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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA TERRA COM SEU USO


VIII. De Vasco da Gama a Afonso de Albuquerque: um império universal


Sobre Vasco da Gama, importa lembrar que depois da morte do Infante D. Henrique as navegações «eram sobretudo impulsionadas pela procura do Preste João e do ouro da Guiné, e que, durante o reinado de D. João II, estes motivos foram reforçados pela procura de especiarias asiáticas – compreendendo-se a resposta do enviado de Gama sobre o que fariam ali aqueles navegadores. «Viemos procurar cristãos e especiarias». O certo, porém, é que os conselheiros de D. Manuel, ouvidos em Montemor-o-Novo, mais se inclinaram para que a Índia não se deveria descobrir – como no-lo diz João de Barros. Quando regressou ao reino, em agosto de 1499, Vasco da Gama perdera dois navios e cerca de metade da tripulação, no entanto a abertura de novos contactos permitiria abrir horizontes, que a armada de Pedro Álvares Cabral viria a consolidar – com a concretização do Achamento do Brasil, documentado na carta de Pero Vaz de Caminha, bem como com o delineamento de uma nova estratégia de acordos locais, designadamente em Cochim e Cananor. Segundo Boxer: «a mira dos lucros a ganhar com o projetado monopólio português das especiarias e a confianças na possibilidade de encontrar aliados cristãos nas terras que confinavam com o Índico permitiram a D. Manuel vencer hesitações de alguns dos seus conselheiros e lançar este pequeno reino na espetacular carreira de empreendimentos militantes na Ásia das Monções».


«O Império Marítimo Português – 1415-1825» de Charles Boxer (1904-2000) é uma obra clássica, publicada pelo célebre estudioso britânico em 1969 e que nos fornece uma indispensável síntese panorâmica da expansão portuguesa no mundo através da consideração das suas origens, vicissitudes, limitações e desenvolvimentos. Charles R. Boxer tornou-se em 1947, após uma vida militar no Oriente, titular da cátedra Camões no King’s College em Londres, onde exerceu funções até 1967. Profundo conhecedor das línguas e culturas asiáticas e sendo estudioso do contacto destas com as culturas europeias, designadamente a portuguesa e a holandesa, Boxer foi uma autoridade respeitadíssima relativamente ao conhecimento da primeira globalização, tendo ainda sido Professor da História do Extremo Oriente na Universidade de Londres no início dos anos cinquenta. A obra referida culmina a ação pedagógica na capital britânica – tendo-se tornado um manual indispensável para um conhecimento sério das viagens dos portugueses pelo mundo e das suas consequências para a génese da economia e da sociedade modernas. Depois de 1967, aceitou ainda a cátedra de História da Expansão Europeia na Universidade de Indiana a que se seguiu semelhante função na Universidade de Yale – tendo tido até à sua morte uma relevante influência e orientação no estudo complexo dos acontecimentos que determinaram a criação do Império Marítimo Português, desde a conquista Ceuta até ao ocaso da presença asiática.


Com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, Vasco da Gama abriu novos horizontes nas relações entre continentes e no conhecimento do planeta Terra. «Durante a exploração (diz Roger Crowley em «Os Conquistadores», Presença, 2016), os portugueses iniciaram infindáveis interações mundiais, de teor positivo e negativo. Trouxeram armas de fogo e pão para o Japão, astrolábios e feijão-verde para a China, escravos africanos para as Américas, chá para Inglaterra, pimenta para o Novo Mundo, seda chinesa e medicamentos indianos para todo o continente europeu, um elefante para o Papa. Pela primeira vez, os povos de lados opostos do planeta puderam ver-se, tornando-se alvo de descrições e de espanto. Pintores japoneses representaram estes visitantes estranhos em imagens, usando calças de balão enormes e chapéus coloridos»… No entanto, durante trinta anos, no início do século XV, o imperador chinês Yongle, da recém-estabelecida dinastia Ming, enviou armadas pelos mares ocidentais, apenas para afirmar o poder do Império do Meio. As expedições teriam sido seis em vida de Yongle e sete entre 1431 e 1433. Não houve, porém, tentativas de ocupação militar nem empreendimentos económicos, apenas uma afirmação de poder e influência. Em 1433, na sétima expedição, Zheng He, o mítico almirante muçulmano, morreu, talvez em Calecute, na costa da Índia e depois da sua morte as «jangadas estelares» não voltaram a navegar. A orientação política no Império da China mudara e, em lugar da abertura ao mundo, prevaleceu o isolamento e foi reforçada a Grande Muralha. «As viagens marítimas foram banidas e os registos destas destruídos». Neste primeiro caso, dá o autor nota de que aquilo que os portugueses fizeram ao abrir caminho para o conhecimento do planeta, poderia ter acontecido a partir da China. A verdade é que os navios de Vasco da Gama caberiam num só dos juncos magnificentes de Zheng He.


No caso das navegações portuguesas, nada dependeu de um mero acaso ou de uma qualquer improvisação. Houve informação, conhecimento, ponderação, planeamento, determinação e convergência de esforços – e houve ainda dificuldades a superar, carência de recursos, efeitos de uma profunda crise e ecos da tremenda peste negra… «O destino e a sorte de Portugal foram não ter acesso ao Mediterrâneo, a arena movimentada do comércio e troca de ideias. Na orla da Europa e periféricos ao Renascimento, os portugueses podiam apenas olhar invejosamente para a riqueza de cidades como Veneza e Génova, que tinham assumido posições dominantes no mercado dos bens de luxo vindos do Oriente: especiarias, seda e pérolas, comerciando com as cidades islâmicas de Alexandria e Damasco e vendendo os produtos a preços monopolistas. Portugal, porém, estava virado para o mar». E somos conduzidos a partir dessa singular circunstância – uma costa marítima aberta e um modo novo de pensar, que Jaime Cortesão liga aos fatores democráticos e ao franciscanismo… Assim temos a identificação da rota marítima para as Índias; o conflito que envolve os monopólios até à conquista, invocando o «Leão dos Mares» - é Afonso de Albuquerque, cujo modelo era Alexandre o Grande da Macedónia, como figura contraditória, portadora de uma vontade férrea e de uma visão estratégica fundamental. Aqui notam-se os paradoxos políticos do reino. D. Manuel terá tido consciência do que estava em causa. A alternativa pôs-se entre a lógica nacional e de Estado e a descentralização mercantil – prevalecendo no fim esta última. Goa, Ormuz e Malaca são centros cruciais, que Afonso de Albuquerque define, conquista e consolida… Os portugueses terão influência decisiva no Oceano Índico e na Ásia durante pelo menos cento e cinquenta anos graças a esses três pontos estratégicos. Lembremo-nos, porém, que o Conselho Privado do Rei não advogou a viagem à India, mas D. Manuel definiu, apesar de tudo, esse como um objetivo estratégico do seu reinado – afirmando: “Vamos à India!”. Contudo, há um sonho providencial, que se vai desvanecer perante a distância e a ilusão dos ganhos fáceis dos «fumos da Índia». Uma história de claros e escuros a merecer atenção prospetiva! Leiam-se os cronistas João de Barros (1496-1570) e Diogo do Couto (1542-1616) e descubram-se os aspetos positivos e negativos de um Império que não sobrevive ao cerco holandês, suscitado pela união pessoal e pela monarquia dual de Filipe II (I, de Portugal) e seus descendentes.


“Para o tráfego da Índia, Portugal necessitava da segurança das costas atlânticas e do apoio naval espanhol” e, para as Américas, a Espanha precisa das linhas portuguesas. E D. Manuel torna-se legítimo pretendente à sucessão dos Reis Católicos – mas a morte de Miguel da Paz (simbolicamente sepultado na Catedral de Granada junto a seus avós) vai de novo deitar a perder o projeto (de D. João II) de tornar concreto o “equilíbrio” – contra as ameaças corsárias do norte da Europa…” Miguel da Paz (1498-1500) é filho de Manuel e de sua mulher D. Isabel e nele se punham todas as esperanças de poder unificar os Reinos Peninsulares sob os auspícios do Reino marítimo de Portugal.


Carlos I de Espanha (V de Habsburgo) e a Imperatriz Isabel de Portugal (filha de D. Manuel e mãe do futuro Filipe I de Portugal) procurarão restaurar a “Respublica Christiana”, “cuja principal vantagem seria substituir as guerras por debates e decisões garantidas por um poder real forte e adequadamente centralizado”. No entanto, a França, a Espanha e a Áustria tornam-se os Estados europeus dominantes. Portugal (como a Inglaterra) procura espaço atlântico através do império marítimo, com dificuldades e sem procura interna e uma base económica continental sólida. É o tempo do cerco, que cada vez mais se aperta, sem espaço de manobra. Para o Prof. Jorge Borges de Macedo, apenas pode compreender-se o projeto do rei D. Sebastião, a partir da tentativa de obter o equilíbrio perdido perante a hegemonia europeia dos Áustrias. O projeto de Alcácer-Quibir estaria assim na lógica sequência da vitória de Lepanto (1571) sobre o expansionismo turco. Havia que impedir a chegada do império otomano a Marrocos, e esse objetivo pôde ser alcançado apesar dos custos terríveis para o império português e para as suas pretensões… Seria, no entanto, preciso esperar pela guerra dos Trinta Anos (1618-1648), pela reação vitoriosa de 1640 (com apoio do Cardeal Richelieu) perante a tentativa centralizadora do Conde Duque de Olivares, pela nova orientação da Paz de Vestefália (1648), instituidora de um novo quadro europeu, para Portugal recuperar o equilíbrio perdido, mas isso são outros contos ainda por contar…

Agostinho de Morais
 
 

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XI) VASCO DA GAMA, JERÓNIMOS E CUSTÓDIA DE BELÉM

 

Vasco da Gama, herói de “Os Lusíadas”, ao descobrir o caminho marítimo para a Índia, iniciou, como afirmou Arnold Toynbee, a era da globalização, em que pela primeira vez as diferentes civilizações do Planeta entraram em contacto, iniciando um período de encontros e desencontros, de dominações e de cooperação - a era gâmica. As armas de fogo e o pão chegaram ao Japão, os astrolábios e o feijão-verde à China, os escravos africanos às Américas, o chá a Inglaterra, a pimenta ao Novo Mundo, a seda chinesa e os medicamentos indianos à Europa, um elefante e um rinoceronte embalsamado ao Papa. Artistas japoneses representaram estranhos europeus, com narizes compridos, usando calças de balão enormes e chapéus coloridos. Contudo, durante trinta anos, no início do século XV, o imperador chinês Yongle, da recém-estabelecida dinastia Ming, enviou armadas para a costa oriental de África, para afirmar o poder do Império do Meio - seis expedições em vida de Yongle e sete entre 1431 e 1433. Mas não houve tentativas de ocupação militar nem empreendimentos económicos, apenas afirmação de poder e influência. Em 1433, na sétima expedição, Zheng He, o mítico almirante muçulmano, morreu, talvez em Calecute, na costa da Índia e depois da sua morte as «jangadas estelares» não voltaram mais a navegar. A orientação política no Império da China mudou e, em lugar da abertura, prevaleceu o isolamento e foi reforçada a Grande Muralha. As viagens marítimas foram banidas e os seus registos destruídos. A verdade é que os navios de Vasco da Gama caberiam num só dos juncos magnificentes de Zheng He. Nas navegações portuguesas, nada dependeu de um mero acaso ou de uma qualquer improvisação. Houve informação, conhecimento, ponderação, planeamento, determinação e convergência de esforços – e houve grandes dificuldades a superar, carência de recursos, efeitos de uma profunda crise e ecos da tremenda peste negra… Notam-se os paradoxos políticos do reinado. Entre a lógica nacional e a descentralização mercantil – prevaleceu esta última. Goa, Ormuz e Malaca foram os centros cruciais, que Afonso de Albuquerque definiu, conquistou e consolidou… E os portugueses (militares, mercadores, missionários) tiveram influência decisiva no Oceano Índico e na Ásia durante pelo menos cento e cinquenta anos graças a esses três pontos estratégicos. Lembremo-nos, porém, que o Conselho Privado do Rei não advogava a viagem à India, mas D. Manuel definiu, apesar de tudo, esse como o objetivo estratégico do seu reinado. É um sonho providencial, que se vai desvanecer perante a distância e a ilusão dos ganhos fáceis dos «fumos da Índia», numa história de claros e escuros a merecer atenção prospetiva! Leia-se Fernão Mendes Pinto, mas também os cronistas João de Barros (1496-1570) e Diogo do Couto (1542-1616) e descubra-se um Império fortemente afetado pela monarquia dual (1580-1640) e ao cerco holandês. A assinalar a chegada à Índia, referira-se a construção do Mosteiro de Santa Maria de Belém ou dos Jerónimos, construído em calcário (lioz) extraído de pedreiras da região de Lisboa. A complexidade e a riqueza da construção prolongaram as obras por uma centena de anos. A cúpula é apenas do século XIX. Foram mestres na construção Diogo de Boitaca, João de Castilho, Diogo de Torralva, e Jerónimo de Ruão. Estamos perante o ponto culminante da arquitetura designada como manuelina, que integra elementos do gótico final e do renascimento, associando-lhes uma simbologia régia, cristológica, marítima e naturalista, singularíssima. Para o mosteiro foram escolhidos os monges da Ordem de S. Jerónimo, comunidade religiosa que habitou nestes espaços até 1834, data da extinção das ordens religiosa. O mosteiro foi então entregue depois à Casa Pia, instituição educativa, que ocuparia os espaços do claustro até 1940. Sob a direção de João de Castilho, o portal sul é o mais célebre, contando com um total de quarenta figuras, uma alusiva à história de Portugal, além das armas nacionais, no baixo-relevo central da parte superior do tímpano. Na base do portal dispõem-se os doze apóstolos, ao centro, a Virgem com o Menino, a coroar o conjunto, quatro Doutores da Igreja, e no topo S. Miguel, o Anjo Custódio e Portugal, mais abaixo, em posição central entre as duas portas de entrada, a estátua do Infante D. Henrique e nos tímpanos duas cenas da vida de S. Jerónimo. Não podemos deixar de referir ainda um outro símbolo da Arte portuguesa, já referido a propósito de Gil Vicente, trata-se da Custódia de Belém, mandada lavrar por D. Manuel I para o Mosteiro de Santa Maria de Belém (Jerónimos), atribuível com muitas dúvidas ao ourives e dramaturgo Gil Vicente. Foi realizada com o ouro do tributo do Régulo de Quíloa (Tanzânia), em sinal de apoio à coroa de Portugal, trazido por Vasco da Gama no regresso da segunda viagem à Índia, em 1503, é um bom exemplo do gosto por peças concebidas como microarquitecturas no gótico final. As esferas armilares, divisas do Rei, definem o nó, a unir dois mundos (terreno e sobrenatural), como a consagração máxima do poder régio, confirmando o espírito do Rei Venturoso.

GOM

 

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Traduzo para ti um trecho do Vasco de Gama (Paris, Fayard, 1997) de Geneviève Bouchon, só porque, tendo sido escrito por uma historiadora francesa, traz outro sabor a uma história que todos conhecemos... Diz assim:

 

   A escala de Melinde permaneceria na memória coletiva portuguesa como momento privilegiado da história das descobertas. O acolhimento reservado aos portugueses pelo sultão foi logo atribuído à «vontade de Deus» que o inspirara. No dia de Páscoa, era a esperança reencontrada depois de tantas desventuras. Durante os nove dias de duração da escala, os homens da tripulação puderam regalar-se com laranjas doces, refastelar-se com carnes e legumes deliciosos, que os jardins da vizinhança, regados por noras, profusamente dispensavam. Comparavam a cidade à vila portuguesa de Alcochete, com as suas muralhas, as suas casas altas brancas de cal, sobre um fundo de palmeirais despenteados pelos primeiros ventos da monção nascente.

 

   Tudo lhes falava da Índia: as especiarias, os têxteis e os homens. Pela primeira vez descobriam a rede tecida à volta dela, de que Melinde era uma das extremidades. A maioria dos seus habitantes era bantu mas, quando a cidade se animava ao cair da noite, no porto se cruzavam também com árabes de turbante que andavam em tronco nu, com a parte baixa do corpo envolta num longo pano de algodão ou de seda. Encontravam também mercadores da Índia, esses chamados gujarates, nome que em breve se tornaria familiar aos ouvidos portugueses, pois em todo o lado os encontrariam. Vinham a Melinde buscar ouro, âmbar e marfim, que trocavam pelos seus algodões, cobre e mercúrio. Quatro navios estavam ancorados no porto, por conta de cristãos do Malabar. Os portugueses não queriam acreditar nesse novo signo da Providência, depois das falsas alegrias de Moçambique e dos dececionantes encontros de Mombaça. Mas parecia mesmo tratar-se aqui de verdadeiros cristãos, membros da Igreja de São Tomé Apóstolo. Eles próprios tinham vindo saudar os portugueses, que se maravilharam ao ver homens de pele escura que não eram africanos. Eram mais pequenos e mais magros, e traziam grandes barbas e longos cabelos atados nas costas nuas. Exprimiam-se numa língua com acentos metálicos, que os intérpretes dos portugueses não entendiam. Recusavam comer carne de vaca, mas prosternaram-se diante de uma imagem de Nossa Senhora que o capitão-mor lhes apresentou para verificar a sua fé. Alguns sabiam algumas palavras de árabe e deixaram entender que não vinham de Calecute, mas de Cranganor, onde de facto existia uma importante comunidade cristã. Também souberam pôr o capitão-mor de sobreaviso contra a "malícia" das gentes de Melinde.

 

   O guião de Geneviève Bouchon é o nosso cronista quinhentista Fernão Lopes de Castanheda (História dos descobrimentos e conquista da Índia pelos Portugueses, 9 volumes, Coimbra, 1924-1933).  Facilmente compreenderás com que pena, agora, eu não possa ter o texto aqui à mão. Já te disse que não sou historiador, nem tenho outras pretensões do que trazer-te comigo a umas voltas que nos façam pensar... Antes de te convidar para um passeio por este relato - que tem que se lhe diga - deixo-te a narrativa - que Camões canta, depois de trazer ao episódio Mercúrio, por Vénus enviado a avisar o Gama -  quando a armada zarpara de Moçambique para Mombaça: Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece, /  Dizendo: fuge, fuge, Lusitano, / Da cilada que o Rei malvado tece, /  Por te trazer ao fim e extremo dano. / Fuge, que o vento e o Céu te favorece;/ Sereno o tempo tens e o Oceano, / E outro Rei mais amigo, noutra parte, / Onde podes seguro agasalhar-te... ///... Vai-te ao longo da costa discorrendo / E outra terra acharás de mais verdade / Lá quase junto donde o Sol, ardendo, / Iguala o dia e noite em quantidade; / Ali tua frota alegre recebendo / Um Rei, com muitas obras de amizade, / Gasalhado seguro te daria / E, para a Índia, certa e sábia guia... ///... E como o Gama muito desejasse / Piloto para a Índia, que buscava, / Cuidou que entre estes Mouros o tomasse; [os de Mombaça, donde foge] / Mas não lhe sucedeu como cuidava, / Que nenhum deles há que lhe ensinasse / a que parte dos céus a Índia estava; / Porém dizem-lhe todos que tem perto / Melinde, onde acharão piloto certo.  // Louvam do Rei os Mouros a bondade, / Condição liberal, sincero peito, / Magnificência grande e humanidade, / Com partes de grandíssimo respeito / O Capitão o assela por verdade, / Porque já lho dissera deste jeito / O Cileneu em sonhos, e partia / Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia... ///... Quando chegava a frota àquela parte / Onde o Reino Melinde já se via / De toldos adornada e leda de arte / Que bem mostra estimar o Santo dia. [o Domingo de Páscoa] / Treme a bandeira, voa o estandarte, / A cor purpúrea ao longe aparecia; / Soam os atambores e pandeiros; / E assim entravam ledos e guerreiros. // Enche-se toda a praia Melindana / Da gente que vem ver a leda armada, / Gente mais verdadeira e mais humana / Que toda a doutra terra atrás deixada. / Surge diante a frota Lusitana, / Pega no fundo a âncora pesada. / Mandam fora um dos Mouros que tomaram, / Por quem sua vinda ao Rei manifestaram. Continuaria, sem qualquer cansaço, mas tão só com alegria, a ler-te, Princesa de mim, muitos mais trechos de rimas do nosso Camões. Acontece-me, com alguma frequência, sentindo-me em estado de abandono, agarrar-me à escrita tão bonita de Luís de Camões ou de Frei Luís de Sousa. Deste, leio e releio passos da Vida do Arcebispo Dom Frei Bartolomeu dos Mártires. Do poeta, as líricas e Os Lusíadas. Nunca percebi como foi já possível achar-se maçadora, dura de roer, aquela crónica e a epopeia, cuja leitura sempre me proporcionou momentos de intenso prazer, esse gosto inefável oferecido pela plasticidade da língua portuguesa. As oitavas que acima transcrevi relatam um acontecimento, mas de modo a que o leitor possa saboreá-lo, como se o visse e ouvisse, e ainda entendê-lo "por dentro", inserindo-o na circunstância e na sua história próxima, deixando adivinhar expectativas, apreensões, receios e alegrias. E eu leio essas estrofes a cantarem- me na alma, foram compostas e escritas há 450 anos numa língua que, hoje ainda, eu festejo como muito minha... Meu também, isto é, como se para mim fora escrito, sinto este passo do capítulo XX (Do cuidado com que acudia aos pobres e dos hospitais que ordenou na cidade...) do Livro I da Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires -  escrita por aquele que em pleno século XIX, Almeida Garrett considerou o mais perfeito prosador da língua, em discurso ao Conservatório Real:

 

   Parecerá por ventura, a quem ler com cuidado o que vamos escrevendo deste prelado, que a quem andava tão ocupado nas cousas espirituais não lhe poderia ficar tempo, nem ainda memória pera o governo das temporais, e é engano, porque não se prezava de menos diligente e cuidadoso em acudir às necessidades corporais dos pobres, do que o era em remediar as espirituais de todos. Atrás fica dito como, tirado o pouco que despendia em sua casa e o que montavam os salários dos oficiais de justiça, tudo o mais se entesourava nas mãos dos pobres, que era o mesmo que passa-lo ao Céu por elas, como dizia a Daciano o glorioso mártir S. Lourenço, em cujo dia vamos escrevendo. Agora é lugar de dizermos a ordem com que o fazia. E frei Luís de Sousa (que, "no mundo" fora D. Manuel de Sousa Coutinho) conta-nos então o cuidado, o rigor, a ordem assente na atenção prestada a cada pessoa, com que o arcebispo (que, tal como o seu biógrafo, também era frade dominicano) ia acudindo aos mais necessitados, que até em sua casa acolhia: Costumava dizer o arcebispo que em sua casa só ele era o estranho e os pobres eram os verdadeiros e naturais senhores dela. Saboreia, Princesa de mim, esta palavra, dita por quem - vimo-lo acima - entesourava nas mãos dos pobres a riqueza que recebesse, o mesmo Bartolomeu que, menininho ainda,  em casa de seus pais, na freguesia dos Mártires, em Lisboa, acolheu um pobre que lhes batera à porta: Encarou no pobre todo risonho, todo alegre, debatendo-se pera ele, e festejando-o com as mãozinhas, boca e olhos, como se fora um dos mais conhecidos de casa; e enquanto o pobre se não despediu, não desviou os olhos dele, nem deixou de o estar agasalhando com aquelas inocentes mostras... A língua portuguesa tem maneiras, ora profundas, ora bonitas, de dizer. Estas que para aqui trouxe, fui busca-las ao século XVI e primórdios do XVII. Guardei-as como sussurra António Nobre : Teu coração dentro do meu descansa / Teu coração desde que lá entrou / E tem tão bom dormir essa criança / Deitou-se, ali caiu, ali ficou.

 

    E quiçá seja o coração também a pátria da nossa pátria, residência de um intimíssimo pensarsentir a pertença ou a comunhão com coisas e pessoas, passadas, presentes e desconhecidamente futuras. Afinal, a identidade nacional por ventura existirá apenas nessa comunhão de cada um no sonho ou na realidade de algo que todos sentem em uníssono (como quando cantamos o hino ou gritamos "Viva!") mas cada qual representa a seu jeito. Só nesse presente ela existe, sempre a fazer-se, sempre proposta. Nos textos que acima dou ao teu sentido, encontro propostas para a nossa nação de cada dia: aprender a olhar os outros pelos frutos, e não pelo preconceito, pela descoberta do que as diferenças podem fazer umas pelas outras; ganhar o espírito inato da justiça, não vendo nos indigentes encargos, fardos pesados, mas irmãos amáveis e libertadores, e, dando a cada um o seu direito (Ulpiano: Justitia est jus suum cuique tribuendi), entesourar riquezas espirituais. Muitas vezes me recordo ensinamentos cristãos da nossa tradição, que ainda hoje animam tantos gestos de solidariedade espontânea do povo português... Identidade nacional como mística fraterna, que qualquer português-novo é chamado a abraçar. Nunca como gloríola mitológica. Disso, sim, teremos de falar, Princesa. E talvez tenha de dizer-te de mim, português antigo e meio-português por nascimento, a caminho dos oitenta, com mais de metade da vida passada lá fora, e todavia querendo ser, nos dias de hoje, um português de agora...

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira