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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

  

 

«Era velhíssimo na adolescência, adolescente na maturidade e toda a gente me acha simultaneamente infantil e soturno. (...) Em cinquenta anos, não notei indícios de um destino manifesto ou de um destino humildemente necessário.»

Ao escutar afirmações como esta tornei-me leitora assídua e atenta de VPV.

Em 1964, entrou para O Tempo e o Modo como contributo a fazer a ligação da Igreja às causas da liberdade e da justiça e remir as conivências com o regime ao lado de Alçada Baptista e João Bénard da Costa.

Deste período muito escutei mais tarde falar da sua inteligência e acutilância na capacidade de análise, usando a língua portuguesa com mestria invulgar. O Tempo e o Modo viria a ser um lugar onde estava porque estava com seus amigos.

VPV historiador e grande cronista, vigoroso no raciocínio mordaz, sempre entendeu que em Portugal nos faltava o pudor que a História ensina, país este em que o menor sinal de boa-fé apenas aproveita aos patifes.

Referia muitas vezes que por aqui a épica do faz-de-conta, fazia viver a pontuação como o grande modo de ter ideias construídas, saltando as letras da escrita pelos entredentes autoritários das vírgulas afinal incapazes de conhecer os pontos de interrogação.

A adesão ao projeto d’ O Independente foi muito importante e decisiva para aquele Jornal. Paulo Portas reconhece VPV como um magnífico colunista, grande amigo e uma das pessoas mais inteligentes que conheceu.

Neste brevíssimo ponto sobre VPV, de referir que entendi os seus imensos recursos ao cinismo, como um faro para algo que não está na vida, já não ou ainda não, como já se escreveu.

Li este livro pela mão da “Contraponto” - Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente- num verdadeiro e tentador repente. 

 

Teresa Bracinha Vieira

A VIDA DOS LIVROS

De 24 de fevereiro 1 de março de 2020

 

“Glória – Biografia de J.C. Vieira de Castro” de Vasco Pulido Valente (Gótica, 2001) – tornou-se um livro de referência na historiografia portuguesa, num importante conjunto de outras obras de um autor que marcou indelevelmente a literatura, o comentário e a ciência da História.

 

 

UM LIVRO DE HISTÓRIA
 Significativamente, o autor começa por deixar claro: “Este é um livro de história. Não é um livro de história a fingir de romance, nem um romance ‘documental’. Convém começar por dizer isto para que não haja confusões. As variantes do positivismo que ainda hoje dominam a disciplina foram reduzindo ao geral e abstrato a investigação sobre o passado”. Em lugar do desinteresse do indivíduo e de um mundo assético, de onde desapareciam a irracionalidade e a imaterialidade da vida, o historiador desta obra apresenta-se a descrever, a partir de uma rigorosa análise dos documentos e dos acontecimentos, a vida tal como a conhecemos. Vasco Pulido Valente procurou na biografia solução para a tal dificuldade que afastava a história e a vida. Por isso, abalançou-se na análise de figuras como o Duque de Palmela, Costa Cabral, Marcelo Caetano e Paiva Couceiro, até que se deparou com um caso muito especial: o de José Cardoso Vieira de Castro (1837-1872). Trata-se de um dirigente académico com alguma importância, um jornalista menor, um escritor sem talento, um político sem poder, e ainda por cima, um criminoso e um degredado. Todos estes elementos permitiram a consideração de alguém que, pelas promessas que representou, pelos meios que frequentou, pela personalidade que tinha, nos revelou um período social, cultural e político extremamente rico, que permite ao leitor adentrar-se no século XIX português tal como foi. E assim, a partir de uma figura dramaticamente célebre, podemos encontrar uma historiografia capaz de entender a complexidade da vida, desde a singularidade de cada um à encruzilhada das relações humanas. “Vieira de Castro não queria perder a vida num remoto canto da província. Queria conquistar Lisboa e o país. Queria glória”. A intenção do historiador foi de ‘mostrar’ como agiam, sentiam e pensavam os portugueses letrados de meados dos século XIX e não de os meter nos seus casulos…” E assim seguimos, passo a passo, as personagens e os acontecimentos, os encontros e os desencontros.

 

UMA AMIZADE FUNDAMENTAL
No caso de Vieira de Castro deparamos com uma ambição que tem a ver com uma carreira política. No ano de 1860, algo de fundamental ocorrera. Camilo Castelo Branco e J.C. Vieira de Castro criaram amizade especial, quando o romancista se refugiou na Casa do Ermo, solar ancestral da família do segundo, por aquele se encontrar em fuga devido aos amores com Ana Plácido, casada com Pinheiro Alves… E lemos “As Memórias do Cárcere”, “no ‘Ermo’ me esperava com os braços abertos e o coração no sorriso José Cardoso Vieira de Castro. Falseei a verdade. Vieira de Castro esperava-me a dormir naquela madrugada dele, que era meio-dia no meu relógio”. Depois, Vieira de Castro escreve a biografia de Camilo, que merece elogios de circunstância de Júlio Dinis. E volta a Coimbra, com a intenção de terminar o curso, enguiçado pelos sucessos do líder estudantil. Mas quando regressa, depara-se com o movimento encabeçado por Antero de Quental, notando-se uma contradição evidente na relação entre ambos. Vieira de Castro pensa na carreira política. Em 1864, o sucesso em Coimbra determina, de facto, a sua candidatura e eleição em 1864 pelo partido Regenerador num sufrágio suplementar para o círculo de Fafe. “Acabara enfim o exílio d’O Ermo, daquela província que o ‘sufocava’. Vieira de Castro podia vir para Lisboa em busca de uma glória que não se comparava aos triunfos de Coimbra, nem às pequenas vitórias de Fafe, nem sequer à meia celebridade que tinha no Porto. No Parlamento e com a retaguarda assegurada por Ferreira de Melo, a sua presa, a sua audiência era o país inteiro”. Vai morar para Santa Catarina, a dez minutos de S. Bento. “As janelas dominavam o Aterro e o Tejo” do Montijo até ao mar: um esplêndido “panorama”. “Como qualquer ‘elegante’ estabeleceu relações de ‘boa sociedade’”. Em abril de 1866 participa num jantar oferecido por Bulhão Pato, onde estavam o visconde de Seabra, Rodrigues Sampaio, o barão da Trovisqueira (a quem Vieira de Castro devia muitíssimo dinheiro), Rebelo da Silva, Francisco Luís Gomes, Eduardo Cabral, Tomás de Carvalho (…), Luís Augusto Palmeirim, Teixeira de Vasconcelos e Ramalho Ortigão”…

 

UM ORADOR ESQUECIDO
Na Câmara dos Deputados evidenciar-se-á a sua verve tribunícia. Depressa o orador ganha notoriedade, que ultrapassa fronteiras e chega ao Brasil. O seu modelo é o grande José Estevão, o mais célebre dos oradores parlamentares. É recebido com honras de triunfador no Brasil, e aí se casa no Rio de Janeiro (em fevereiro de 1867) com Claudina Adelaide Gonçalves Guimarães, filha do comendador António Gonçalves Guimarães, natural de Fafe e um dos diretores do Banco Rural e Hipotecário do Brasil. De regresso a Portugal, a jovem não parece conformada com uma vida provinciana, prefere uma casa na Rua das Flores, onde o casal se instala, recebendo uma tertúlia literária, onde estão Ramalho Ortigão, António Rodrigues Sampaio, e José Maria Almeida Garrett, sobrinho do célebre Garrett. Em 7 de maio de 1870, sábado, Vieira de Castro surpreende a jovem mulher a escrever uma carta a José Maria Almeida Garrett e tudo se precipita e se desmorona. Iludindo uma solução pacífica, para a não deixar fugir, Vieira de Castro mata a mulher, desafiando sem sucesso o jovem literato para um duelo, que este recusa. “Quando se entregou à polícia, a 10 de maio, Vieira de Castro não mediu o horror que o seu crime ia inspirar na ‘opinião pública’. Não acreditava que a sociedade que o aplaudira como um ‘ídolo’, ‘repentinamente o repelisse como um monstro’. Estava, aliás, seguro de que seria absolvido: era vítima, não era o culpado. A Camilo escreveu com toda a frieza: ‘Fizeste bem, ou antes, não fizeste mal em dizer que eu não tenho remorsos nenhuns’. Naqueles primeiros dias só se afligiu com a ruína da sua carreira política. A morte de Claudina não passava de uma desgraça que o privara de um grande e decisivo triunfo”… Em 1871 partiu para Luanda para cumprir a pena de degredo a que fora condenado, de 15 anos. A morte condená-lo-ia apenas um ano depois. O silêncio foi a regra. Poucos o recordaram. Camilo foi exceção: falou do “atribulado mártir” e da “divina Providência que lhe comutara em agonia de instantes o suplício de 15 anos”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 16 a 22 de julho de 2018

«O Fundo da Gaveta» de Vasco Pulido Valente (D. Quixote, 2018) fala-nos da Contra-Revolução e do Radicalismo no Portugal do século XIX.

 

 

ENTRE IDEIAS E REALIDADE
Na capa estão duas imagens – um painel de azulejos sobre a primeira constituinte portuguesa (4 de julho de 1820), com Manuel Fernandes Tomás a discursar (como acontece na sala de sessões do Parlamento) e uma Alegoria à Primeira Revolução Liberal do Porto, de 24 de agosto de 1820. As imagens completam-se e correspondem à apresentação dos dois ensaios que constituem o presente volume – de facto, há um confronto na estabilização do constitucionalismo português entre as ideias e a realidade, ente os princípios e as contradições sociais. Os dois ensaios, correspondendo a dois períodos bem diferentes, completam-se e revelam um país inseguro e heterogéneo. No primeiro caso, falamos de 1823-1824, da Vilafrancada e da Abrilada, movimentos que interromperam a vigência fugaz da Constituição de 1822 e que abriram caminho à restauração absolutista e à guerra civil (1828-1834). No segundo caso, fala-se do que é designado como “ressurreição e morte do radicalismo” (1864-1870), depois de pelo menos duas guerras civis, e do facto de com a “Regeneração” de 1851 e o “Ato Adicional” (1852) ter sido enterrado o machado de guerra pelas forças políticas mais significativas, através de uma solução constitucional muito próxima da Constituição de 1838, que podia contentar a direita e a esquerda liberais, no dealbar do rotativismo…

 

QUE ALTERNÂNCIA?
A tentação fusionista e a ausência de uma verdadeira alternância política formal geraria esse movimento algo especial que teria o condão de pôr termo a uma solução à qual faltava um espaço para a respiração e para a afirmação dos verdadeiros descontentes. Se no primeiro ensaio, assistimos à tentativa dos radicais instalados ainda no poder reforçarem posições contra a crescente influência dos partidários do “Ancien Régime” absolutista, no segundo já os radicais perderam alguma força real e procuram apenas recuperar espaço de manobra. Perante estes dois quadros, e com uma diferença de quase quarenta anos, encontramos o mesmo País e a mesma procura de instituições civilizadas ou aptas as representar um povo insatisfeito e bem diferenciado entre “a cidade e as serras”, entre a urbanização e o campo. Na Vilafrancada o rei moderou os ímpetos de D. Miguel e prometeu um “justo meio”. Nomeou uma Junta Preparatória presidida por Palmela para redigir uma Carta Constitucional que prometera no lugar da Constituição, segundo uma transação que permitisse aos dois lados renunciarem a algumas pretensões. Houve uma repressão branda. Mas os absolutistas criticavam a tolerância com jacobinos e pedreiros e temiam que a Carta “administrada por gente como Palmela e Subserra, servisse de passagem para o radicalismo”, em vez de ser “o melhor remédio para ele”. Assim, a ideia de Carta foi posta na gaveta e Palmela passou a pensar numa “compilação das normas de direito público português compatíveis com o sistema representativo”. O ambiente geral externo e interno não permitiu esse caminho. E o partido miguelista acalmou. Mas o que surgiu foi um “absolutismo mitigado, menos despótico do que arbitrário e, na essência, moribundo”. E como a obra jacobina ficara no limbo, os partidários de D. Miguel temiam que os moderados pudessem permitir a sua sobrevivência. E ainda por cima, havia a esperança vã de evitar a perda definitiva do Brasil. Aliás, essa parte relativa ao Brasil merece leitura atenta, já que desmonta muitas ideias nessa matéria…

 

FICAR EM CASA…
É verdade que D. Pedro rompera com Portugal por não aceitar a posição dos constituintes, mas tudo avançara muito já, o acordo era impossível, uma solução negociada não podia funcionar e as potências europeias consideravam que a independência brasileira com D. Pedro estava desenhada nos astros, mesmo que o seu reconhecimento não fosse imediato. Acrescia que o exército não estava disposto a fazer uma guerra para recuperar o Brasil. Preferia ficar em casa. E assim, no momento próprio, D. Miguel deu o golpe definitivo (aproveitando ventos favoráveis) com a Abrilada… Muita água correu sob as pontes, desde o assassinato do marquês de Loulé até à misteriosa morte do próprio rei… Apesar de Herculano sempre ter alertado os regeneradores para nunca perderem a ideia de alternativa, o certo é que as circunstâncias e a oposição a Sá da Bandeira levaram a uma “fusão”, composta por Fontes, Sampaio, Martens Ferrão, Loulé, Braamcamp e Mendes Leal. Seria uma “Regeneração” pura, baseada nos melhoramentos. E a “fusão” tornou-se governo, mas não pediu dissolução do Parlamento. Rodrigo da Fonseca disse que preferia comprar deputados feitos a fazê-los. E assim viveu dois anos e três meses. Mas a opinião radical manifestou descontentamento forte pelo oportunismo campeante. Os ventos não corriam de feição, já em 1866, e a suposta concórdia universal confrontou-se com sinais crescentes de crise social, financeira e económica – apesar de medidas importantes como o novo Código Civil e a abolição da pena de morte, que já vinham detrás. As leis contra a mendicidade de Martens Ferrão suscitaram debates acesos, o défice e a dívida pública descarrilavam, a austeridade veio, a supressão de quatro distritos e medidas administrativas mal recebidas geraram todas as condições para o renascimento de uma oposição radical – condições que o anúncio de um eventual novo imposto de consumo veio a reforçar. Os comícios multiplicavam-se, designados como meetings, o ambiente era de descontentamento generalizado. O Centro da Travessa da Queimada (criado pelo conde de Peniche) unira-se à União Patriótica do Porto e propunha um ambicioso programa sobretudo em matéria fiscal. A agravar tudo, o ano agrícola de 1867 foi desastroso, nos cereais, nas vindimas, nos olivais e pomares. Os preços e o desemprego subiram em flecha. O bode expiatório são as medidas do governo. O copo transvasava e o clima é de insurreição. A Janeirinha eclodiu no início de 1868, num violento levantamento popular inaudito. Nasce uma maioria capitaneada por António José de Ávila – “mistura improvável de ‘conservadores endurecidos’, ‘progressistas convictos’ e ‘quase republicanos’, incapaz de unir e permanecer unida”. E não houve milagres. A situação continuou difícil, com a fome e o desemprego a crescerem – o que culminaria na queda de Ávila em julho. Loulé foi encarregado de formar governo, mas houve uma forte reação contrária, motivada pelos radicais. O Bispo de Viseu, D. António Alves Martins, foi então convidado. A Janeirinha dos políticos vencia – com Viseu, Sá da Bandeira e Latino Coelho – e chegava ao governo. O programa respeitava a simplificação dos serviços, a luta contra a corrupção e a descentralização. Mas depressa nasceu um descontentamento larvar, a partir dos funcionários atingidos pelas reduções, agravado pela crise financeira e pelo insucesso nas negociações com os mercados. O ministério cairia, mas houve manifestações para a sua manutenção, o que obrigou o rei D. Luís a convidar Saldanha, embaixador em Roma, que no caminho desistiu do encargo. O rei dissolveu a Câmara, mas os governamentais (Viseu e Sá) foram fugazmente reconduzidos. As dificuldades avolumaram-se e Loulé suceder-lhes-ia. “A derrota de Sá e Viseu e o regresso dos históricos mostravam que as receitas do radicalismo para a crise nacional não se podiam aplicar ou eram vãs, mas também não existia uma alternativa conservadora”… E o ocaso dos radicalismos corresponderia à tentativa desastrada do Duque de Saldanha de fazer ainda vencer um programa de rutura. Não conseguiria. Porque já se estava num outro tempo…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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