Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“Vírus” de André Ruivo (2022) com prefácio de João Pinharanda, é uma leitura ou aventura gráfica dos tempos a que fomos condenados por esta nova peste designada como COVID-19, ou mais simplesmente como Corona-Vírus.
UMA TRADIÇÃO NACIONAL
Comecemos pelo princípio. O livro de hoje é uma crónica gráfica. «A tradição nacional desta linha de fino humor é forte – vem de Bordalo a Carlos Botelho, de Sam a Luís Afonso, por exemplo. No caso de André Ruivo (como no de Bordalo) o leve desvio / deslocação do ponto de vista que provoca a situação humorística não é apenas detetável no discurso escrito mas é também visualmente acentuado pelas perspetivas urbanas, as vistas de janela, as distorções anatómicas». Quem o diz é João Pinharanda, compreendendo que, mais de dois anos depois do início da pandemia, e quando a espada de Dâmocles continua sobre a nossa cabeça, é necessário iniciarmos a tarefa de tirar conclusões sobre um estranho tempo em que nos vimos envolvidos e que, por certo, voltará a repetir-se. Estamos longe de estar libertos de confinamentos, quarentenas, distâncias, máscaras etc. No fundo, fomos nós que desarranjámos a máquina do mundo. A capa do livro é bastante clara, ao pôr-nos perante um rosto velado que esconde o seu sorriso, ou será riso ou será agastamento e raiva? É estranho que não venhamos apresentar o essencial deste livro com episódios caricatos sem o desenho inicial de uma boca a sorrir-se. Afinal, quando lemos o velho “Album das Glórias”, lá encontrámos Rialto, Ribaixo, Ripouco… Aqui, nem muito nem pouco, nem assim-assim, apenas um boneco enigmático, sem sombra de riso, tapado por uma máscara. Tão só um olhar espantado, e tudo o mais nos vai intrigar, quando começamos a folhear o livro.
O QUE AINDA FALTA
«Falta talvez um desenho nesta série. E poderia ser mais um auto-retrato, onde se visse o autor injetando grandes doses de humor através das finas agulhas dos seus desenhos. Na realidade cada desenho deste livro é uma dessas doses. A toma não é intravenosa mas ocular. As doses administradas pelo artista parecem homeopáticas, tal é a leveza de cada cartoon, mas cada um deles é um poderoso projétil lançado pelo farmacêutico Ruivo, que é cientista sem diploma, e que não usa as pessoas como cobaias mas como amostras do tecido social, como casos de estudo». É ainda João Pinharanda, o crítico contaminado (pelo vírus ou pelo humor?), quem insiste na caracterização deste contributo vacinal, uma vez que ao vermo-nos tantas vezes ao espelho nesta reunião de comentários ilustrados percebemos que o nosso lado picaresco é dos mais importantes que devemos cultivar. Carlos Botelho dava os seus “Ecos da Semana” com leituras quotidianas desenhadas de estórias que todos os dias a cidade protagoniza. Leitão de Barros fazia, assim, os seus “Corvos”. E em cada apontamento, em cada desenho, encontramos oportunidade para muitas lembranças e para uma dose apreciável de paciência e de sentido de ridículo, que tantas vezes esquecemos, por nos levarmos demasiado a sério. Démos vários exemplos, clássicos e para levar muito a sério, mas o mais importante é compreendermos que o quotidiano dá-nos mil oportunidades para fazermos da realidade uma verdadeira oportunidade para nos desmancharmos a rir. Poderíamos ainda lembrar Stuart de Carvalhais, Almada Negreiros, Emmérico Nunes, Francisco Valença, António Antunes, João Fazenda… Mas atenhamo-nos a este livro e aos seus episódios. Nós, os leitores, somos contaminados gostosamente com este vírus, que André Ruivo nos transmite, por transmissão ou como vacina com várias doses de reforço. E, ao mesmo tempo, não só contraímos este vírus, certamente benigno, mas também ganhamos o saudável sentido de nos sentirmos desprotegidos e ridículos, cientes de que este humor funciona como verdadeiro anti-corpo, homenagem ao Dr. Jenner e à sua fantástica capacidade de compreender como uma pobre vaca (com as mulheres que a ordenhavam) se tornou salvadora de muitas vidas pela inoculação vacinal do vírus. Também André Ruivo desejou. A janela permitia fazer amigos. E dentro de casa, todos fomos percebendo, que não foi apenas a família que foi confinada, mas também uma grande Arca de Noé de pequenos bichos, como baratas e percevejos, pulgas e tudo o imaginável, que povoam os cantos das nossas casas e de que tardiamente nos apercemos. Eis um dos efeitos do confinamento. Liberdade para respirar o ar da cidade, para transportar os alimentos, para sair a passear o animal de companhia, percebendo que nós é que somos a sua companhia, e que a bicharada torna-se pretexto para podermos pôr um pé na rua. O nariz de fora merece especial atenção, pois de nada serve. É como trazer a máscara na barba. É um adereço inútil. E os milhares de especialistas merecem atenção, não pelo que nada dizem, mas por terem aparecido como gafanhotos com estantes psicadélicas nas suas costas. Alguém pergunta policialmente: “E o senhor que faz na rua?” – Eu? Deve ser confusão… - Hoje fui à Rua! Foi cá uma emoção! – “Não se fechem demasiado”. “Que dia é hoje?” – Estou completamente perdido. “E o que é abraçarmo-nos a nós próprios?” – Mas quem mete medo ao vírus? E o Doutor pergunta: Onde lhe dói? – “Nas orelhas Senhor Doutor”. E que máscara usa? A do Carnaval ou a do vírus? Mas o Carnaval já passou há muito. Os diálogos sucedem-se, cada um mais estranho do que outro… E as estatísticas falsas e as datas verdadeiras misturam-se como dados imaginários. Qual a diferença entre teletrabalho e televida? Ou será vice-versa? André Ruivo explica exaustivamente.
Se se pensar que os homens são os seus próprios vírus, a sua própria pandemia, a razão do seu confinar, será tudo pela similitude das suas interdependências, não obstante fecharem as fronteiras uns aos outros para riso dos vírus que transportam.
E quais os sintomas de tudo isto? Alguém contatou com um positivo? Mas afinal não somos todos positivos? E assintomáticos? Não estamos todos a correr os riscos hora a hora de várias mortes? A social, a psicológica, a que parou a economia? A que nos enterra?
Melhor mesmo será que todos fiquem em casa e bem-comportados antes que o vírus anuncie, através dos homens que o albergam, que em casa, nada existe porque existe tudo igual.
É certo que o nosso vírus não descuidou o tirar-nos a liberdade. Ninguém o viu solto por aí, e foi-lhe acessível a façanha.
E tortura e mata e só quando os homens, e neles, o vírus, estão em casa, então os pássaros cantam e o céu é mais azul.
De uma boa quarentena precisa-se de quando em vez. Mas credo! gritam os vírus aos homens: não acreditem nos pássaros ou nos peixes que surgem! Trata-se apenas de uma faixa deles, é o que resta.
A grande vantagem é que o ADN em homens e vírus é o mesmo e todo ele um único poder.
A biopolítica é opaca e o controlo não é democrático, aceitando-se que assim seja.
Homens! – grita o vírus - saibam criar rutura à vossa nova religião! Quero testemunhar! Sou a vossa eterna companhia. Sou ateu.
Ou preferem continuar a encomendar os almoços, a fazer compras on line, a encharquem-se de notícias minhas, a autoimpedirem-se de estar com os amigos, a fazer ginástica em casa que o ar faz mal, mesmo que eu esteja no vosso suor…xiu…que ninguém sabe que os que não me têm, sempre tiveram.
Mas façam muitos testes serológicos se desconhecem que as subidas e as descidas se assemelham.
Enfim, nos lares já se colocaram os velhos que nunca souberam para onde iam. Mas recomenda-se: afastem-se o suficiente dos destinos solidários pois trazem danos colaterais e sequelas ao nosso modo tradicional de ser agora e no futuro.
Não se recordem se na base da pirâmide estão os que muito sofrem com as encapotadas pandemias de sempre. É assim mesmo!
No entanto, ouvem-se cantares ao vírus pelos homens dos decretos, e fingem que o que nos fulmina a todos é passageiro, e eles perdigueiros competentes, admitem primeiro, socorros às coisas ditas sérias, e depois aos outros, e no muito ao fundo se incluem, talvez os artistas…e, claro os poetas.
Assim se chegou ao hoje quando as boas-noites se dão a ninguém.
Apenas se ouve um eco que afirma que haverá uma existência sem vírus porque tudo, tudo será virtual.
Os portadores do vírus já não serão humanos, o próprio vírus não se assume.
Mas, por enquanto todos querem voltar ao antigamente!
Aí sim! 42 famílias têm tanto quanto metade da mais pobre população mundial.
Quem não quer voltar a este oxigénio?
Olhei para a televisão e de novo o registo de que se aceitou que a democracia não fosse a grande força da incrível capacidade de vivermos juntos.
Não se aceitou que a democracia engloba a não entrega de liberdades, a não desflorestação, os consensos, o não matar o que nos dá vida, o não secar das águas, o não envio das imunidades por cunhas, sem que por detrás das máscaras se tivesse de gritar muito improvavelmente:
Uma vacina para o mundo!
Deus! que as acumulações de forças dos governos não sejam do poder pelo poder, reforçando-se o monstro face à solicitude com a qual lhes são entregues dados privados em todas as vagas.
Antes sim, os governos devem governar como desejam os que neles votaram sem apelo à solta da delegação de poderes.
De recordar igualmente que a marcha da democracia só tem caminho se ninguém aceitar a rota da pandemia fiscal.
Não continuemos a tratar os sobreviventes como os mais frágeis, bem basta que por poder consentido, eles suportam o cerco da minada doença da fiscalidade que, não obstante o sofrer que inflige, nunca reduziu as desigualdades, e a impunidade desta doença é tão despudorada que sempre aos mesmos é exigido, o esforço de recuperar as finanças públicas.
Enfim, se se pensar que os homens são os seus próprios vírus, a sua própria pandemia, a razão do seu confinar, e que tudo assenta nas suas interdependências, não obstante fecharem as fronteiras uns aos outros para riso dos vírus que transportam, talvez se entenda que a crise é também a da oferta e da procura e é uma crise estrutural, e que as diferenças salariais são promíscuas e sendo as medidas repetitivas, não estamos de todo no bom caminho.
Também um dia, um dia o amor empobreceu, lá onde o seu sentir fraquejava já mesmo no poder de recobro.
Uma vacina para o mundo é tão só o mesmo que um dia da ira dos seres de boa vontade!
A Guerra e Paz publica de Bernard-Henry Lévy“Este Vírus que nos Enlouquece” (2020), que constitui uma oportuna reflexão sobre um tema atual e profundamente perturbador, que deve ser refletido, para além dos lugares comuns.
QUE CONFINAMENTO? Muito se tem dito sobre o “confinamento” e sobre as medidas excecionais de preservação da saúde pública perante a estranha pandemia que nos assalta. Hoje sabemos, que além das mortes ditadas pelo vírus, houve muitos outros efeitos que sacrificaram vidas humanas, como a solidão, a violência doméstica, o isolamento e o medo – e, infelizmente ainda iremos ter no futuro mais ou menos próximo outros efeitos negativos. Veja-se o tema da escola e da educação, e compreenda-se que a distância é exatamente o contrário do que se pretende na aprendizagem. Teremos, afinal, de regressar rapidamente à socialização educativa. Como há pouco disse: «Se queremos melhor democracia, temos de dar tempo ao tempo, para que a reflexão não seja substituída pela manipulação. É verdade que o ensino, no seu conjunto, pode sair da pandemia mais preparado para aproveitar as tecnologias e as novas correntes de aprendizagem, mas temos de cuidar dos que não podem ser abandonados, favorecendo a criatividade e a cooperação pessoal. No dilema saúde / economia, o valor fundamental é o da vida, da existência, da liberdade, da igualdade e da fraternidade… O capital social e a confiança obrigam ao que Adela Cortina designa como “amizade cívica” (El Pais, 16.5.2020). Só com esta estaremos mais preparados para afrontar próximas epidemias e ameaças de destruição da humanidade…». No livro de BHL todos os alertas são dados. O ambiente de confinamento é malsão e não pode ser aceite de forma passiva ou indiferente. Não esqueçamos que o “confinamento” italiano foi uma palavra mussoliniana. Confinavam-se as vozes críticas e a oposição para criar bolhas autossuficientes em ilhas ou lugares escolhidos para evitar que as ideias perigosas se espalhassem. Eis por que o filósofo considera indispensável não tornar esse um método normal. Mas há o risco para a vida das pessoas em virtude da presença do vírus. É verdade. Importa adotar soluções inteligentes que nos permitam lidar com o perigo e controlar o medo. Temos de formar crianças conscientes de que não irão viver num mundo assético. Têm de estar preparadas. Temos de regressar à lealdade do aperto de mão como sinal de confiança mútua. Não se esqueça que esse hábito nasceu para dizer que não há armas e que podemos estar seguros uns com os outros. E assim as pessoas mais lúcidas têm de falar, dando confiança e delineando caminhos que preservem a autonomia e a responsabilidade, a segurança e a amizade. Importa dizer: a pandemia não terminou, mas está a ser controlada. Visa-se reduzir efetivamente uma segunda vaga, havendo para tal capacidade médica e hospitalar. Importa, pois, substituir o discurso do medo, pela racionalidade e pela criação de condições para que as máscaras, a higiene das mãos e as distâncias prudentes reduzam a transmissão da doença. Dar sinais de que não há epidemia é criminoso, como é absurdo criar um ambiente de culpa e eleger bodes expiatórios. Se há quem diga que estamos numa boa ocasião para o combate da globalização e do capitalismo, estamos a assumir a mesma atitude medieval contra as grandes epidemias, como se uma qualquer providência estivesse por trás de uma maldição.
UM CAMINHO PARA DIANTE… Se o ritmo da descoberta dos tratamentos e das vacinas pode ser mais rápido e resultar da cooperação internacional, tal deve-se à globalização, não tenhamos dúvidas… Aproveitar a morte e o drama humano para defender uma agenda ideológica é inaceitável. Temos de romper com a tentação de tirar partido de um desastre. Qual a atitude inteligente? Importa viver com mais sobriedade, como nos ensinou a última crise financeira, devemos consumir menos, racionalizar o uso dos transportes, no entanto a frugalidade e a proteção do meio ambiente organizam-se, não se decretam. O experimentalismo social e um novo malthusianismo limitam a cidadania e a liberdade. Não há contradição entre a saúde e a economia. Temos de evitar que a vida destrua a vida. Se pararmos a economia e se não definirmos uma estratégia de melhor utilização dos recursos, teremos mais desemprego, mais fome, mais desigualdade e menos desenvolvimento. Os cientistas não são os novos oráculos de Delfos, são importantes agentes na estratégia humana, mas caminham, como nós, no nevoeiro. Importa mobilizar a sociedade toda. Urge haver partilha de responsabilidades. Importa evitar o abuso de autoridade, onde quer que ele se manifeste. E o certo é que a manipulação do medo leva a pôr em causa a autonomia e a liberdade. O trabalho a distância pode ser bom se houver melhor conciliação familiar, melhor utilização do tempo na vida das pessoas, mas é negativo se favorecer a solidão, o tédio e se levar à incompreensão das fronteiras entre o público e o privado ou à espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões.
UMA METÁFORA PERIGOSA Diga-se ainda que a metáfora da guerra é perigosa. Há um vírus, há uma doença, não há uma guerra. Ao contrário do combate do tráfico da droga ou da existência de um inimigo externo, o vírus não tem uma intenção, nem uma vontade. É verdade que há medo. Temos, assim, de saber lidar com ele. Não podemos deixar que os poderes do Estado e da economia ocupem o espaço da cidadania e dos direitos humanos. Não devemos deixar que o medo se torne pânico, limitando a inteligência e a vida humana. Nesse sentido, BHL faz nesta obra um discurso contra a servidão voluntária. A cidadania e a democracia têm, deste modo, de se aliar contra a tomada dos espaços públicos pelos Estados e pelas grandes redes como Google, Amazon, Facebook e Apple… O “Big Brother watching us” tem de ser prevenido. A proteção dos dados pessoais não pode tornar-se uma burocracia inútil e opressiva. Como se mede a liberdade? Na medida em que protegermos a vida privada ou o segredo de que somos detentores. Haverá outras epidemias depois desta, e não poderemos deixar que segmentos da democracia se percam. Por exemplo, espiritualidade e higienismo não podem confundir-se… O distanciamento social preventivo não deve ser sinónimo de fragmentação social. O distanciamento que gere indiferença e torne as pessoas abstrações põe em causa a organização da sociedade e a vida democrática, conquistada ao longo de décadas. Eis o que está em causa… Martha Nussbaum tem, aliás, analisado este tema na perspetiva do “cosmopolitismo”, considerando este como “um nobre e imperfeito ideal”, pela necessidade de ligar o interesse geral e interesse próprio nacional. E o certo é que o empenhamento de cada um no seu país precisa da consideração da proximidade e a compreensão do interesse geral assumido como defesa da dignidade de todos em qualquer parte do mundo…