A FORÇA DO ATO CRIADOR
Of Other Spaces: Utopias and Heterotopias de Michel Foucault.
Michel Foucault escreve, no texto Of Other Spaces: Utopias and Heteropias, que vivemos na época do espaço. Mas também na época da simultaneidade, da justaposição, do longe e do perto, do junto e do disperso. Para Foucault, o espaço parece dominar o horizonte das nossas preocupações. A noção de espaço tem uma longa história no mundo ocidental.
Segundo Foucault, a ideia de situar no espaço, substituiu o conceito de infinitude, de movimento constante e de abertura de Galileo, que veio, por sua vez, substituir o conceito medieval de posição estática. É a capacidade de situar que define as relações de proximidade entre os vários pontos ou os vários elementos no espaço. Situar ou localizar diz respeito à demografia. Foucault acredita que a forma do espaço é a forma das relações entre sítios. Para Foucault, ainda existem espaços sacralizados. E talvez, por isso, a vida das pessoas seja governada por um sem número de oposições que continuam invioláveis e intransponíveis - oposições entre o espaço privado e o espaço público; entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazer e o espaço do trabalho. Foucault acredita que não vivemos num espaço homogéneo, nem vazio. Pelo contrário, vivemos num espaço cheio e repleto de contradições, de percepções primárias, de sonhos e de memórias. Sim, existe o espaço da luz, da transparência, o espaço etéreo, e o espaço que se vê do cimo das montanhas, mas também há o espaço escuro, o espaço brusco, o agitado e o violento e o espaço que fica por baixo e por entre. Existe o espaço que flui como água e o espaço fixo, estagnado e congelado como pedra. Mas, para Foucault, estas considerações dizem sobretudo respeito ao espaço interior. E Foucault deseja, sobretudo, tratar do espaço exterior: “The space in which we live, which draws us out of ourselves, in which the erosion of our lives, our time in our history occurs, the space that claws and gnaws us, is also, in itself a heterogeneous space. In other words, we do not live in a kind of void, inside of which we could place individuals and things. We do not live inside a void that could be coloured with diverse shades of light, we live inside a set of relations that delineates sites which are irreducible to one another and absolutely not superimposable on one another.” (Foucault, 1984)
Vivemos entre espaços, vivemos numa intrincada rede de relações e entre sítios - transportes, ruas, comboios, cafés, cinemas, praias, casas e quartos.
Foucault interessa-se pelos espaços que têm a propriedade de estar em relação com todos os outros espaços, mas que fazem suspeitar, neutralizar ou inventar um novo conjunto de relações, como se de um espelho ou reflexão se tratasse. Esses espaços - designados por Foucault de utopias e heterotopias - estão ligados a todos os outros espaços mas contradizem-nos constantemente.
Foucault explica que, dentro de um conceito de espaço, utopias são espaços sem uma localização real. São sítios que, através de uma analogia direta, aperfeiçoada ou invertida, têm uma relação geral com o espaço real da sociedade em que vivemos. Heterotopias são espaços que existem em todas as culturas e em todas as civilizações. São espaços reais, que existem materialmente e que são formados dentro da própria sociedade. Apresentam-se como contra espaços. Fazem com que todos os espaços reais, que podem ser encontrados dentro de uma cultura, sejam representados ou contestados ou ainda invertidos. São espaços fora de todos os espaços possíveis, mas apresentam uma localização precisa na realidade. Estes espaços são absolutamente diferentes de todos os sítios e lugares a que se referem, reflectem e falam. O espelho é em simultâneo uma utopia e uma heterotopia, porque faz com que o espaço que o sujeito ocupa, no momento em que olha para si próprio, seja simultaneamente real e irreal. Sendo assim, para Foucault, heterotopias podem ser: espaços privilegiados, sagrados ou proibidos, reservados a pessoas que se apresentam em estado de crise ou desvio (colégios internos, campos para o serviço militar, destinos para a lua-de-mel, lares para idosos, hospitais psiquiátricos e prisões); cemitérios são lugares ligado a todos os seres e a todos os espaços de uma sociedade; teatros, cinemas e sobretudo jardins são espaços capazes de sobrepor, num único espaço real, vários espaços incompatíveis entre si (por exemplo, o jardim da Pérsia era um espaço sagrado capaz de juntar, dentro de um só rectângulo, quatro partes que representavam as quatro partes do mundo); museus e bibliotecas são espaços imóveis que acumulam tempo indefinidamente e contém todas as formas, todos os gostos e todas as ideias; as feiras são espaços cujo tempo é fluido, transitório, finito e precário; espaços que não são de completa e livre acessibilidade, para aí se entrar é necessário submeter-se a ritos e a purificações; espaços de ilusão que expõem sítios reais onde a vida humana está dividida e é ainda mais ilusória; e espaços de compensação, que pretendem criar um outro espaço real, ainda mais perfeito, mais meticuloso e mais ordenado.
“...the boat is a floating piece of space, a place without a place that exists by itself, that is closed in on itself and at the same time is given over to the infinity of the sea (...) The ship is the heterotopia par excellence.” (Foucault, 1984)
Ana Ruepp