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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR


Éric Rohmer, a arquitetura e o urbanismo moderno.


O artigo Between Classicism and Modernity de Marion Schmid (2015) explora o olhar crítico de Éric Rohmer sobre as formas e soluções arquitetónicas e urbanas, estáticas e encenadas, da modernidade. Para Schmid, o cinema de Rohmer oferece sempre uma reflexão acerca da relação inerente e necessária entre o ambiente construído e a experiência vivida.


Schmid objetiva no seu artigo, através dos documentários e dos filmes, apreender a complexidade da relação de Rohmer com a arquitetura e o urbanismo moderno. O propósito de Schmid é o de elucidar qual a relação entre a teoria, o documentário e a ficção e o pensamento de Rohmer acerca da mudança que as cidades sofreram ao longo do último século. Por isso revela que a atitude ambivalente de Rohmer, em relação à arquitetura moderna, se deve à tensão subjacente entre o classicismo e a modernidade e que acaba por caracterizar toda a reflexão e prática criativa do realizador.


Schmid escreve que Rohmer acredita que o cinema, ao contrário das outras artes, contém em si uma relação intrínseca e privilegiada com a realidade. Enquanto que as outras formas de arte, em meados do século XX, se moviam progressivamente em direção à abstração e se tornavam cada vez mais auto-reflexivas, o cinema foi e é o único meio capaz de apreender a vida, em tudo o que habitualmente fica retido ao ser capturada pelas outras artes. Para Schmid, o cinema não reprime a aspiração Rohmeriana de beleza e verdade. Já as outras artes, ao afastarem-se da natureza, abrem a possibilidade ao cinema de ter um papel redentor, que salva e que liberta - porque o filme pode ter a capacidade de voltar a ligar os espectadores às dimensões espirituais e ontológicas da existência humana.


Schmid revela que Rohmer acredita que a arquitetura é a arte que mais se aproxima do cinema. Talvez por isso se justifique o acentuado interesse de Rohmer pelas questões urbanas e da arquitetura, em muito do seu trabalho iniciado, em meados dos anos sessenta do século passado. Nomeadamente, os pequenos filmes realizados para a televisão francesa, permitiram a Rohmer o ideal campo experimental onde temas, ideias e técnicas foram testados num contexto mais espontâneo.


Embora Rohmer aceite o potencial da arquitetura moderna, na medida em que tenta criar um mundo à medida do homem livre, Rohmer assume-se também cauteloso, sobretudo no que diz respeito ao isolamento e à perda de experiência genuína que as habitações urbanas modernas podem apresentar.


Métamorphoses du paysage
(1964) concretiza a batalha, que Rohmer travava, entre o clássico e o moderno. Este documentário pedagógico traça, ambiciosamente, a transformação radical que a paisagem sofreu desde o despertar da Revolução Industrial. Para Schmid, Rohmer tenta aqui sensibilizar a audiência para a beleza difícil da arquitetura industrial, sem se indicar claramente uma posição contra ou a favor. Este filme é uma solicitação para se encontrar, nesta transformação, a ocasião para uma reflexão mais profunda e poética. Abre-se, assim, a possibilidade de explorar as capacidades subjetivas e filosóficas do cinema através de um tema desafiante: ‘the viscous, grimy underbelly of modernity.’ (Schmid 2015, 5)


Num mundo governado por relações de causa e efeito, onde o resultado é mais valorizado do que o processo, Rohmer argumenta que a poesia abdicou do uso do seu domínio privilegiado, a linguagem figurativa - em particular a metáfora. E por isso o cinema tornou-se no único refúgio capaz de salvar aquilo que é mais real, verdadeiro e mais poético. Métamorphoses du paysage desafia a sensibilidade estética do espectador, abrindo os seus olhos para a beleza paradoxal das paisagens industriais, que à primeira vista podem parecer sem forma, inacabadas ou caóticas.


Entretiens sur le béton, realizado em 1969, é composto por entrevistas ao arquiteto Claude Parent e ao teórico urbanista Paul Virilio, onde se avaliam as possibilidades expressivas do betão armado, contrapondo a generalizada hostilidade pública em relação à arquitetura brutalista. O filme televisivo Le Celluloïd et le Marbre (1965) explora a perspetiva inversa, onde praticantes das outras artes são aqui chamados a fornecer a sua perspetiva acerca do cinema, através de uma análise que relaciona este meio com a sua capacidade em responder às necessidades do cidadão moderno.


Finalmente, é na série de quatro documentários, realizados para a televisão, que Rohmer traça um retrato complexo das Villes Nouvelles - atendendo a questões do urbanismo e da arquitetura moderna e que efeitos têm sobre os seus habitantes. É conhecido o interesse de Rohmer pela preservação e manutenção de Paris histórico sem construções novas, nem destruições. Daí a relevância das Villes Nouvelles, porque representam a oportunidade de uma ‘Paris paralela’, que possibilita o descongestionamento e que mantém intocável e central a cidade histórica.


Rohmer deseja intensamente reproduzir a realidade tal como é, porque é através do verdadeiro que se revela o poético e a dimensão que nos transcende. Um filme para Rohmer deve salientar sempre a relação direta entre o ser humano e o espaço construído, entre a arquitetura e a vida.

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

De 18 a 24 de fevereiro de 2019.

 

 

«Património de Origem Portuguesa no Mundo – Arquitetura e Urbanismo» sob direção de José Mattoso (F. C. Gulbenkian, 2010-2011) abrange três volumes e Índices e deu origem ao Portal HPIP – Património de Influência Portuguesa, que é um projeto único, indispensável para os estudiosos do tema, como agora se recorda.

 

 

UMA DESCOBERTA FUNDAMENTAL
A recente descoberta de uma capela quinhentista na Cidade Velha, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, constitui uma nova demonstração (se tal não fosse já claro) da importância da inclusão da Ribeira Grande na lista do Património mundial da UNESCO, que tive o gosto de apoiar desde o início. Trata-se de um exemplo, entre outros, de como o conhecimento do património artístico e arqueológico merece especial atenção e cuidado. Neste momento, a comunidade científica acompanha os trabalhos que estão a ser realizados no local, no âmbito do projeto “Concha” e que permitirão devolver ao público um marco de grande valia no património cultural da humanidade. De facto, no final do presente ano, poderemos visitar o templo devidamente restaurado e próximo da sua versão original, em condições de segurança e qualidade. E devemos insistir na compreensão do Património Cultural, não como realidade do passado ou como marca de uma qualquer identidade, ainda que multiforme, mas como um exemplo de um valor comum, partilhado por diversas culturas e comunidades. E não devo esquecer a reflexão dinâmica desenvolvida na UNESCO e no Conselho da Europa (designadamente na Convenção de Faro sobre o valor do património cultural na sociedade contemporânea - 2005) numa perspetiva aberta e crítica, e não fechada e retrospetiva, a propósito do património e da cultura. As lições do recentemente terminado Ano Europeu do Património Cultural - 2018 apontam nesse sentido, com especial ênfase para a mobilização dos cidadãos para a defesa do património como realidade comum, como realidade inclusiva e não exclusiva.          

                                             

UM PROJETO NOTÁVEL
Serve esta referência para lembrar a importância do projeto “Património de Influência Portuguesa – HPIP”, lançado pela Fundação Gulbenkian em 2012, na sequência do inventário sistemático do património histórico de origem portuguesa, arquitetura e urbanismo, lançado por Emílio Rui Vilar, que deu origem a três volumes em papel e a um de índices, a que sucede o portal, sob a direção de José Mattoso (2007) - como uma base de informação disponível não só para a comunidade científica, mas também para os cidadãos do mundo. Trata-se de um instrumento de trabalho, para quem estuda ou deseja conhecer as repercussões na arte e na arquitetura da presença portuguesa no mundo. E assim constituiu-se “um objeto de estudo, um corpus, como conjunto significativo do contexto em que os seus diversos elementos foram criados, dos sinais que os caracterizam, na sua singularidade ou na sua categorização, das alterações que sofreram, enfim, dos aspetos que justificam o seu valor patrimonial”, urgindo não “confundir as épocas e as situações, e não projetar sobre o passado fenómenos da nossa época”. Falando da obra publicada em 2010 e 2011, temos na Ásia e Oceania o património do Estado da Índia e o que dependeu do Padroado Português do Oriente, ainda que fora do subcontinente indiano, a que se soma Macau e Timor - estão em causa essencialmente os séculos XVI e XVII, sem esquecer o prolongamento do Padroado e o prolongamento das reminiscências da influência portuguesa. Na América do Sul, temos o Brasil e a Colónia do Sacramento (Uruguai) com uma presença fundadora nas construções dos séculos XVII e XVIII, baseadas nos modelos metropolitanos e ligadas sucessivamente aos ciclos do açúcar, do ouro e dos diamantes, com sistemas administrativos análogos aos da metrópole, ainda marcados pela exploração de mão-de-obra escrava, pelas guerras com holandeses e franceses, pela presença da Corte no Rio de Janeiro, pelo Reino Unido e pela independência. Já em África, Mar Vermelho e Golfo Pérsico encontramos vestígios de entrepostos e fortalezas no litoral, criados para servirem a carreira da Índia e a captação da mão-de-obra escrava. A presença no interior é tardia, ocorrendo a partir do século XIX, com a ocupação militar dos vales dos rios e com a criação de estruturas para exploração de matérias-primas, à semelhança do que acontecia na colonização europeia.

 

UMA PERSISTENTE AÇÃO
Esta publicação vem na sequência de uma ação anterior apoiada pela Fundação Gulbenkian, de recuperação em edifícios e monumentos, entre as quais se contaram o Forte do Príncipe da Beira, em Rondónia (Brasil), a Casa de Nacarelo, na Colónia do Sacramento, a Fortaleza de Arzila (Marrocos), a catedral portuguesa de Safim (Marrocos), o Forte de São João Batista de Ajudá (Benim), o Forte de Jesus, em Mombaça (Quénia), o Forte de Quíloa (Tanzânia), as fortalezas de Ormuz e Qeshm (Irão), a Igreja do Rosário, em Daca (Bangladesh), a Feitoria Portuguesa de Ayutthaya (Tailândia) ou a Igreja de São Paulo, em Malaca (Malásia), para além de intervenções para preservar bens culturais valiosos em museus como os de Velha Goa e de Cochim, ou da inventariação e classificação de arquivos. Entendeu, porém, a Fundação dar prioridade à criação de um instrumento de informação traduzido na feitura de um portal público interativo assente numa base de dados georreferenciada. O portal teve como acervo inicial o conteúdo dos livros, mas logrou suscitar o contributo de quantos propuserem acrescentar ou corrigir conteúdos. Daí a importância do protocolo de colaboração entre a FCG e as Universidades de Coimbra, de Lisboa, de Évora e Nova de Lisboa – com o objetivo de estabelecer as condições de cooperação com vista à produção e transferência de propriedade e gestão do portal interativo. As Universidades de Coimbra e de Évora asseguraram até ao presente a coordenação do projeto, e o Conselho Executivo de gestão do HPIP decidiu assegurar a presença de um representante da FCG no Conselho Executivo, mantendo a propriedade e gestão do portal a cargo das Universidades. O projeto HPIP não tem equivalente, dada a sua natureza específica. Não se trata, porém, de fazer mais do que dar uma informação rigorosa e objetiva, não ditada por qualquer razão identitária ou unilateral. É a noção de salvaguarda de um património comum que está em causa. Daí a necessidade de uma informação objetiva, que, ela mesma, permita aos investigadores desenvolverem os seus estudos e tirarem as suas conclusões. A qualidade da historiografia depende do rigor da informação disponível, do mesmo modo que o património, a herança e a memória se devem constituir e consolidar a partir de inventários exaustivos e fundamentados, de estudos críticos respeitantes a fontes criteriosamente escolhidas, credíveis e de confiança. E relembrando o papel desempenhado pelos principais instrumentos internacionais, no âmbito das Nações Unidas, da UNESCO ou do Conselho da Europa, devemos considerar que o património cultural deve tornar-se um fator de paz e de cooperação internacional. O património cultural não é de uma região, de um país ou de uma cultura – é uma manifestação de criatividade e de valor – que deve estar ao serviço da humanidade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

a força do ato criador por ana ruepp.jpg

 

 

   O elogio da rua, no plano de Berlage.

 
Em 1904, Hendrik Petrus Berlage (1856-1934) foi encarregue do projeto para o plano de ampliação de Amesterdão-Sul.
 
No início do século XX, Amesterdão era um centro europeu de comércio e de actividade bancária e por isso a cidade estava sobrepovoada. As autoridades públicas passaram, então a tratar do planeamento urbano como assunto de grande importância, de modo a introduzir uma visão de totalidade no espaço da cidade, que necessitava de se expandir. 
 
A rua é o ponto chave do plano de Berlage. A rua é o elemento urbano que mais expressa com maior clareza o conceito de vida em coletividade. O valor social urbano de cada uma das partes (jardins, ruas, praças, habitações, pátios interiores, interiores de quarteirão, equipamentos e serviços comunitários) funde-se de modo a criar uma visão unificada.
 
A rua é capaz de reconhecer, não só as necessidades físicas dos habitantes (de lazer e de descanso) mas também reconhecer o impulso em formar comunidades e assim assumir, nesse acto, um símbolo de vida. 
 
A rua, é para Berlage uma consequência necessária da disposição dos edifícios ao longo da sua extensão e um elemento capaz de criar perspectivas. Em todo o plano as características do espaço da rua, em Amesterdão-Sul, variam conforme a sua largura. As ruas mais largas têm zonas ajardinadas e alamedas arborizadas nas laterais; as ruas mais estreitas são simplesmente alinhadas por árvores e pela pavimentação. 
 
Como unidade de edificação fundamental, Berlage estabelece um quarteirão de 100 a 200 m de comprimento e 50 m de largura, com construção marginal de quatro andares e jardim interno, a ser tratado como unidade arquitectónica.
 
Dada a dimensão dos quarteirões, as ruas são espaçosas e algumas possibilitam até o trânsito rápido em pista central e trânsito lento de serviço para as casas em duas pistas laterais. A escolha do quarteirão e a unidade dos materiais manifesta um desejo formal de instituir um certo controlo arquitectónico num ambiente urbano vasto - algumas fachadas unificam um só quarteirão.
 
Berlage com o seu plano mostra a suprema importância da cultura da cidade que nega a tendência da cidade-jardim inglesa. Berlage pretendia acima de tudo continuidade, ampliando a cidade antiga sem interrupções no seu traçado total. O seu projecto é um elogio à cidade que alia, através da rua, arquitectura e urbanismo.
 
   Ana Ruepp