decorrido desde a última carta que te escrevi. Talvez por me sentir mais desvinculado da duração de tudo, finalmente mais preso à memória das coisas e das vidas como essencial substância da minha consciência do presente... como se este mais não fosse do que passado imperfeito! Sou hoje o que fui mais o que não cheguei a ser. Quero assim dizer que prevaleço nesse sentimento de mim em que, mais do que eu e a minha circunstância, me surpreendo como eu e a minha imperfeição. Já me não conjugo no futuro, não consigo completar-me. Tampouco me habita qualquer sentimento de perda, muito menos desejo ou vontade de ser agora o que não fui no devido tempo. Nem sequer rumino vadios pensamentos de culpa minha ou alheia. Não vou gritar, como a Traviata, "É tarde!" Tudo na nossa vida tem o seu tempo oportuno.

   Não é por deitarmos abaixo antigos ídolos ou antiquados símbolos que nos convertemos. Aquilo que for o ser novo e limpo, ou estará já dentro de nós, ou será mais um episódio da nossa imperfeição. Nesta nossa vida presente, queiramos ou não, há um tempo e um espaço que necessariamente nos condicionam quando agimos. O nosso estado de liberdade pertencerá sempre, por enquanto, a essa mística interior, alheia a qualquer espaço ou tempo que possa limitar-nos, algo tão misterioso que apenas podemos imaginar como o antiquíssimo futuro de nós... 

   Sempre te disse e escrevi, minha Princesa agora perdida entre estrelas de um universo em contínua expansão  -  que talvez seja a extensão do Deus desconhecido que procuramos  - , quanto me deixa perplexo, mesmo para além de qualquer angústia, pensarsentir a contradição desta nossa condição humana, hesitação constante (interminável?) entre o finito e o infinito, talvez interrogação sem resposta certa na finitude da nossa temporalidade, mas fé e esperança que o amor dos outros (e de nós) desenha na intemporalidade do infinito que, afinal, dia após dia, incansavelmente vamos desejando e desenhando. 

   Talvez cheguemos a esta idade do fim do nosso tempo apenas para confrontarmos a nossa pequenez com a infinita grandeza de Deus. Momento difícil este, em que finalmente realizamos que Deus não tem tamanho nem tempo, e que o "mundo" que nos espera estará certamente fora de nós e do nosso muito imaginar. 

   No início calendarizado de mais um Ano Novo, e quando completo o octogésimo da minha vida presente, contemplo o meu rio envolto em nevoeiro e procuro a ponte que me levará para fora do tempo e do espaço...

 

Camilo Martins de Oliveira

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

89. DA NATUREZA FINITA DA VIDA HUMANA À IMORTALIDADE


Os deuses sempre foram vistos como imortais.

Durante milénios, todas as grandes estruturas do universo estiveram associadas ao infinito e à imortalidade.

Galáxias, estrelas, planetas, eram considerados deuses e imortais. 

Mais divinizado era o deus solar, como Rá e Amon-Rá (deus do sol egípcio) e o Sol Invicto, do império romano. 

Por confronto, a natureza finita da vida humana sempre foi associada à mortalidade.

Nós, humanos, vemo-nos como seres frágeis, podemos morrer, enquanto outros elementos do universo, como as estrelas, eram tidos como imortais. 

Há quem creia que seremos imortais se conseguirmos parar e reverter o envelhecimento.

Há quem acredite numa química da imortalidade. 

Há quem avalize ser biologicamente possível a imortalidade, pois há animais tidos por imortais como, que conste, algumas medusas e um animal exíguo conhecido por hidra.

Interrogam-se, os cientistas, quanto a saber se um organismo complexo, como o nosso, pode alcançar a imortalidade.   

O “comprimido antienvelhecimento” será uma realidade nos próximos 10, 20, 30 anos.   

O envelhecimento é enfrentado como uma doença que se pode evitar. 

Mas atrasar, parar e reverter o envelhecimento, é envelhecer mais devagar e prolongar a vida, não a imortalizando.

Por que a fragilidade sempre foi um elemento da nossa substância, sendo os humanos frágeis numa escala temporal de 80, 90 anos, com a perspetiva de vivermos saudáveis até aos 100, 120, 130 ou mais.

Sucede que todas as estruturas do universo têm um fim, dado que não apenas a vida e mente humana é finita, como o é a vida na Terra, o sistema solar, estrelas, planetas, num universo que nasce, cresce e morre gerido pelas leis da física, condensando e agregando matéria intrinsecamente frágil.

Só que os humanos são frágeis e mortais numa escala temporal de várias dezenas de anos, ou um pouco mais, enquanto as grandes estruturas do universo o são numa escala de milhares ou milhões de anos, indiciando-se que tudo tem uma duração finita na escala temporal cósmica. 

Se o universo e a vida humana são mortais, em escalas temporais diferentes, a imortalidade existirá enquanto o ser humano o desejar e puder pensar nela.

É uma perspetiva inacabada do nosso lugar no cosmos, que cientistas nos ajudam a compreender, no meio do caminho com muitas pedras. 

Em que Deus, como ente sobrenatural e exterior à natureza, é um ser ou inteligência que está para além daquilo que a investigação científica pode alcançar.


17.12.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

O ACASO NÃO COMANDA A VIDA…

 

CNC _ O ACASO NÃO COMANDA A VIDA.jpg

 

“A Borboleta Monarca faz durante a vida uma única viagem em sentido inverso do feito pela geração anterior, sem aprendizagem. Seria tal possível por acaso?

 

Publicamos a apresentação do Livro “Beyond Darwin”, de Miguel Ribeiro, ocorrida na última sexta-feira, no Centro Nacional de Cultura.

 

Edgar Morin tem ocupado uma parte importante do seu tempo na sensibilização para a importância da complexidade. Não é possível o desenvolvimento humano sem a força estimulante da aprendizagem e sem a recusa das explicações simplistas. Por isso, entende que uma atitude pessoal baseada na autonomia e na responsabilidade exige: prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; aprendizagem duma identidade planetária considerando a humanidade como comunidade de destino; exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva.

 

A obra de Miguel Ribeiro, que ora se apresenta, “Para Além de Darwin, a Hipótese do Programa” corresponde, no essencial, a estas preocupações. Tenho acompanhado com muito interesse este caminho reflexivo e disponho-me a falar da obra, apesar da sua dificuldade, em homenagem ao seu autor – e em nome de uma exigência humana, que é a de termos de entender os limites, refletindo sobre eles. Ao ler as páginas deste livro, começando na entrevista imaginária, e prosseguindo nas quatro partes: Uma Alternativa a Darwin, Universo, A Prova do Genoma, e Segundo o Prisma do Programa – senti-me muitas vezes transposto para antigas leituras de Teillhard de Chardin, em nome de uma audaciosa abertura de horizontes, já que as grandes interrogações sobre o mundo e a vida estão sempre dominadas por um véu de incerteza que não podemos nem devemos ignorar. E lembrando-me dos universos romanescos, devo recordar que esta obra tem o seu quê de extraordinário policial ou de um conto misterioso de Jorge Luís Borges. O autor me perdoará, mas senti-me em dados momentos na biblioteca de “O Nome da Rosa” de Umberto Eco, em busca dos segredos do universo, mas também nos estranhos labirintos em que as paredes se tornam desertos e em que o fio de Ariadne de Teseu parece tornar-se inútil.  

 

Há uma pergunta fundamental de que temos de partir para compreender esta obra de Miguel Ribeiro: Por que razão o acaso é incapaz de gerar complexidade? De facto, o primeiro obstáculo ao aparecimento do nosso universo pelo acaso é o conjunto de leis e constantes, que designamos como “coincidências cósmicas”. Para lidar com a questão destas coincidências, a teoria mais comummente aceite é que existem múltiplos ou infinitos universos. Ora tanto o darwinismo como a explicação da origem de tudo através de um programa correspondem à mesma lógica no que diz respeito à emergência e à evolução do universo e da vida. E tentemos explicar: se o acaso é incapaz de gerar complexidade, um programa torna-se indispensável para explicar o universo e a vida. Um programa, para Miguel Ribeiro, não é sinónimo de um Deus criador, mas um conceito indispensável para definir um sistema de informação que explica de onde vimos, como tudo começou e para onde vamos.

 

Para falar desse programa, temos de partir do segundo princípio da termodinâmica, segundo o qual a evolução de um sistema isolado (como o universo) tende para uma desorganização progressiva. Conhecemos o exemplo clássico do copo que se parte, mas não pode reconstruir-se espontaneamente. Afinal, sem um programa, a única tendência possível depois do Big Bang, seria a homogeneidade total, e nunca uma dinâmica evolutiva, tal como encontramos no cosmos. Para o autor, sem programa, a história do universo só seria compreensível na lógica termodinâmica se contada por ordem cronologicamente inversa, ou seja, desde o nosso universo complexo até às partículas que se seguiram ao Big Bang.

 

Importa, assim, considerar os conhecimentos das várias ciências que concorrem entre si para explicar o universo: a biologia, a química, a física ou a filosofia. O universo é, assim, uma máquina de movimento perpétuo, que segue “uma evolução para a complexidade por uma teia de eventos obedecendo ao princípio da causalidade”. Lavoisier tem razão: nada se perde, nada se cria, tudo se transforma… Deste modo se explica o universo como se fosse um computador ou uma máquina do tempo. Estamos não só perante a história do universo, mas também diante da explicação das leis, das constantes e das equações matemáticas com que lidamos, não como uma cadeia de acasos, mas como parâmetros de um software.

 

No diálogo do autor com Darwin, importa ainda perguntar sobre a seleção natural. Será a luta pela vida um elemento crucial? No entanto, para Miguel Ribeiro a seleção natural não explica a evolução da vida. Longe de um papel criativo temos apenas uma resposta natural. Há uma cadeia evolutiva, mas o que importa para o autor é contestar a ideia do acaso na origem do universo. É essa a base desta investigação e das intuições que comporta. Centremo-nos, por isso, na origem da vida. Para o autor: “a perspetiva dominante é a de que uma vez que a ciência consiga explicar o aparecimento espontâneo de estruturas/moléculas tão complexas como a membrana celular, os ácidos nucleicos e os aminoácidos, na presença de energia, a emergência da vida estaria essencialmente explicada”. Mas há muito mais a considerar – para haver uma linha de produção a funcionar é preciso que haja uma estratégia, um objetivo, uma direção, um caminho. A fábrica não se move espontaneamente. Também uma bactéria, uma planta ou um mamífero pressupõem um programa…

 

A analogia entre computador e universo torna-se importante nesta reflexão. E Miguel Ribeiro dá-nos uma metáfora: num jogo de computador, temos um diagrama: a corrente elétrica que alimenta o computador é um fluxo de eletrões, convertidos pelo programa em padrões de zeros e uns, transformados na projeção audiovisual no monitor. Do mesmo modo, o programa do universo converte objetos quânticos em padrões de átomos que o cérebro dos seres vivos transforma em perceção. Ora nem a projeção no monitor nem a nossa perceção revelam o verdadeiro substrato, a razão de ser – respetivamente padrões de zeros e uns e padrões de átomos e radiação. Tudo isso está antes…

 

Assim, deixando de lado as explicações religiosas e da ciência normal de Kuhn, descobrimos uma nova fronteira: a da organização do computador, defendida, entre outros, por Seth Lloyd e Nick Bostrom. Mas para abraçar coerentemente o universo como se fosse um computador, é necessário renunciar à premissa de mutação aleatória que obriga a aceitar o primado do acaso, na linha de Cournot. E eis o ponto nodal da obra e do pensamento do autor, numa tentativa de mostrar que a complexidade é incompatível com o acaso e propor um modelo do surgimento e evolução da vida consistente com o universo visto como caminho de informação. Não, não o acaso que comanda a vida…

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Dizem os jornais que um professor de química na Universidade de Oxford, Peter Atkins, de 78 anos, participou numa conferência-debate no Oceanário de Lisboa sobre "Ver o Universo com os olhos da química". E o diário Público (19/11/2018), referindo-se ao último livro de divulgação científica de Peter Atkins, Como Surgiu o Universo, diz-nos que o mesmo aborda a questão de saber porque existe alguma coisa em vez do nada. Não respondendo inteiramente à questão, afirma que a criação ou Big Bang não foi afinal nada de extraordinário, que foi até uma coisa muito natural. Recusa categoricamente a ideia de Deus: «O funcionamento do mundo foi por alguns atribuído a um Criador espantosamente metediço, mas incorpóreo, a guiar ativamente cada eletrão, quark e fotão até aos respetivos destinos. As minhas entranhas revolvem-se perante esta visão extravagante do funcionamento do mundo e a minha cabeça segue o mesmo caminho das entranhas

 

   Leio tais transcrições do meritíssimo oxfordiano com a certeza de que, para já, aprendi qualquer coisa: nós, os humanos, não pensamos só com a cabeça, ou com a cabeça e o coração. Nem tampouco - como já ouvi dizer - só com os pés: também há quem pense com intestinos turbulentos. E quem candidamente o reconheça e confesse, para que fiquemos bem cientes de que a expressão do seu pensamento - inclusive sobre questões tão antigas, revistas e revisitadas em miríades de pensarsentires humanos, como a pungente interrogação sobre Deus - não é fruto de qualquer preconceito negacionista ou apologético, mas apenas resulta de um longo e estudioso processo gastrenterólogo. Mas nem todos conseguimos «Ver o Universo com os olhos da química» (ou só com eles, por muitos que a química tenha), nem tampouco logramos pensar apenas com os nossos intestinais neurónios (apesar de sabermos que os temos).

 

   O entusiasmante professor ousadamente prossegue, na entrevista ao jornal Público, com a explanação das suas inauditas preocupações e ideias: Creio que existem várias questões sobre a origem do Universo. Uma delas é: como começou? O que iniciou o Universo?

 

   Pasmamos então com a novidade profunda da questão levantada e, para tentar acompanhar o discorrer tremendo do distinto mestre, perguntamos também: «Não foi Deus?» E assim ganhamos a pérola de uma resposta que não poderia ser mais científica, nem quimicamente mais pura, nem mais objetiva, nem mais rigorosa: Gostaria de pensar que não foi. [Deixa-me dizer-te, Princesa de mim - e não mo leves a mal -, que a esmagadora objetividade científica de tal afirmação me lembra aquele clérigo cultural, muito na moda, escrevendo umas pieguices pretensamente poéticas, que sempre me fazem supor que ele também «Gostaria de pensar que o céu nunca é azul nem cinzento, mas é sempre cor de rosa»...] Mas continuemos a acompanhar os gostos científicos de Peter Atkins:

 

   Gostaria de pensar que a ciência, um dia, chegará ao ponto de poder dizer: "Sabemos como tudo começou." E será muito empolgante. Mas creio que há certos aspetos sobre o início do Universo que a ciência já está em posição de perceber e explicar. Acho que as leis naturais são um desses aspetos. O meu objetivo era ver se, ao focar-me num dos aspetos da origem do Universo, se podia atingir um ponto de entendimento que mostrasse que o início foi, na verdade, muito simples. Acho que a ciência simplifica as questões - não simplifica demasiado, apenas simplifica, mas não de uma forma perigosa.

 

   Assim nos livramos do mal, já que a ciência nos libertou do perigo das explicações simplistas, posto que, como repete o nosso eminente professor, ao focar-me nas leis naturais, achei que conseguia simplificar um dos aspetos da criação. Vejo-me, Princesa, esmagado pela abundância científica, o rigor lógico, a química irrefutabilidade desta poderosa argumentação. Pelo que só me resta, como diria o francês, passar-me de comentários... Será melhor e mais esclarecedor ir continuando a reproduzir aqui alguns passos e pontos de apoio das convicções científicas do nosso professor:

 

   O que a ciência tem feito é recuar de forma experimental e teórica até às primeiras frações de segundo após o nascimento do Universo. Mas continuamos sem poder esclarecer nada sobre o que se passou imediatamente antes do início... Algumas pessoas fazem batota, ao dizer que houve uma flutuação quântica, e que o Universo explodiu espontaneamente. Mas isso já pressupõe a existência de algo, para poder haver uma flutuação quântica. Para mim é batota... Creio que a verdadeira questão que a ciência deve abordar é se de absolutamente nada - sem espaço, sem tempo - de absolutamente nada... O que temos realmente de dizer é: a partir de absolutamente nada, existe alguma forma de algo poder emergir?

 

   Mas, pergunto eu, pobre leigo que apenas sabe e pode interrogar, não haverá nestas declarações uma confusão de questões a meu ver bem distintas? Na verdade, uma coisa é seguir para montante as leis da natureza como quem sobe um rio até à nascente - neste caso para tentar entender os começos do Universo no tempo e no espaço - outra coisa é achar uma resposta à interrogação de Leibniz: O que é que faz que o mundo exista aqui e agora, o que é que o prende ao ser, e por que é que há algo em vez de nada?

 

   Quer-me parecer que tal confusão, no espírito de Atkins, resulta, por um lado, da sua oposição preconceituosa, visceral ("as minhas entranhas revolvem-se... e a minha cabeça segue o mesmo caminho das entranhas") à ideia de Deus ou, mais simplesmente, à de transcendência, e, por outro lado, de um alheamento, quiçá voluntarista, ou talvez apenas carente de estudo e informação adequada, do que são a filosofia e a teologia. Para alguém com mediana cultura, a afirmação de que A filosofia e a teologia são ambas formas corruptas de entender o mundo não tem pés nem cabeça. E a ignorância do que é qualquer delas, como exercício intelectual, manifesta-se noutras declarações do autor de divulgação científica, que chegam a ser confrangedoras. Comentá-las-ei, entre [ ], a par e passo. Repara nestas, Princesa de mim:

 

   Deixe-me considerar teologia e filosofia separadamente. Acho que a teologia se limita a fingir uma explicação ao decretar que existe um deus que criou tudo, e algumas pessoas ficam satisfeitas com essa explicação. Mas é totalmente vazia porque, em primeiro lugar, não existe qualquer prova da existência de um deus; e, em segundo lugar, como pode um deus criar coisas, como pode um deus criar o Universo. Essa perspetiva é demasiado fácil. Os teólogos apresentam respostas fáceis, enquanto os cientistas precisam de muito trabalho para compreender e explicar.

 

   [A teologia não pretende provar a existência de Deus, esta é, para qualquer teólogo, um dado da Revelação. Etimologicamente, teologia significa discurso ou tratado de (ou acerca de) Deus. É inteligência da fé (intellectus fidei). Por outras palavras, não há teologia sem revelação divina e fé nela. Creio que já Santo Anselmo falava em fides quaerens intellectum, que poderíamos traduzir quer por "a fé interrogando a inteligência", quer por "a fé em busca de inteligibilidade".

 

   A própria palavra teologia é, não só de etimologia grega, mas surge pela primeira vez  -  tanto quanto me recordo, já me falha por vezes a memória - na República de Platão, posta na boca de Sócrates, significando o tratado dos deuses pelos poetas... Terá sido Aristóteles a tirá-la do domínio da mitologia para a "racionalizar" (se assim me posso exprimir) e a pôr a caminho dos tratamentos que, posteriormente, o cristianismo lhe foi dando, ficando, todavia, sempre bem clara a sua função de esforço de inteligibilidade crescente da fé. Nas circunstâncias de tempos idos, foi incidentalmente "misturada" com o exercício filosófico, até pelo facto de este ser frequentemente desenvolvido por teólogos, ou vice versa. As célebres "provas" da existência de Deus, construídas por São Tomás de Aquino, devem surgir-nos nessa perspetiva, sem, contudo, nos fazerem esquecer que são um exercício racional destinado a sustentar a fé. Um cristão, um judeu, um muçulmano não acredita em Deus por lhe ter sido provada a sua existência, mas, tal como se lê nos Atos dos Apóstolos (17, 28), porque

 

   Em Deus encontra a vida, o movimento e o ser. Tal encontro não resulta de uma demonstração experimental ou racional, mas de uma descoberta ou revelação interior. A própria formulação monoteísta do Ser Deus escapa a qualquer esclarecimento: EU SOU AQUELE QUE É... E a confrontação com ele, mesmo podendo ser manifestada ou proclamada objectivamente, é sempre inalienável, pessoal e subjetiva. Por isso falamos em dar testemunho da fé, nunca em demonstrá-la.

 

   Repara, Princesa de mim, no que físicos, cientistas e filósofos hodiernos não hesitam em afirmar (cito Thierry Magnin, cientista nessa área e teólogo): A origem de "o que é", como tão bem mostra a física quântica, escapa precisamente ao científico. Do mesmo modo, o filósofo observará que o Universo que descreve poderia não existir, porque, em larga medida, o aleatório preside ao seu começo e à sua evolução. Ora o que assim é contingente não pode ter em si mesmo a sua causa ou razão de ser. ]

 

   Pensossinto que não devo deixar de reconhecer como, a dados passos desta minha carta, fui algo irónico, mesmo cáustico, com Peter Atkins em suas afirmações. Temperamentalmente, reajo assim de quando em vez, quiçá levado por uma certa irritação com que me aflige a sobranceria de certas pessoas cuja fúria militante afinal obnubila a clareza necessária ao diálogo. Para te deixar entender o que acabo de dizer, Princesa, não me vou embrulhar em explicações e desculpas, prefiro entregar-te dois trechos de Stephen Hawking, que eu apelido de "astrónomo do cosmos e da metafísica", ateu declarado, falecido em março deste ano:

 

 1. Numerosas pessoas, que não conhecem a ciência, recorrem às tranquilizadoras explicações religiosas... O meu trabalho não prova nem desmente a existência de Deus. Consiste, tão somente, em procurar uma maneira racional de compreender o Universo. [Este, para Hawking, é regido por leis acessíveis pela ciência, enquanto que as antigas narrativas da criação já não são nem pertinentes, nem credíveis. ]

2. Vivi coisas extraordinárias neste planeta, e simultaneamente viajei pelo Universo em pensamento, por meio do meu cérebro e das leis da física. Atingi os confins da galáxia, mergulhado num buraco negro e regressei às origens do tempo. Na Terra, tive altos e baixos, conheci o êxito e o sofrimento, em grande forma e deficiente. O meu maior privilégio foi contribuir para a nossa compreensão do Universo. Mas tal Universo seria muito vazio sem as pessoas que amo e me amam. Sem elas, todas aquelas maravilhas se esvairiam.

 

   Sobre este discurso nada tenho a dizer, além do profundo respeito e da comunhão humana que me inspira. Estamos muito próximos um do outro, ele ateu, eu crente. Ao viver a fé, deixo-a interrogar-me e também a interrogo. Como todos nós, seres humanos, nunca vi Deus. Mas acredito que ainda o hei de ver, e procuro fazer da minha vida um caminho de procura da visão final. Tal caminho só se percorre neste Universo, que seria muito vazio sem as pessoas que amo e me amam. Sem elas, todas as maravilhas se esvairiam. Para já, o rosto de Deus antevê-se no amor das pessoas. Este é a casa de Deus na Terra, onde todos temos altos e baixos, êxito e sofrimento.

 

   Mas, já que foi a entrevista a Peter Atkins - e a projeção que lhe foi dada em Portugal - o assunto desta carta, permite-me, Princesa de mim, que aqui transcreva mais umas das insignificâncias que ele proferiu:

 

   Mas a filosofia é outra coisa. Está algures entre a teologia e a ciência. [Isto até parece a tese comtiana dos três estádios, mas sem perspetiva histórica...] A diferença entre filósofos e cientistas é que os filósofos são pessimistas, ao passo que os cientistas são otimistas. Os filósofos dizem: "Nunca compreenderás, está para lá da compreensão humana" Enquanto que os cientistas dizem: "Espera um pouco, havemos de lá chegar."...   ... A ciência e a religião são totalmente incompatíveis. Basicamente, a religião diz: "O teu cérebro é demasiado insignificante para compreender, nunca compreenderás. Há apenas a possibilidade de poderes perceber depois de morreres." Eu prefiro o conhecimento deste lado do túmulo.

 

   O entrevistador sendo o doutor Carlos Fiolhais, professor de Física na Universidade de Coimbra - e que, em meu entender, tem capacidade para trazer ao Público algo muito mais consistente do que as banalidades de Atkins - arrisca, ainda assim, na sequência dessa declaração sobre ciência e religião, uma pergunta: «Mas há exemplos em contrário. Por exemplo, no século passado, o padre católico Georges Lemaître investigou cosmologia, tendo sido ele a propor a ideia de Big Bang. Acreditava em Deus, ao mesmo tempo que produzia trabalho científico de qualidade.» Resposta: Sem dúvida. Isso significa que estava a produzir trabalho científico de qualidade, mas não significa que a teologia dele estivesse correta.

 

   Ora aí está! Eis a chave de oiro para encerrar esta carta: além de Química, e de leis naturais (terá ele consultado um filósofo epistemólogo para saber a que chamamos leis naturais?), o professor Atkins sabe dizer-nos, sem hesitação, quando é que qualquer teologia está correta ou errada. E ao defunto auto da fé substitui ele o auto da química. Brilhante!  

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira