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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CONFISSÕES DO PAPA FRANCISCO. 3

 

Termino a longa e bela entrevista do Papa Francisco à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México.  Temas importantes de hoje: a reforma da Igreja, erros cometidos e a confissão, acusação de heresia, o diálogo com o islão, o desejo de ir à China, quanto tempo ainda de pontificado?

 

2.15. Francisco e a reforma da Igreja. A jornalista: “Qual é a coisa mais bonita que julga ter feito?” “O mais bonito para mim é, foi e é sempre estar com as pessoas, que queres que te diga? Eu renasço quando vou à praça (Praça de São Pedro), quando vou a uma paróquia. Às prisões..., estar com as pessoas. Sim, sou Papa, sou bispo, fui cardeal..., isto tudo pode cair, mas, por favor, não me tirem o ser padre, cura.”

 

Erros? “Erros há sempre. Confesso-me todos os 15 dias, o que significa que cometo erros.” A jornalista: “E são confissões longas ou curtas?”. Francisco: “A curiosidade feminina!, ‘the human touch’! “Como reagiu a essa de o acusarem de herege?” “Com sentido de humor, filha”. A jornalista: “Não lhe dá muita importância?” Resposta: “Não, não, rezo por eles porque estão equivocados, por vezes, pobre gente, alguns são manipulados. Vi quem eram os que assinavam... Não, a sério, sentido de humor e eu diria, ternura, ternura paternal. Quer dizer, isso não me fere minimamente. A mim o que me fere é a hipocrisia, a mentira.”

 

A jornalista: “E com a sua reforma tem a sensação de que estamos...” Resposta: “A reforma não é minha. Foram os cardeais que a pediram. Isto é assim, tal qual. As pessoas têm vontade de reformar. O esquema de corte tem de desaparecer. Foram os cardeais que o pediram. Bem, a maioria, graças a Deus.” A jornalista, referindo o caso de Maciel, fundador da Legião de Cristo, observou que o Papa João Paulo II tinha “obstaculizado essas reformas...”. Resposta: “Por vezes, enganaram João Paulo II.” No caso de Maciel e dos Legionários, “Bento XVI foi corajoso. E João Paulo II também. Quanto a João Paulo II, é preciso entender certas atitudes, porque vinha de um mundo fechado, a cortina de ferro, ainda estava vigente o comunismo lá... E havia uma mentalidade defensiva. Temos que compreender bem, ninguém pode duvidar da santidade desse homem e da sua boa vontade. Foi um grande.”

 

2.16. Geopolítica e islão. Pergunta a jornalista: “Qual é a sua estratégia face ao islão? Sente-o como uma prioridade neste momento?” Francisco: “Penso que sim. De facto, vou aos bairros em Roma, às paróquias e vêm, dizendo: ‘sou muçulmano’, ‘sou muçulmana’. Vêm saudar-me ou estão com o véu. Ou seja, o islão entrou na Europa outra vez, sejamos realistas, o islão é uma realidade que não podemos ignorar.” Também na África, há bispos que contam que há muçulmanos que vão rezar ao altar de Nossa Senhora. “Creio que somos irmãos, vimos todos de Abraão e nesse aspecto sigo as linhas do Concílio: estender as mãos aos judeus, aos islâmicos, estender as mãos o mais possível.”

 

Francisco reconhece a evidência de que “o islão está de modo muito forte ferido por grupos extremistas, por grupos intransigentes, fundamentalistas. Também nós, os cristãos, temos grupos fundamentalistas, pequenos grupos fundamentalistas, que obviamente não são guerrilheiros. Conclusão: é preciso ajudar os muçulmanos com a proximidade para que mostrem o melhor que têm, e esse melhor não é precisamente o terrorismo.” Está aí “o grande tema dos mártires cristãos...”, observa a jornalista. E Francisco: “Sim, e bastam pequenos grupos para causar desastres”.

 

Neste contexto da cristianofobia e da paz, chega a notícia do convite oficial para que o Papa visite o Iraque, o que poderá acontecer já em 2020: “Tenho a honra de convidar oficialmente Sua Santidade a visitar o Iraque, berço da civilização e lugar de nascimento de Abraão”, escreveu o presidente iraquiano, Barham Salih, numa missiva ao Papa. É sabido que aí, ao longo dos últimos anos, o número de cristãos passou de 1.5 milhões para uns 500 mil.

 

Ainda neste domínio, é necessário relembrar o que Francisco também tem sublinhado em ordem a este diálogo e à paz. Em primeiro lugar, também o islão tem de aprender o que custou à Igreja Católica, mas aprendeu: a leitura dos textos sagrados, no caso dos muçulmanos, do Alcorão, não pode ser literal, mas histórico-crítica. Por outro lado, é essencial salvaguardar a laicidade do Estado, isto é, a separação da religião e da política; por outras palavras: o Estado deve ser laico, não pode ter uma religião oficial; o Estado tem de ser confessionalmente neutro, para garantir a liberdade de todos. Sem a laicidade, não se supera a chamada capitis diminutio, isto é, a diminuição de cidadania dos cidadãos que não seguem a religião oficial. Dois princípios fundamentais.

 

E, evidentemente, Ahmed al Taleb, o Grande Imã da Mesquita e Universidade Al Azhar, no Cairo, com quem o Papa Francisco assinou, em Abu Dhabi, a histórica Declaração “A Fraternidade Humana”, a que aqui fiz longa referência, não pode continuar a aprovar que se bata na mulher “sem lhe partir um osso”: “Não deve partir-lhe um osso nem provocar danos num órgão ou membro do seu corpo nem tocar-lhe com a mão na cara nem provocar-lhe feridas nem causar danos psicológicos.”

 

Ainda no quadro da geoestratégia, Francisco confessa que o seu sonho é a China: “o meu sonho é a China. Gosto muito dos chineses.” Apesar das críticas, já que a perseguição não acabou, saúda o acordo com a China, para superar a dualidade da Igreja unida a Roma e a patriótica. “Agora, os católicos fruem o estar juntos. Com toda a política exterior dos pequenos passos, alguns sentem-se fora, isso é verdade, mas é a minoria. De facto, celebraram a Páscoa todos juntos, todos juntos e em todas as igrejas, este ano não houve problemas.” “Leva-nos à China?”, perguntou a jornalista. “Ficaria encantado. Para si vai ser a viagem número...”.

 

2.17. Quanto mais tempo ainda como Papa? A jornalista: “Lembra-se de que há quatro anos me dizia: ‘é que eu tenho a sensação de que o meu pontificado vai ser breve, dois, três, quatro anos...’, e já estamos, felizmente, no sexto.” Francisco: “E eu tenho a mesma sensação.” A jornalista: “Já passaram seis anos, já não é tão curto.” Francisco: “Mas também não pensemos em 20.” A jornalista: “Bom, em 20 talvez não, porque tem 82. Mas nos 100 anos...”. Resposta: “Está bem.”

 

A jornalista: “Recordo que também me disse que o que mais estranhava era como Papa não poder sair às escondidas para comer uma pizza, lembra-se? Já conseguiu fazer isso?” Francisco: “Não. Em Roma do que mais tenho saudades é de sair para comer uma pizza... Não, não o fiz. É uma coisa a que tenho de renunciar. Porque em Buenos Aires ia. A mim a rua diz-me muito, aprendo muito na rua.”

 

3. E a gente fica com a sensação de que Francisco, no meio de todas as crises por que passam a Igreja e o nosso mundo, é uma bênção para a Igreja e para o mundo. E compreendemos também o diálogo, no seu breve encontro com o Padre Ángel, o profeta dos pobres, presidente da ONG “Mensageiros pela Paz”, no Panamá, aquando do encontro da juventude: “Como estás?”, perguntou-lhe o Papa. Resposta: “Vou bem, apesar dos problemas. E tu, Francisco?” E Francisco: “Sobre os meus problemas, nem te falo.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 14 JUL 2019

CONFISSÕES DO PAPA FRANCISCO. 2

 

Dou sequência à longa e bela entrevista do Papa Francisco à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Porque, se é verdade que é sempre espontâneo no contacto com os jornalistas, raramente o terá sido tanto. Cordial, tratando a jornalista por “filha”, a quem revela que é “um conservador”, mas que mudou.

 

2.7. Os de fora e os de dentro. A jornalista observa: “Há quem diga que o Papa parece gostar mais dos que estão longe do que dos seus”. Francisco: “É um piropo para mim. É um piropo, pois é o que Jesus fazia, acusavam-no disso. E Jesus diz: ‘Não são os sãos que precisam de médico, mas sim os doentes’. Eu não prefiro os de fora aos de dentro. Cuido dos de dentro, mas dou prioridade aos outros, isso sim.” É como numa família.

 

Acrescentou: “Alguns jornalistas acusam-me de que sou demasiado tolerante com a corrupção na Igreja; por outro, se carrego em cima dos corruptos, dizem que ‘lhes carrego demais’. Bonito. Assim, sinto-me pastor. Obrigado.”

 

2.8. E volta aos migrantes e refugiados, observando a jornalista que há quem o acuse de “falar muito mais deste tema do que dos temas, dos valores que antes se dizia serem valores irrenunciáveis do catolicismo como a defesa da vida.”

 

Francisco: “Porque é uma prioridade hoje no mundo. Todos os dias recebemos notícias de que o Mediterrâneo é cada vez mais cemitério, para dar um exemplo.”

 

Mas reconhece as tremendas dificuldades do problema. “Sobre migrantes, eu digo, em primeiro lugar, que é preciso ter coração para acolher; depois, é preciso acompanhar, promover e integrar. Todo um processo. Aos governantes digo: Vejam até onde podem ir. Nem todos os países podem, sem mais. E para isso é necessário o diálogo e que se ponham de acordo. É preciso integrar isto tudo, não é fácil tratar o problema migrantes, não é fácil.”

 

A mesma dificuldade quanto aos repatriados. “Não sei se viu as filmagens clandestinas que há quando os apanham outra vez. Às mulheres e aos miúdos vendem-nos, e os homens são feitos escravos, torturam-nos... Por isso, digo: cuidado também para repatriar com segurança.”

 

2.9. Sobre o aborto. “O aborto não é um problema religioso no sentido de: porque sou católico não posso abortar. É um problema humano. É o problema de eliminar uma vida humana. Ponto final. E por aqui me fico.”

 

2.10. E com os governantes? “Não gosto de responder: ‘gosto mais, gosto menos’. Quero ser honesto. Frente a um governante, procuro dialogar com o melhor que tem. Porque a partir do melhor que tem vai fazer bem ao seu povo.”

 

2.11. É sabido que Francisco não se cansa de atacar a bisbilhotice na Igreja, na Cúria, na vida de todos. Acaba de distribuir um folheto na Cúria sobre isso, porque “somos inclinados a falar mal das pessoas”. A jornalista: “Como se chama o folheto?” Resposta: “Não falar mal dos outros”. “É um defeito que temos todos: ver o mal do outro e não o bem. Isso vale para todos: a bisbilhotice, os mexericos. Dizem que as mulheres são mais bisbilhoteiras, mas é falso. Os homens também o são.” O que é mau deve-se dizer ao próprio, “em privado, para que se corrija. Não o digas aos outros.”

 

2.12. Situações “irregulares”, recasados e homossexuais. Francisco lamenta que por vezes abusem das suas palavras e o interpretem mal: “Por vezes as pessoas, com o entusiasmo de serem recebidas pelo Papa, dizem mais do que o Papa lhes disse, é preciso ter isso em conta.” A jornalista: “É um risco que corre...”. Resposta: “Claro, um risco. Mas todos são filhos de Deus. Todos. Eu não posso descartar ninguém. Preciso de ter cuidado, tomar precauções, mas descartar, não. Também não posso dizer a uma pessoa que o seu comportamento está de acordo com o que a Igreja quer, quando não está. Mas tenho de dizer a verdade: ‘És filho, filha de Deus. A ninguém tenho o direito de dizer que não é filho, filha de Deus, porque estaria a faltar à verdade. Ou que Deus não gosta dele, dela. De facto, Deus gosta de todos, até de Judas.” As pessoas têm é de ser responsáveis.

 

Mas há más interpretações. “Perguntaram-me sobre a integração familiar das pessoas com orientação homossexual e eu disse: as pessoas homossexuais, as pessoas com uma orientação homossexual têm direito a estar na família e os pais têm direito a reconhecer esse filho como homossexual, essa filha como homossexual. Não se pode pôr fora da família ninguém nem tornar a vida impossível a ninguém.” “Outra coisa é, quando se vêem alguns sinais nos miúdos que estão a crescer, mandá-los a um ‘especialista’ (na altura, saiu-me ‘psiquiatra’, mas queria dizer especialista, foi um lapsus linguae). Ora, um diário colocou em título: ‘O Papa manda os homossexuais ao psiquiatra’. Não é verdade. Não disse isso.”

 

Quanto aos divorciados recasados, “a doutrina foi reajustada, o que significa recuperar a doutrina de São Tomás.” O princípio continua claro: casamento para toda a vida; do que se trata é de aplicar, dentro de certas regras, o princípio às circunstâncias. Neste quadro, abre-se a porta à possibilidade da comunhão em casos concretos.

 

2.13. A jornalista observou: “Conhecidos seus dizem que, na Argentina, era conservador na doutrina.” Francisco: “Sou conservador.” A jornalista: Mas “tornou-se muito mais liberal do que era na Argentina. Foi o Espírito Santo?” Resposta: “A graça do Espírito Santo existe certamente. Eu sempre defendi a doutrina. E é curioso, uma vez que chama a atenção para isso, na lei do casamento homossexual... é uma incongruência falar de casamento homossexual.” A jornalista: “Então, antes era uma coisa e agora é outra?” “É verdade. Confio em que cresci um pouco, que me santifiquei um pouco mais. A gente muda na vida. Ampliei os meus critérios, isso pode ser; vendo os problemas mundiais, tomei mais consciência de algumas coisas que antes não tinha. Julgo que nesse sentido há mudanças, sim. Mas sou conservador e... sou as duas coisas.”

 

2.14. Francisco e a imprensa. A jornalista: “Atendendo a esta evolução, pode dizer-nos o melhor nestes seis anos?” Francisco: “Bom, escutar-vos a vós jornalistas, creio que para mim foi uma coisa... não digo a melhor, mas uma coisa linda.”

 

“Na Argentina, nunca contactava com a imprensa, não éramos santos da sua devoção”, observa a jornalista. “Não, não. Também agora não muito (risos). Não, mas realmente o diálogo convosco — isto é um pouco piada, mas quero dizê-lo —, eu tenho boa relação convosco e sinto-me bem convosco, que fique claro. É uma das coisas lindas.” “Mesmo que o critiquemos”. Francisco: “Claro que sim. Se criticarem bem, bendito seja Deus; se criticarem mal, saio a dizer-vo-lo. Porque  o papel da imprensa não é só criticar, é construir. Mas também tenho consciência de uma coisa: Nem sempre sois livres, lamentavelmente muitos, para viver..., nem sempre podem dizer tudo o que querem.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 7 JUL 2019