CONFISSÕES DO PAPA FRANCISCO. 3
Termino a longa e bela entrevista do Papa Francisco à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Temas importantes de hoje: a reforma da Igreja, erros cometidos e a confissão, acusação de heresia, o diálogo com o islão, o desejo de ir à China, quanto tempo ainda de pontificado?
2.15. Francisco e a reforma da Igreja. A jornalista: “Qual é a coisa mais bonita que julga ter feito?” “O mais bonito para mim é, foi e é sempre estar com as pessoas, que queres que te diga? Eu renasço quando vou à praça (Praça de São Pedro), quando vou a uma paróquia. Às prisões..., estar com as pessoas. Sim, sou Papa, sou bispo, fui cardeal..., isto tudo pode cair, mas, por favor, não me tirem o ser padre, cura.”
Erros? “Erros há sempre. Confesso-me todos os 15 dias, o que significa que cometo erros.” A jornalista: “E são confissões longas ou curtas?”. Francisco: “A curiosidade feminina!, ‘the human touch’! “Como reagiu a essa de o acusarem de herege?” “Com sentido de humor, filha”. A jornalista: “Não lhe dá muita importância?” Resposta: “Não, não, rezo por eles porque estão equivocados, por vezes, pobre gente, alguns são manipulados. Vi quem eram os que assinavam... Não, a sério, sentido de humor e eu diria, ternura, ternura paternal. Quer dizer, isso não me fere minimamente. A mim o que me fere é a hipocrisia, a mentira.”
A jornalista: “E com a sua reforma tem a sensação de que estamos...” Resposta: “A reforma não é minha. Foram os cardeais que a pediram. Isto é assim, tal qual. As pessoas têm vontade de reformar. O esquema de corte tem de desaparecer. Foram os cardeais que o pediram. Bem, a maioria, graças a Deus.” A jornalista, referindo o caso de Maciel, fundador da Legião de Cristo, observou que o Papa João Paulo II tinha “obstaculizado essas reformas...”. Resposta: “Por vezes, enganaram João Paulo II.” No caso de Maciel e dos Legionários, “Bento XVI foi corajoso. E João Paulo II também. Quanto a João Paulo II, é preciso entender certas atitudes, porque vinha de um mundo fechado, a cortina de ferro, ainda estava vigente o comunismo lá... E havia uma mentalidade defensiva. Temos que compreender bem, ninguém pode duvidar da santidade desse homem e da sua boa vontade. Foi um grande.”
2.16. Geopolítica e islão. Pergunta a jornalista: “Qual é a sua estratégia face ao islão? Sente-o como uma prioridade neste momento?” Francisco: “Penso que sim. De facto, vou aos bairros em Roma, às paróquias e vêm, dizendo: ‘sou muçulmano’, ‘sou muçulmana’. Vêm saudar-me ou estão com o véu. Ou seja, o islão entrou na Europa outra vez, sejamos realistas, o islão é uma realidade que não podemos ignorar.” Também na África, há bispos que contam que há muçulmanos que vão rezar ao altar de Nossa Senhora. “Creio que somos irmãos, vimos todos de Abraão e nesse aspecto sigo as linhas do Concílio: estender as mãos aos judeus, aos islâmicos, estender as mãos o mais possível.”
Francisco reconhece a evidência de que “o islão está de modo muito forte ferido por grupos extremistas, por grupos intransigentes, fundamentalistas. Também nós, os cristãos, temos grupos fundamentalistas, pequenos grupos fundamentalistas, que obviamente não são guerrilheiros. Conclusão: é preciso ajudar os muçulmanos com a proximidade para que mostrem o melhor que têm, e esse melhor não é precisamente o terrorismo.” Está aí “o grande tema dos mártires cristãos...”, observa a jornalista. E Francisco: “Sim, e bastam pequenos grupos para causar desastres”.
Neste contexto da cristianofobia e da paz, chega a notícia do convite oficial para que o Papa visite o Iraque, o que poderá acontecer já em 2020: “Tenho a honra de convidar oficialmente Sua Santidade a visitar o Iraque, berço da civilização e lugar de nascimento de Abraão”, escreveu o presidente iraquiano, Barham Salih, numa missiva ao Papa. É sabido que aí, ao longo dos últimos anos, o número de cristãos passou de 1.5 milhões para uns 500 mil.
Ainda neste domínio, é necessário relembrar o que Francisco também tem sublinhado em ordem a este diálogo e à paz. Em primeiro lugar, também o islão tem de aprender o que custou à Igreja Católica, mas aprendeu: a leitura dos textos sagrados, no caso dos muçulmanos, do Alcorão, não pode ser literal, mas histórico-crítica. Por outro lado, é essencial salvaguardar a laicidade do Estado, isto é, a separação da religião e da política; por outras palavras: o Estado deve ser laico, não pode ter uma religião oficial; o Estado tem de ser confessionalmente neutro, para garantir a liberdade de todos. Sem a laicidade, não se supera a chamada capitis diminutio, isto é, a diminuição de cidadania dos cidadãos que não seguem a religião oficial. Dois princípios fundamentais.
E, evidentemente, Ahmed al Taleb, o Grande Imã da Mesquita e Universidade Al Azhar, no Cairo, com quem o Papa Francisco assinou, em Abu Dhabi, a histórica Declaração “A Fraternidade Humana”, a que aqui fiz longa referência, não pode continuar a aprovar que se bata na mulher “sem lhe partir um osso”: “Não deve partir-lhe um osso nem provocar danos num órgão ou membro do seu corpo nem tocar-lhe com a mão na cara nem provocar-lhe feridas nem causar danos psicológicos.”
Ainda no quadro da geoestratégia, Francisco confessa que o seu sonho é a China: “o meu sonho é a China. Gosto muito dos chineses.” Apesar das críticas, já que a perseguição não acabou, saúda o acordo com a China, para superar a dualidade da Igreja unida a Roma e a patriótica. “Agora, os católicos fruem o estar juntos. Com toda a política exterior dos pequenos passos, alguns sentem-se fora, isso é verdade, mas é a minoria. De facto, celebraram a Páscoa todos juntos, todos juntos e em todas as igrejas, este ano não houve problemas.” “Leva-nos à China?”, perguntou a jornalista. “Ficaria encantado. Para si vai ser a viagem número...”.
2.17. Quanto mais tempo ainda como Papa? A jornalista: “Lembra-se de que há quatro anos me dizia: ‘é que eu tenho a sensação de que o meu pontificado vai ser breve, dois, três, quatro anos...’, e já estamos, felizmente, no sexto.” Francisco: “E eu tenho a mesma sensação.” A jornalista: “Já passaram seis anos, já não é tão curto.” Francisco: “Mas também não pensemos em 20.” A jornalista: “Bom, em 20 talvez não, porque tem 82. Mas nos 100 anos...”. Resposta: “Está bem.”
A jornalista: “Recordo que também me disse que o que mais estranhava era como Papa não poder sair às escondidas para comer uma pizza, lembra-se? Já conseguiu fazer isso?” Francisco: “Não. Em Roma do que mais tenho saudades é de sair para comer uma pizza... Não, não o fiz. É uma coisa a que tenho de renunciar. Porque em Buenos Aires ia. A mim a rua diz-me muito, aprendo muito na rua.”
3. E a gente fica com a sensação de que Francisco, no meio de todas as crises por que passam a Igreja e o nosso mundo, é uma bênção para a Igreja e para o mundo. E compreendemos também o diálogo, no seu breve encontro com o Padre Ángel, o profeta dos pobres, presidente da ONG “Mensageiros pela Paz”, no Panamá, aquando do encontro da juventude: “Como estás?”, perguntou-lhe o Papa. Resposta: “Vou bem, apesar dos problemas. E tu, Francisco?” E Francisco: “Sobre os meus problemas, nem te falo.”
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 14 JUL 2019