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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 18 a 24 de julho de 2022.


Francisco de Holanda (1517-1585) encontrou-se com Miguel Ângelo e percorreu então grande parte de Itália para aprender e para conhecer e desenhar obras da Antiguidade e da arte italiana renascentista do momento.

 

NOS PASSOS DE FRANCISCO D’HOLANDA
A visita à Capela Sistina, em condições únicas de serenidade e atenção, foi o começo da visita à Roma dos portugueses, de que já comecei a falar, graças à hospitalidade de José Tolentino Mendonça. A hora muito matutina, permitiu chegar àquele lugar único, sem o rebuliço habitual, num silêncio quase sepulcral. E quando a luz se abriu, toda a teatralidade se tornou evidente, na diversidade dos quadros e personagens. O nosso qualificado guia falou-nos então de um jovem português aqui chegado nos idos de 1538. “Sendo eu da idade de XX anos me mandou El-Rey (…) a ver Itália e trazer-se-lhe muitos desenhos de coisas notáveis dela”. Referia-se aos passos de Francisco de Holanda (1517-1585), autor de “Da Fábrica que falece a Cidade de Lisboa”, figura notável, mas pouco conhecida dos portugueses, que no percurso dessa viagem se encontrara com a Imperatriz Isabel de Portugal, casada com Carlos V de Habsburgo, que o jovem muito admirava, por ser filha de D. Manuel I, e por ter encomendado a seu pai António de Holanda o retrato do futuro rei Filipe I, ainda criança, ao seu colo. Francisco de Holanda percorreu então grande parte de Itália para aprender, ou seja, para conhecer e desenhar obras da Antiguidade e da arte italiana renascentista do momento. Com maior ou menor intimidade, a verdade é que o português se encontrou com o já muito consagrado mestre Miguel Ângelo, no momento crucial da feitura do Juízo Final, com quem partilhou ideias e tirou ensinamentos, graças à missão de que vinha incumbido por D. João III, à amizade com os Imperadores e ao empenho do notável D. Miguel da Silva, conhecido como Cardeal de Viseu, sobrinho da célebre Santa Beatriz da Silva e do Beato Amadeu da Silva. No pórtico da Basílica de Santa Maria de Trastevere, encontrámos a última morada deste, falecido em Roma a 5 de junho de 1556. Quanto à proximidade de Francisco de Holanda relativamente a Miguel Ângelo, se dúvidas houvesse, os estudiosos como Joaquim de Vasconcelos, invocam uma carta enviada em 1553 ao genial pintor com o pedido de um desenho seu para guardar como lembrança dessa amizade.


IMERSÃO TOTAL NA CIDADE ETERNA
Foi assim que iniciámos uma imersão total na Cidade Eterna, deparando-nos com um novo humanismo, centrado no conhecimento, numa síntese fecunda entre o Antigo Testamento, a influência clássica (bem presente na representação das Sibilas na Capela Sistina) e a Boa Nova de Jesus Cristo. Num dia de sol e calor, na colunata da Praça de S. Pedro lembrámos a presença de dois portugueses: Santo António de Lisboa e de Pádua (“Il Santo”, sem mais qualificação, como os italianos o designam, em homenagem suprema ao seu extraordinário carisma) e Santa Isabel, Rainha de Portugal. A bonomia do Papa Francisco, que testemunhamos, contrasta com as dificuldades que sente ao movimentar-se. Depois, por um momento, encontramos no interior da Basílica de S. Pedro, o único português que está eternizado na pedra, S. João de Deus, fundador da Ordem dos Hospitalários. Enquanto caminhamos, recordamos que foi o controverso Papa Nicolau III a tornar o Vaticano, e a memória do martírio de S. Pedro, centro da Santa Sé. E logo lembramos João XXI, a quem Nicolau III sucedeu, Pedro Hispano (1215-1277), o único Sumo Pontífice português (1276-77), que merece a Dante um destaque especial na “Comédia”: “Pietro Spano lo qual giú luce in dodici libelli…” (“Paraíso”, Canto XII). Visitá-lo-emos em Viterbo e enaltecemos a importância da sua obra multifacetada de Médico, de Teólogo, Matemático e Filósofo – autor do “Thesaurus Pauperum” (com uma centena de edições e tradução em 12 idiomas), das “Summulae Logicales” ou de “De Curis Oculorum”.  Referir os portugueses em Roma, quer em presença física, quer na influência é uma tarefa inesgotável – e apesar de não os conhecermos, numa primeira impressão, depressa compreendemos a sua influência. Ao passearmos nos jardins do Vaticano, vamo-nos apercebendo de uma história em que tudo na evolução do mundo por aqui passa. Não podemos entender os acontecimentos de dois milénios sem considerar a complexa intervenção dos Pontífices, que herdaram a tradição imperial romana, mas também da Cúria, dos Conclaves, dos conflitos com o Sacro Império, das virtudes e dos pecados humanos, das relações que se vão alargando e das fronteiras do mundo que se consolidam ou desfazem. Quando ao início da tarde nos reencontramos na Porta de Santa Ana com o Arquivista e Bibliotecário da Santa Sé, que toda a manhã nos acompanhara, mergulhamos no seu mundo maravilhoso, outrora identificado como secreto, mas hoje submetido às regras gerais dos arquivos. Em outubro de 2019, o Papa Francisco mudou o título centenário do Arquivo Secreto do Vaticano para Arquivo Apostólico, em nome da verdadeira vocação da instituição – ser um revelador de verdade e não de segredos. A Biblioteca Apostólica Vaticana é a mais antiga da Europa foi fundada por Nicolau V (1397-1455) com a herança das antigas bibliotecas papais. Em 1475, o Papa Renascentista Sisto IV (1414-1484), a quem se deve a designação da Capela Sistina, que vamos encontrando a cada passo da nossa viagem, decidiu permitir o acesso dos eruditos aos mais de dois mil e quinhentos textos ali reunidos.


ARQUIVO E BIBLIOTECA VATICANAS
No Arquivo e Biblioteca tivemos uma tarde extraordinária. São impressionantes os números, a extensão linear das estantes, os desafios ligados à preservação de documentação milenar e à inovação tecnológica imparável. Ali podemos conhecer melhor a história milenar exaustivamente documentada. 1,6 milhões de livros impressos, 80 mil livros manuscritos, 100 mil impressões (gravuras e estampas), 350 mil moedas e medalhas. José Tolentino Mendonça fala-nos, com entusiasmo, de um antídoto contra a amnésia. O património cultural e a sua defesa obrigam-nos a preservar a memória como realidade necessária e presente. “Uma das missões fundamentais da Biblioteca Apostólica é a de preservar alguns dos mais antigos testemunhos da tradição manuscrita das Sagradas Escrituras: só isto seria suficiente para considerá-la como o coração da Igreja” – lembra o poeta e cardeal, mas acrescenta, lembrando o Papa Francisco: aqui correm dois grandes rios, a palavra de Deus e a palavra dos homens. Quando olhamos o manuscrito do Cancioneiro da Vaticana aberto numa das páginas da poesia de D. Dinis (73 cantigas de Amor, 51 cantigas de Amigo e 10 de Escárnio e Maldizer) sentimos um testemunho vivo vindo da profundeza do tempo – «Amiga, bom grad’haja Deus / do meu amigo que a mi vem / mais podedes creer mui bem / quando o vir dos olhos meus, / que poss’aquel dia veer / que nunca vi maior prazer». E se sentimos como que uma vertigem perante das primeiras provas da nossa língua, tornada universal, e designada na Ásia como “papiar cristão”, somos levados às origens da nossa identidade, interpelados pela certidão de 1179 do Papa Alexandre III. Nos corredores e recantos daquele edifício quantos mistérios desvendados e por desvendar?  

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

FRANCISCO: “UM PECADOR QUE PROCURA FAZER O BEM”

Papa na Hungria.jpeg

 

Foi nestes termos — “Eu sou um pecador que procura fazer o bem” — que o Papa Francisco se definiu numa longa entrevista à rádio Cope, Espanha, a primeira depois da operação que lhe tirou 33 centímetros de intestino. “Levo uma vida totalmente normal”, “como o que quero”, “continuo vivo”. E não pensa em renunciar, mesmo se “sempre que um Papa está doente corra uma brisa ou um furacão de Conclave”, a pensar na eleição de um novo Papa. “Nem me passou pela cabeça”. E vai continuar com as reformas, tudo o que foi pedido pelos cardeais antes da sua inesperada eleição. “Creio que ainda há várias coisas por fazer, mas não há nada de inventado por mim. Estou apenas a obedecer ao que se estabeleceu na altura, embora talvez alguns não se tenham apercebido do que estavam a dizer ou de que as coisas eram tão graves...”. As viagens vão continuar normalmente — as próximas são à Hungria e Eslováquia. A propósito, estará amanhã na Hungria, no encerramento do Congresso Eucarístico; neste contexto, o jornalista perguntou-lhe como será o encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán, e Francisco: “uma das coisas que tenho é não andar com livreto: quando estou diante de uma pessoa, olho-a nos olhos e deixo que as coisas fluam...”.

O diabo anda à solta no Vaticano? Francisco riu-se e respondeu que ele anda por todo o lado, também no Vaticano, mas tem sobretudo medo dos “diabos educados”: “tocam à campainha, pedem licença, entram em casa, fazem-se amigos..., tenho pavor aos diabos educados. São os piores, e a gente engana-se muito, muito.”

Sobre a corrupção no Vaticano: “é preciso evitar isso por todos os meios, mas é uma história antiga”. Quer que a Justiça se torne mais independente, eficaz... “Este é o caminho, não tenho medo da transparência nem da verdade. Por vezes dói e muito, mas é a verdade que nos torna livres”. A propósito do julgamento iminente do cardeal Becciu: “Quero de todo o coração que seja inocente..., mas é a Justiça que vai decidir.”

Sobre a pedofilia do clero, evidentemente, “tolerância zero”. Presta homenagem ao Cardeal O’Malley, de Boston, que está na base da Comissão de Defesa de Menores. Desgraçadamente, é um drama na Igreja, mas, infelizmente — veja-se as estatísticas —, não é só na Igreja, é “um problema mundial e grave”. E fala sobre a pornografia infantil: “Pergunto-me às vezes como é que certos governos permitem a produção de pornografia infantil. Que não digam que não sabem. Hoje, com os serviços secretos, sabe-se tudo. Para mim, é das coisas mais monstruosas que vi.”

Sobre a reforma da Cúria, fala em “ajustes” (por exemplo, junção de Dicastérios (Ministérios), com um leigo ou leiga à frente...), não de revolução. Está-se a trabalhar na Constiuição Apostólica “Praedicate Evangelium” (Anunciai o Evangelho): “o último passo é eu lê-la — e tenho de lê-la, pois tenho de assiná-la e tenho de lê-la palavra a palavra —, não vai ter nada de novo em relação ao que se está a ver já.”

Sobre as “missas tridentinas” (em latim e de costas para o povo), diz que ele não é de “dar murros na mesa, não consigo, até sou tímido”. Mas impôs limites. E quer que “a proclamação da Palavra seja na língua que todos entendam; o contrário é rir-se da Palavra de Deus”. Sobre o “Caminho Sinodal” da Igreja na Alemanha, atendendo aos receios da Cúria, diz que não se colocaria numa atitude “demasiado trágica”. “Em muitos Bispos com quem falei não há má vontade. É um desejo pastoral, mas há que ter em conta algumas coisas que eu explico numa carta.”

Sobre a ecologia, afirma que é “um convertido”, pois durante demasiado tempo não prestou atenção. Quando se apercebeu, convocou “um grupo de cientistas que me expuseram os problemas reais, não as hipóteses. Apresentaram-me um belo catálogo e com razões. Passei-o a teólogos que reflectiram sobre isso. E assim se foi preparando a ‘Laudato Sí’.” E estará em Glasgow, que espera “nos meta mais na linha”.

A propósito de uma pergunta sobre a eutanásia, pede que nos situemos: “Estamos a viver uma cultura do descarte. O que não serve deita-se fora. Os velhos são material descartável: incomodam. Os doentes mais terminais, também, os bebés não desejados, também, e são mandados para o remetente antes de nascer.” Depois, quando se pensa nas periferias, temos “o descarte de povos inteiros. Pense nos rohingyas...”. Quanto aos migrantes: “A minha resposta seria: quatro atitudes: acolher, proteger, promover, integrar. Vou à última: acolhidos, se não são integrados, são um perigo, porque se sentem estranhos.” Mas também eles têm de se integrar, digo eu.

Sobre a Europa: “Para mim, a unidade da Europa neste momento é um desafio. Ou a Europa continua a aperfeiçoar e a melhorar na União Europeia ou desintegra-se.” E que pense no inverno demográfico, com a inversão da pirâmide das idades. Quanto ao Afeganistão: “É uma situação difícil. Pelo que se vê, não se tiveram em conta — parece, não quero julgar — todas as eventualidades”. Sobre a China: “O que à China se refere não é fácil, mas estou convencido de que não se deve renunciar ao diálogo. Podem enganar-te no diálogo, podes equivocar-te, tudo isso..., mas é o caminho. O fechamento nunca é caminho.” O mesmo quanto ao islão...

As suas maiores desilusões? “Tive várias na vida e isso é bom, pois fazem-nos aterrar de emergência. O problema está em levantar-se... Creio que perante uma guerra, uma derrota, um fracasso ou o próprio pecado, o problema é levantar-se e não permanecer caído.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 de setembro de 2021

BENTO XVI. UMA VIDA (2)

Padre Ratzinger no Concílio.jpg

 

Estudante de Teologia, J. Ratzinger destacou-se entre todos e viveu esses anos mergulhado na grande ebulição teológica que se seguiu à Guerra, preparando um novo futuro para a Igreja. A orientação era o diálogo entre a fé e a razão, a racionalidade e a beleza, o diálogo ecuménico, a “Teologia Nova”..., seguindo a verdade, porque “a renúncia à verdade não resolve nada, pelo contrário, leva à ditadura do arbitrário”.

 Foi ordenado padre  com o irmão a 29 de Junho de 1951. Tornou-se capelão, ouvindo confissões aos Sábados durante 4 horas e aos Domingos celebrando duas Missas e duas ou três pregações. Doutorou-se em Julho de 1953 com uma dissertação sobre “Povo e Casa de Deus na doutrina de Agostinho sobre a Igreja”.  Ficou uma palavra marcante de Santo Agostinho, ao definir a Igreja como “Povo de Deus espalhado pela Terra”.

Para poder realizar o seu sonho de fazer carreira como Professor de Teologia, preparou uma tese de habilitação (Habilitationsschrift) sobre a revelação: Offenbarung und Heilsgeschichte nach der Lehre des heiligen Bonaventura (Revelação e história da salvação segundo a doutrina de São Boaventura). Os dois exemplares exigidos foram entregues na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Munique no Outono de 1955. Aí, começou um drama de abismo. Michael Schmaus comunicou de modo seco, “sem qualquer emoção”, que tinha de rejeitar a tese. Foi tal o choque que da noite para o dia o cabelo de Ratzinger ficou grisalho. Teria de deixar a Universidade e, pensando sobretudo nos pais, “seria uma catástrofe, se tivesse de deixá-los na valeta”. Razões para a rejeição, por parte de Schmaus e outros professores: Ratzinger sabe “ligar fórmulas floridas, mas onde está o cerne da questão?”, “evita definições precisas”, é “demasiado emocional”; mais: foi considerado “quase perigoso”, “um modernista”, “progressista”, acabando numa “compreensão subjectivista da revelação”...

No meio da tempestade, o seu orientador de tese, Gottlieb Söhngen, conseguiu que o trabalho não fosse rejeitado, mas devolvido para melhoria. “Joseph, que quer Schmaus?”, brincam os colegas, gozando. Resposta: “Ser importante.” Naquelas semanas dramáticas, não se zangou com Deus, mas “pediu-lhe suplicantemente auxílio”. E pôs-se ao trabalho, passando a tese de 700 para 180 páginas. No dia 21 de Fevereiro de 1957, depois do debate no Grande Auditório da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, ouviu a palavra salvadora: “Aprovado”. O que é facto é que tanto a sua dissertação de doutoramento sobre a Igreja “Povo de Deus” como a tese de habilitação sobre a revelação encontrarão forte eco nos documentos do Concílio Vaticano II. Entretanto, “era muito estimado entre os estudantes, como uma ‘voz da linha da frente’, pois o que fazia era quase uma revelação.”

O Papa João XXIII foi eleito no ano seguinte, 28 de Outubro de 1958, e, em Janeiro de 1959, teve a ideia de convocar um Concílio ecuménico, dando cumprimento a uma necessidade que já vinha do tempo de Pio XII. Desta vez, não era para condenar heresias, “não se tratava de resolver nenhum problema determinado”, mas do todo. “O cristianismo, que tinha construído e formado o mundo ocidental, parecia perder cada vez mais a sua força formativa, parecia cansado”, sublinhou Ratzinger. Ele tinha, portanto, de “erguer-se no Hoje, outra vez, para poder tornar-se de novo formativo para o Amanhã”. Ratzinger ousa olhar para o futuro e torna-se, em pouco tempo “um autêntico fã” de João XXIII: “ele fascinou-me desde o início, também por causa do seu modo não convencional, por ser tão directo, tão simples, tão humano”.

Entretanto vai-se procedendo à formação das Comissões preparatórias do Concílio.  O cardeal J. Frings, de Colónia, era membro da Comissão Central. Ora, pasme-se, ele que se tinha comprometido com um discurso em Génova, foi ter com Ratzinger, já Professor da Universidade de Bona: “Senhor Professor, pode prepará-lo?” O discurso foi feito e publicado e, numa audiência, diz João XXIII a Frings, abraçando-o: “Eminência, tenho que agradecer-lhe. Li esta noite o seu discurso. Que feliz coincidência do pensamento! Disse tudo o que eu penso e queria dizer, mas que eu não saberia dizer.” Frings: “Santo Padre, não fui eu que o fiz, mas um jovem Professor.” João XXIII: “A minha última encíclica também não fui eu que a escrevi, mas um perito.” O biógrafo, Peter Seewald, confronta então o discurso de abertura do Concílio, a 11 de Outubro de 1962, de João XXIII, e o discurso de Frings, isto é, de Ratzinger, para mostrar as coincidências.

No seu texto, Ratzinger apresenta as exigências do Concílio face às mudanças sociais do mundo, que vê marcado por três grandes movimentos: a globalização, a tecnicização e a crença na ciência. Uma das causas principais do ateísmo moderno está na “autodivinização da humanidade”. Mas a ciência não pode dar resposta à “necessidade da luta ética”, pois não toma a sério o homem enquanto ser moral, com liberdade e consciência. Missão do Concílio tem, portanto, que ser, em diálogo com a modernidade, formular a fé cristã como uma alternativa autêntica, vivível e digna de ser vivida. A Igreja como Povo de povos tem que ter em conta a pluralidade de formas da vida humana. Num mundo global, o catolicismo tem de ser verdadeiramente católico, plural, concretamente a liturgia “tem que ser tanto um espelho da unidade da Igreja como uma expressão adaptada das particularidades dos respectivos povos.”

(Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 AGO 2020

BENTO XVI. UMA VIDA (1)

 

Encontrei uma vez em Roma Bento XVI, ainda não era Papa. A impressão com que fiquei: um homem afável e tímido. No encontro rápido, falou-me da importância decisiva da pastoral da inteligência.

 

Nos últimos dois meses, foi para mim um prazer intelectual imenso poder ler a sua biografia — são 1150 páginas —, escrita por Peter Seewald: Benedikt XVI. Ein Leben (Bento XVI. Uma vida). Pude acompanhar 90 anos de história, a brutalidade esmagadora da Segunda Guerra Mundial, os filósofos e teólogos que também estudei, a reconstrução da Alemanha e da Europa, os debates teológicos que levaram ao Concílio Vaticano II, a primavera do Concílio e o inverno que se seguiu, Maio de 68, o cardeal Ratzinger como Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, Bento XVI como Papa e a sua renúncia, o Papa Francisco... Em três crónicas simples — previno que a obra não é fácil —, tentarei apresentar rapidamente alguns flashes desta biografia.

 

Uma família modesta: o pai era polícia e a mãe cozinheira. Três filhos: Maria, nascida em 1921, Georg, em 1924, Joseph em 1927, às 4.15 de Sábado Santo. No mesmo dia, às 8.30 já estava na igreja para ser baptizado com a nova água pascal, acabada de benzer, e ao som do canto do Glória: “Cristo ressuscitou”. Ratzinger viu sempre neste acontecimento um símbolo decisivo, que o acompanhou durante a vida toda: Sábado Santo a falar da “situação da história humana, da situação do nosso século, mas também da minha vida. Aí estão, por um lado, a escuridão, a incerteza, a interrogação, os perigos, as ameaças, mas também, por outro, a certeza de que há luz, de que vale a pena viver e avançar. Neste sentido, esse dia a que Cristo preside — misteriosamente oculto e simultaneamente presente — tornou-se um programa para a minha vida”. Foi neste sentido que G. Steiner também escreveu que é em Sábado que vivemos: entre os horrores de Sexta-Feira Santa e a esperança do Domingo de Páscoa.

 

Depois, Hitler. Aos 16 anos Joseph foi chamado para o exército hitleriano, de que desertou aos 18. No caminho do regresso percebe-se mais intensamente a desolação causada pela guerra. “Quando de repente me apresentei vivo diante dele”, o pai nem queria acreditar. E a mãe prepara-lhe de comer. Há pouco, mas a mãe tem salada fresca, um ovo das suas galinhas e um bocado de pão: “Na minha vida nunca mais tive uma refeição tão preciosa como esta refeição simples que a mãe preparou com os frutos da sua horta.”

 

O terror do nazismo influenciou a sua decisão para toda a vida, como ele próprio sintetizou: “Na fé dos meus pais tive a confirmação do catolicismo como um bastião da verdade e da justiça contra aquele reino do ateísmo e da mentira, que o nacional-socialismo encarnou.” O jovem de 18 anos está agora preparado para a entrega radical da sua existência a uma vida para Deus, pois a decisão fundamental veio com o fim da guerra: “Agora, já não tinha nenhuma dúvida quanto à finalidade e objectivos da minha vida, sabia qual era o meu lugar.”

 

Regressou, pois, ao seminário, com o irmão Georg, que comentou que a guerra tinha tornado o irmão “realmente adulto”. A mãe, que se sentiu contente e orgulhosa pelos filhos, não deixou de avisá-los: “Se não for a vossa vocação, é melhor vir embora.”

 

Ratzinger acompanhava as aulas com entusiasmo e diligência. Sente que é necessário um novo começo para a Igreja: “Acreditávamos conduzir a Igreja para um novo futuro”. E vão ficando as influências filosóficas e teológicas que lhe marcarão a vida, concretamente o pensamento dialógico e sobretudo Santo Agostinho: “Sinto-o como um amigo, um contemporâneo que fala para mim”, confessa.

 

Entretanto, esclarece que “durante os seis anos de estudante de Teologia teve dúvidas quanto à vocação e que o assaltaram muitos problemas e perguntas bem humanos: O celibato é realmente para mim? Ser padre é realmente para mim? Estarei preparado para isso para a vida toda? É realmente a minha vocação?” O que é facto é que, já próximo das chamadas “ordens menores”, com a tonsura, caiu enamorado. O biógrafo volta aos últimos encontros com Bento XVI, já retirado, para esclarecer melhor: - “Falou nas suas memórias de um ‘tempo de grandes decisões dolorosas’. Em que consistiu exactamente este sofrimento?” O Papa emérito respondeu, sorrindo com satisfação, que se trata de algo demasiado pessoal, sobre isso não pode dizer nada. — “Enamorou-se de uma rapariga?” — “Talvez”. – “Claro que sim”. – “Poder-se-ia interpretar dessa maneira.” – “Quanto tempo durou este tempo doloroso? Algumas semanas? Uns meses?” – “Mais, mais tempo”. Para quem conhece Ratzinger, comenta o biógrafo, percebe que se trata de uma confissão. Sabe que lhe é exigido um sacrifício, uma renúncia, mas “não se decide contra a amiga, decide-se por algo: seguir uma missão. A luta interior durou muitos meses. Até à ordenação de diácono no Outono de 1950, quando deu ‘o seu Sim convicto”. Quem era a rapariga? Ainda vive? De qualquer forma, o biógrafo escreve que, sendo o amor um dos seus temas centrais como teólogo e Papa, lhe perguntou se o vivenciou pessoalmente com sentimentos profundos ou se isso foi só um tema filosófico. A resposta do Papa emérito: “Não, não. Quem o não experienciou não pode falar sobre ele. Eu senti-o primeiro em casa, com o pai, a mãe, os irmãos. E não quereria entrar em pormenores privados, mas fui tocado por ele em diversas formas e dimensões. Percebi cada vez mais que ser amado e dar amor aos outros é fundamental para se poder viver.”

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Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 AGO 2020

CARDEAL SARAH, PAPA EMÉRITO E FRANCISCO

 

1. Julgo que nunca no Vaticano a Cúria tinha ouvido tais denúncias como as que tem ouvido da parte do Papa Francisco. Que “a corte é a peste do Papado”, que sofre de doenças terríveis como “sentir-se imortal, indispensável”, “uma Cúria que não se autocritica, que não procura melhorar é um corpo doente”, “a fossilização mental e espiritual”, “Alzheimer espiritual”, “a rivalidade e a vanglória”, a doença da “esquizofrenia existencial”, que é a de “quem vive uma vida dupla”, a doença dos “rumores, mexericos, murmurações, má língua”, que pode levar ao “homicídio a sangue frio”, a doença de “divinizar os chefes”...

 

Estas foram as críticas elencadas logo na saudação natalícia de 2014. Têm-se sucedido ao longo dos anos. Neste Natal, Francisco avisou de modo frontal: “Hoje não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais escutados”. Mais: “Já não estamos num regime de cristianismo, porque a fé, especialmente na Europa, mas inclusivamente em grande parte do Ocidente, já não constitui um pressuposto óbvio, e ela até é frequentemente negada, gozada, marginalizada e ridicularizada.” Por isso, concluiu, citando o cardeal Carlo Martini, outro jesuíta, que foi arcebispo de Milão: “A Igreja anda com duzentos anos de atraso. Porque não se mexe? Temos medo. Medo em vez de coragem? No entanto, o cimento da Igreja é a fé, a confiança, a coragem... Só o amor vence o cansaço.”

 

2. Mas a Cúria não está na disposição de mudar, tudo indica. A última bomba-escândalo girou e gira à volta de um livro do Cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e para a Disciplina dos Sacramentos, nascido na Guiné Conacri há 72 anos, que tentou associar como co-autor da obra o Papa emérito. Tem como título, no original francês, Des profondeurs de nos coeurs (Do fundo dos nossos corações), e na capa aparecem Bento XVI e o cardeal Robert Sarah como co-autores.

 

Diga-se, logo de entrada, que Bento XVI já não existe como Papa e veremos que também não há justificação nenhuma para se chamar Papa emérito. Pode, pois, compreender-se o imbróglio causado por esta publicação enganosa. Não é de modo nenhum vontade minha entrar aqui na descrição da confusão causada por este verdadeiro folhetim de péssimo gosto e com toques de ridículo, que envolveu avanços e recuos, afirmações e desmentidos, e que apenas tem por efeito causar ainda maior descredibilização da Igreja. O que parece claro é que, a pouca distância temporal da publicação da Exortação prometida pelo Papa Francisco após o Sínodo de Março passado sobre a Amazónia, que terá em atenção as conclusões por quase unanimidade da vontade sinodal de que o Papa autorize a ordenação de homens casados e que dê o devido lugar à mulher na Igreja, se quis influenciar negativamente Francisco para que trave o que o Sínodo claramente propôs. Aliás, desse modo, travar-se-ia também o caminho sinodal da Igreja Alemã, que vai no mesmo sentido.

 

Para terminar com a confusão, o secretário particular do Papa emérito, arcebispo Georg Gänswein, veio afirmar no passado dia 14 que este “não tinha aprovado nenhum projecto para um livro com dupla assinatura”, Bento XVI “não escreveu o livro a quatro mãos com o cardeal Sarah”.

 

3. O que é claro é que o objectivo do livro é opor-se tenazmente à ordenação de homens casados.

 

Não há dúvida de que Bento XVI se opõe a esta ordenação. Para ele, segundo os textos que continuam no livro de Sarah, há para o padre uma impossibilidade de um vínculo matrimonial, atendendo concretamente à celebração quotidiana da Eucaristia.

 

No entanto, Ratzinger nem sempre pensou assim, é bom lembrar. Em 1970, o então professor de Teologia escreveu um pequeno livro, Fé e futuro, resultado de uma série de palestras radiofónicas sobre como seria a Igreja do ano 2000, no qual se lê: “Certamente conhecerá também novas formas ministeriais e ordenará como sacerdotes cristãos provados, experimentados, que continuarão a exercer a sua profissão. Em muitas comunidades mais pequenas e em grupos sociais homogéneos, a pastoral será normalmente exercida deste modo. Juntamente com estas formas, continuará a ser indispensável o sacerdote dedicado plenamente ao exercício do ministério como até agora.”

 

O texto fatal é do cardeal Sarah: “Há um laço ontológico-sacramental entre o sacerdócio e o celibato. Qualquer enfraquecimento desse vínculo levaria a pôr em causa o magistério do concílio e dos Papas Paulo, João Paulo II e Bento XVI. Peço humildemente ao Papa Francisco que nos proteja definitivamente de tal possibilidade, vetando qualquer enfraquecimento da lei do celibato sacerdotal, mesmo limitado a uma ou outra região.”

 

Este é que é, no meu entender, o ponto essencial da tomada de posição do livro em defesa do celibato sacerdotal. Ora, esta afirmação é inadmissível, até do ponto de vista histórico: não é sabido que havia apóstolos casados, incluindo São Pedro? Não foi apenas no segundo milénio do cristianismo que se foi impondo a lei do celibato obrigatório? Mas, mesmo neste enquadramento, a lei não se estendeu à Igreja católica oriental, onde há padres casados, e Bento XVI decretou que os padres anglicanos que entrassem na Igreja católica continuariam com a sua família. A actual norma do celibato obrigatório não provém de Jesus, que não a impôs aos Apóstolos. São Paulo, estou a citar o teólogo José M. Castillo, afirmou que ele como os outros apóstolos tinham o direito de ir acompanhados por uma mulher cristã, lê-se na Primeira Carta aos Coríntios, e, nas Cartas a Timóteo e a Tito, diz-se que os candidatos aos ministérios eclesiais, incluindo o episcopado, devem ser homens casados com uma mulher, que saibam governar a família, porque “quem não sabe governar a sua própria casa, como vai cuidar da Igreja de Deus?”. Além disso, é sabido que no concílio ecuménico de Niceia, o bispo Pafnúcio, celibatário e venerado confessor da fé, gritou perante a assembleia conciliar “que não se devia impor aos homens consagrados esse jugo pesado, dizendo que é também digno de honra o acto matrimonial e imaculado o próprio casamento; e que não danificassem a Igreja exagerando a severidade.”

 

Onde se quer então fundamentar esse “vínculo ontológico-sacramental entre o sacerdócio e o celibato”? Ele não existe pura e simplesmente. É falsa a ideia de que através da ordenação o padre entraria e ficaria num grau superior de ser em relação aos outros fiéis, como é falsa, consequentemente, a ideia de que o fim do celibato retiraria ao padre esse lugar especial sagrado, que realmente não tem. De facto, o sacerdócio ministerial é apenas um serviço ao único sacerdócio real que é o de todos os baptizados: o padre ou o bispo não são mais cristãos do que os outros cristãos, têm apenas uma função de serviço diferente, e na Igreja há variedade de serviços.

 

Ainda há-de aparecer quem me mostre onde é que no Novo Testamento Jesus ordenou alguém “in sacris”. Mas foi e é este pseudo-carácter sagrado especial do padre e do bispo que esteve e está na base dessa calamidade que o Papa Francisco não se cansa de denunciar: o clericalismo, que reivindica duas classes na Igreja: o clero e o leigo, com estatuto ontológico e não meramente funcional diferente.

 

4. Estou convencido de que, desta vez, Ratzinger acabou por ser utilizado e até manipulado. Ninguém sabe até que ponto. De qualquer forma, todo este episódio vem chamar a atenção para o estatuto do que indevidamente se chama “Papa emérito”. De facto, nada justifica esse título. Pelo contrário. Significativamente, Francisco nunca se chamou a si mesmo Papa, mas simplesmente bispo de Roma. O Papa não é senão o bispo de Roma, e ao bispo de Roma está vinculada a missão da unidade da fé. Assim, Ratzinger é tão-só bispo emérito de Roma, mas não Papa emérito e, consequentemente, não deveria utilizar as vestimentas pontifícias, que só criam a confusão de se pensar que há dois Papas. Até o cardeal Gerhard Müller, um dos representantes da ala mais conservadora da Cúria, veio lembrar: “Que não haja confusões! Não temos dois Papas, existe apenas um, Francisco. Diz-se Papa emérito por cortesia, mas na realidade Bento XVI é bispo emérito”.

 

5. Já este texto estava terminado, quando se soube que tudo indica que o Papa publicará ainda esta semana a Exortação pós-Sínodo sobre a Amazónia.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 JAN 2020

A VIDA DOS LIVROS

De 21 a 27 de outubro de 2019

 

«António Barroso e o Vaticano» de Carlos A. Moreira Azevedo (Edições Alethêia, 2019) revela em 400 cartas inéditas uma das raras figuras da nossa história religiosa que catalisa a densidade das características da sua época, permitindo no percurso biográfico (1854-1918) reunir os grandes debates de um tempo significativo. Situamo-nos, realmente, no cerne da ação missionária nos territórios coloniais portugueses, na mudança de regime da Monarquia para a República e na intensificação da vida pastoral das dioceses.

 

AS MISSÕES ULTRAMARINAS
A história do Real Colégio das Missões Ultramarinas leva-nos a compreender um longo percurso da missionação católica e do Padroado Português, iniciado no século XV, a partir da primeira diocese global no Funchal, que durou até ao século XX, em virtude da evolução histórica, do fim da jurisdição eclesiástica de Macau e sobretudo do Concílio Vaticano II. Com o Seminário de Cernache, devem lembrar-se os Seminários de Rachol (Goa) e de S. José (Macau). A instituição de Cernache do Bonjardim foi criada em 1791 na regência do Príncipe D. João, que viria a ser D. João VI, tendo tido como colégio uma vida difícil em razão da implantação do regime liberal e da República. Pode dizer-se que a figura de D. António Barroso marca decisivamente a abertura de horizontes novos no campo da missionação. Natural de Remelhe (Barcelos), onde nasceu em 1854, foi bispo prelado de Moçambique, bispo de S. Tomé de Meliapor (na costa Este da Índia, atual cidade de Chennai) – onde está viva a memória das primeiras comunidades cristãs da Índia, muito antes da chegada dos portugueses, sob a invocação do apóstolo S. Tomé. António Barroso vai estudar para o Seminário de Braga e dali é transferido em 1873 para o Real Colégio das Missões Ultramarinas. Foi missionário em Angola e Moçambique – sendo célebre o seu relatório sobre o Padroado de Portugal em África. É relevante a presença em Angola e no Congo, entre 1880 e 1888, e depois, como se disse, enquanto Prelado de Moçambique (1892-1895) e como ativo evangelizador em S. Tomé de Meliapor. Ainda se lhe deve a renovação do Colégio da Missões, sendo precursor da Sociedade Portuguesa das Missões Católicas Ultramarinas, atualmente designada como Sociedade Missionária da Boa Nova, hoje dirigida pelo Padre Adelino Ascenso.

 

MODELO DE MISSIONÁRIOS
D. António Ferreira Gomes não hesitou em designar António Barroso como “modelo de missionários”. Foi assim “continuador dos que acenderam no Oriente a luz do Evangelho e lançaram as sementes de uma civilização universalista”. E não esquecemos o que disse o Padre Américo: “Duro, tenaz, rebelde. Uma só cara. Não torceu nem quebrou. Só ele. Porém, a sua grande loucura está no amor dos pobres”. E é significativo o que disse Raul Brandão: “o Bispo é uma grande figura de bondade. Dá tudo o que tem”. Desde 1899, é assim Bispo do Porto e logo se afirma pelas suas excecionais qualidades humanas. Com a proclamação da República, os momentos iniciais são muito difíceis. Quando em 1911 é dada a conhecer a Pastoral do Episcopado Português em que se afirma o desacordo com alguma legislação da República anima-se a luta anticlerical. Os governadores civis proíbem a leitura desse documento. O próprio Bispo do Porto é detido e levado sob custódia a Lisboa, conhecendo o exílio em Remelhe, de onde regressa em 1914. A história tem algo que se lhe diga, uma vez que não se vê em D. António Barroso qualquer promoção da guerra, mas uma atitude crítica sem deixar a perspetiva positiva. A evolução da República vai determinar a afirmação clara do exemplo de D. António Barroso, para além da circunstância política. Depressa houve quem compreendesse, como Raul Brandão, que o prelado tinha por si a autoridade moral do espírito evangélico.

 

UM NOVO MOMENTO
Pode dizer-se que o Bispo do Porto D. António Barroso antecipou o novo tempo. A assistência religiosa durante a Guerra de 1914-18, a abertura do Presidente António José de Almeida à pacificação, a beatificação de Nuno Álvares Pereira, a orientação de Bento XV no sentido do «ralliement» (ou seja, o fim da oposição dos católicos à forma republicana do governo), a autonomia da Igreja relativamente ao Estado – tudo contribuiu para a atenuação da questão religiosa. Com a lei da separação de 1911, previu-se a reforma do Colégio das Missões Ultramarinas. Em 1913 foram criadas as missões laicas em África e Timor. De 1920 a 1926 foram enviadas dez missões laicas para Angola e quatro para Moçambique, sem os resultados pretendidos. D. António Barroso, falecido em 1918, constitui um exemplo de defesa do espírito das missões na perspetiva que viria a ser consagrada pelo Papa Bento XV na Carta Apostólica «Maximum illud», cujo centenário passa este ano como recorda o Papa Francisco. «A vida divina não é um produto para vender – não fazemos proselitismo – mas uma riqueza para dar. E o exemplo de D. António Barroso permite compreender o sentido e a atualidade, ontem como hoje, da Carta de Bento XV: «Sê homem de Deus que anuncia Deus. Eu sou sempre uma missão, tu és sempre uma missão. Quem ama põe-se em movimento». E assim, o destino universal da salvação oferecido por Deus em Jesus Cristo levou o Papa Bento XV a exigir a superação de todo o fechamento nacionalista e etnocêntrico, de toda a mistura do anúncio do Evangelho com os interesses económicos e militares das potências coloniais. Assim o Papa lembrava que a universalidade divina da missão da Igreja exigia o abandono duma pertença exclusivista à própria pátria, à própria etnia… No caso de D. António Barroso, D. Carlos Azevedo afirma mesmo que “era uma personalidade que sabia distinguir o amor à pátria do nacionalismo. (…) Ele não era nacionalista, porque um cristão não pode ser nacionalista, mas tinha amor à pátria e ele demonstrou que podemos ter um grande amor à pátria, mas querer que a pátria esteja ao serviço da humanidade toda e não apenas de nós próprios como está muito na onda, por exemplo, dos nossos dias.” Assim, dá-nos o exemplo, no sentido de que ninguém fique fechado sobre si mesmo. Trata-se de conhecer a História e de fazer dela experiência de aperfeiçoamento – compreendendo que o diálogo é conhecimento mútuo, é razão e fé, é abertura de espírito à dignidade humana e ao amor.     

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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SÍNODO PARA A AMAZÓNIA: UM MINI-CONCÍLIO VATICANO II

                                                         

1. Começou em Roma no passado dia 6 e estará activo até ao próximo dia 27 o Sínodo para a Amazónia. Estão presentes 185 Padres sinodais, mas participam também membros da Cúria, religiosos e religiosas, auditores e auditoras, peritos, membros de outras confissões religiosas, convidados..., o que perfaz, em números redondos, 300 pessoas.

 

Embora de modo expresso se dirija directamente só a uma zona determinada do planeta, ainda que extensíssima e tocando nove países (Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa), a sua temática —“Amazónia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral” — é universal e vai marcar este pontificado com um antes do Sínodo e um depois. Penso que estaremos num processo de recuperação da dinâmica do Concílio Vaticano II, um dos acontecimentos mais importantes, se não o mais importante, do século XX, para a Igreja e para o mundo. O Papa Francisco acentua que a sua missão fundamental é criar “processos” no tempo, irreversíveis, sem possibilidade de voltar atrás, a caminho de objectivos essenciais, que já vêm do Vaticano II. 

 

2. Destaco quatro desses pontos fundamentais, a debater no Sínodo e que influenciarão a Igreja universal.

 

2.1. Logo na terminologia. O Papa quer uma Igreja sinodal, isto é, na qual, como diz o étimo da palavra sínodo, se faça o caminho juntos. Repete constantemente: “a Igreja somos nós todos”. Se é assim, o que é de todos deve ser partilhado por todos. Na véspera da abertura do Sínodo, aquando da imposição do barrete cardinalício aos novos cardeais, lembrou-lhes que não são príncipes, e pediu-lhes “lealdade” e “compaixão”, também no sentido etimológico da palavra: partilhar as alegrias, as tristezas e as angústias de todos, a começar pelos “descartados”, com os quais devem ser samaritanos, e que evitem ser “funcionários”. Um desses novos cardeais, Cristóbal López, arcebispo de Rabat, sabe que assim deve ser, ao afirmar: “Os cristãos são todos iguais, o ser bispo ou cardeal não nos torna superiores a ninguém”. Na Igreja, não pode haver duas classes: os clérigos e os leigos, pois toda a Igreja é uma Igreja de iguais, ministerial.

 

2.2. Francisco propugna por uma “ecologia integral”. Disse-o na sua encíclica Laudato Si, que fica para a História. É a mesma lógica economicista que está na base da depredação da mãe Natureza, a nossa casa comum, e da injustiça social, do escândalo da pobreza e da exclusão de multidões de homens e mulheres. Quando é que se entenderá que o grito dos descartados e o grito da mãe Terra devastada são o mesmo grito e que os pecados ecológicos são pecados contra Deus e contra a Humanidade?

 

Quando se olha para a situação da região panamazónica, percebe-se a urgência de mudar de rumo. Aliás, um conjunto de cientistas de vários países, que inclui o Prémio Nobel Carlos Nobre, acaba de entregar ao Sínodo e dar a conhecer um documento, “Um quadro científico para salvar a Amazónia” (assinam 44 especialistas), no qual se lê que “hoje a Amazónia e os seus habitantes estão ameaçados de extinção, representando a sua agonia uma ameaça dramática para o bem-estar humano, da nossa geração e das gerações futuras.” Constatando que a Amazónia “possui uma imensa riqueza natural, cultural e singular diversidade”, sendo “o maior repositório de biodiversidade do mundo”, apelam “aos governos, às empresas, à sociedade civil e aos povos de boa-fé de todas as partes do mundo para se unirem num esforço comum pelo bem da Humanidade e da Terra hoje e no futuro.”

 

Aí está um desses problemas que exigem o esforço de toda a comunidade internacional e uma nova ordem mundial, no quadro de uma Governança global, já que todos são afectados, sem excepção.

 

2.3. Uma Igreja com rosto amazónico.

 

Muitas vezes me interrogo sobre qual seria a nossa compreensão de Jesus e do Evangelho, se, logo no princípio, a evangelização, em vez de partir de Jerusalém para Atenas e Roma, isto é, para a cultura helenista, tivesse derivado para a China ou para a Índia, por exemplo. A linguagem e a conceptualidade que utilizamos seriam diferentes; por exemplo, o Credo tem muitos conceitos gregos, de tal modo que quando se diz sobre Jesus Cristo: “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”, quem entende hoje esta linguagem?

 

Que é que isto quer dizer? O Evangelho é o mesmo, mas, uma vez que a nossa identidade é dada numa determinada cultura, sempre aberta, a mensagem de Jesus e a fé devem inculturar-se, atender às diferentes culturas, para que possam ser compreendidas e vividas. Juan Carlos Scannone, um dos teólogos de referência e antigo professor do Papa Francisco, acaba de afirmar, contexto do Sínodo: “A fé faz-se cultura e, portanto, não é a mesma coisa ser cristão na Amazónia ou na Espanha, Argentina, Índia ou África. Quando se adoptam formas culturais, há ao mesmo tempo um movimento de encarnação, de purificação e de transformação. Penso que esse momento de inculturação é muito importante, sobretudo nesses povos originários da Amazónia, que são muito diferentes. E, por outro lado, também a sinodalidade, entendida como uma grande orquestra na qual cada um toca um instrumento diferente mas a partir da unidade. A Igreja manifesta-se como uma comunhão e um caminhar juntos.” As Igreja locais são uma porção da Igreja universal e, com a sua identidade cultural, histórica, litúrgico-celebrativa, canónica, enriquecem-na. Há um só Povo de Deus, numa pluralidade de rostos.

 

Dou exemplos. Pensando na ecologia, não terão esses povos uma lição a dar-nos na sua relação contemplativa e familiar com a Natureza, que não pode ser reduzida a um reservatório de energias e possíveis negócios a explorar? Quanto à celebração litúrgica, concretizando quanto à Eucaristia, pergunto: “Se o pão de trigo e o vinho de uva não são elementos essenciais dessas culturas, como o são na cultura mediterrânica, a celebração da Eucaristia não deverá também adaptar-se?”

 

Já na abertura do Sínodo, mas isto é menos importante e quase folclórico, Francisco queixou-se: “Deu-me muita pena ouvir aqui dentro um comentário a dar piadas de mau gosto sobre esse senhor piedoso que na Missa levou, com penas na cabeça, as oferendas ao altar. Digam-me: qual é a diferença entre levar penas na cabeça e o tricórnio que usam alguns funcionários dos nossos Dicastérios?”, e arrancou um aplauso dos presentes na sala. Aqui, entre parêntesis, permito-me um comentário: penso sinceramente que, nos tempos que correm, já é altura de acabar com tanta pompa aquando da criação de cardeais, e, sinceramente, olhando para o barrete e vestimentas cardinalícias, ouvi muita gente, sobretudo jovens, a reclamar algum decoro, para se não cair no ridículo. Já não se trata só de uma questão de simplicidade...

 

2.4. Ordenação de homens casados e os ministérios das mulheres. No Instrumentum Laboris (instrumento de trabalho) para o Sínodo, contempla-se a possibilidade de ordenar como padres homens casados, preferencialmente indígenas, respeitados e indicados pela comunidade, e também identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido à mulher. Apesar da indignação dos rigoristas e ultraconservadores, o tema está a ser debatido no Sínodo e estou convencido de que essa possibilidade se vai tornar realidade, primeiro para a Amazónia e, lentamente, estender-se-á a toda a Igreja.

 

Afinal, não foi isso que aconteceu na Igreja durante o primeiro milénio? A lei do celibato obrigatório só começou a impor-se no século XI. Mesmo depois do Concílio de Trento, no século XVI, a lei não se estendeu às Igrejas católicas orientais e, actualmente, os pastores protestantes que se convertem ao catolicismo continuam com as suas famílias. Há uma pergunta essencial: porventura não é a Eucaristia o centro da Igreja? Sendo assim, o que deve estar em primeiro lugar: a manutenção da lei do celibato ou a possibilidade da celebração eucarística?  No Novo Testamento, por exemplo, na Primeira Carta a Timóteo, lê-se: “É necessário que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, ponderado, de bons costumes, hospitaleiro, capaz de ensinar, que não seja dado ao vinho, que governe bem a própria casa, mantendo os filhos submissos, com toda a dignidade. Pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará ele da Igreja de Deus?”

 

Na presente situação, opor-se a esta possibilidade é um suicídio.

 

E quanto às mulheres? Estão 35 a participar activamente no Sínodo e reclamam poder votar o documento final. Poderá a Igreja continuar a discriminá-las? Não é verdade que Jesus tinha discípulos e discípulas? Não foi a Maria Madalena que Jesus se manifestou após a sua morte para que fosse anunciar aos outros que está vivo, que Ele é o Vivente, a ponto de São Tomás de Aquino, entre outros, lhe chamar a “Apóstola dos Apóstolos”? No princípio, não houve mulheres cristãs que presidiram à Eucaristia? Que razões se opõem à sua ordenação? Só para dar um exemplo, cito o maior teólogo católico do século XX, Karl Rahner, que tive o privilégio de ter tido como professor: “Sou católico romano e, se a Igreja me disser que não ordena mulheres, aceito-o por fidelidade. Mas, se me der cinco razões e todas elas são falsas face à exegese e à teologia, tenho que protestar. Penso que o Magistério que apela para essas razões falsas não acredita no que diz ou não sabe ou mente ou estas coisas todas juntas. Além disso, a Igreja é infalível em questões de fé e moral, e o tema da ordenação das mulheres não é de fé, nem de costumes, mas de administração”. O Cardeal José Policarpo também teve problemas porque afirmou o mesmo: que teologicamente nada se opõe à ordenação de mulheres. Aliás, digo eu, há uma razão de fundo: é uma questão de direitos humanos  e Deus não pode ir contra os direitos humanos.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 13 OUT 2019

CONFISSÕES DO PAPA FRANCISCO. 3

 

Termino a longa e bela entrevista do Papa Francisco à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México.  Temas importantes de hoje: a reforma da Igreja, erros cometidos e a confissão, acusação de heresia, o diálogo com o islão, o desejo de ir à China, quanto tempo ainda de pontificado?

 

2.15. Francisco e a reforma da Igreja. A jornalista: “Qual é a coisa mais bonita que julga ter feito?” “O mais bonito para mim é, foi e é sempre estar com as pessoas, que queres que te diga? Eu renasço quando vou à praça (Praça de São Pedro), quando vou a uma paróquia. Às prisões..., estar com as pessoas. Sim, sou Papa, sou bispo, fui cardeal..., isto tudo pode cair, mas, por favor, não me tirem o ser padre, cura.”

 

Erros? “Erros há sempre. Confesso-me todos os 15 dias, o que significa que cometo erros.” A jornalista: “E são confissões longas ou curtas?”. Francisco: “A curiosidade feminina!, ‘the human touch’! “Como reagiu a essa de o acusarem de herege?” “Com sentido de humor, filha”. A jornalista: “Não lhe dá muita importância?” Resposta: “Não, não, rezo por eles porque estão equivocados, por vezes, pobre gente, alguns são manipulados. Vi quem eram os que assinavam... Não, a sério, sentido de humor e eu diria, ternura, ternura paternal. Quer dizer, isso não me fere minimamente. A mim o que me fere é a hipocrisia, a mentira.”

 

A jornalista: “E com a sua reforma tem a sensação de que estamos...” Resposta: “A reforma não é minha. Foram os cardeais que a pediram. Isto é assim, tal qual. As pessoas têm vontade de reformar. O esquema de corte tem de desaparecer. Foram os cardeais que o pediram. Bem, a maioria, graças a Deus.” A jornalista, referindo o caso de Maciel, fundador da Legião de Cristo, observou que o Papa João Paulo II tinha “obstaculizado essas reformas...”. Resposta: “Por vezes, enganaram João Paulo II.” No caso de Maciel e dos Legionários, “Bento XVI foi corajoso. E João Paulo II também. Quanto a João Paulo II, é preciso entender certas atitudes, porque vinha de um mundo fechado, a cortina de ferro, ainda estava vigente o comunismo lá... E havia uma mentalidade defensiva. Temos que compreender bem, ninguém pode duvidar da santidade desse homem e da sua boa vontade. Foi um grande.”

 

2.16. Geopolítica e islão. Pergunta a jornalista: “Qual é a sua estratégia face ao islão? Sente-o como uma prioridade neste momento?” Francisco: “Penso que sim. De facto, vou aos bairros em Roma, às paróquias e vêm, dizendo: ‘sou muçulmano’, ‘sou muçulmana’. Vêm saudar-me ou estão com o véu. Ou seja, o islão entrou na Europa outra vez, sejamos realistas, o islão é uma realidade que não podemos ignorar.” Também na África, há bispos que contam que há muçulmanos que vão rezar ao altar de Nossa Senhora. “Creio que somos irmãos, vimos todos de Abraão e nesse aspecto sigo as linhas do Concílio: estender as mãos aos judeus, aos islâmicos, estender as mãos o mais possível.”

 

Francisco reconhece a evidência de que “o islão está de modo muito forte ferido por grupos extremistas, por grupos intransigentes, fundamentalistas. Também nós, os cristãos, temos grupos fundamentalistas, pequenos grupos fundamentalistas, que obviamente não são guerrilheiros. Conclusão: é preciso ajudar os muçulmanos com a proximidade para que mostrem o melhor que têm, e esse melhor não é precisamente o terrorismo.” Está aí “o grande tema dos mártires cristãos...”, observa a jornalista. E Francisco: “Sim, e bastam pequenos grupos para causar desastres”.

 

Neste contexto da cristianofobia e da paz, chega a notícia do convite oficial para que o Papa visite o Iraque, o que poderá acontecer já em 2020: “Tenho a honra de convidar oficialmente Sua Santidade a visitar o Iraque, berço da civilização e lugar de nascimento de Abraão”, escreveu o presidente iraquiano, Barham Salih, numa missiva ao Papa. É sabido que aí, ao longo dos últimos anos, o número de cristãos passou de 1.5 milhões para uns 500 mil.

 

Ainda neste domínio, é necessário relembrar o que Francisco também tem sublinhado em ordem a este diálogo e à paz. Em primeiro lugar, também o islão tem de aprender o que custou à Igreja Católica, mas aprendeu: a leitura dos textos sagrados, no caso dos muçulmanos, do Alcorão, não pode ser literal, mas histórico-crítica. Por outro lado, é essencial salvaguardar a laicidade do Estado, isto é, a separação da religião e da política; por outras palavras: o Estado deve ser laico, não pode ter uma religião oficial; o Estado tem de ser confessionalmente neutro, para garantir a liberdade de todos. Sem a laicidade, não se supera a chamada capitis diminutio, isto é, a diminuição de cidadania dos cidadãos que não seguem a religião oficial. Dois princípios fundamentais.

 

E, evidentemente, Ahmed al Taleb, o Grande Imã da Mesquita e Universidade Al Azhar, no Cairo, com quem o Papa Francisco assinou, em Abu Dhabi, a histórica Declaração “A Fraternidade Humana”, a que aqui fiz longa referência, não pode continuar a aprovar que se bata na mulher “sem lhe partir um osso”: “Não deve partir-lhe um osso nem provocar danos num órgão ou membro do seu corpo nem tocar-lhe com a mão na cara nem provocar-lhe feridas nem causar danos psicológicos.”

 

Ainda no quadro da geoestratégia, Francisco confessa que o seu sonho é a China: “o meu sonho é a China. Gosto muito dos chineses.” Apesar das críticas, já que a perseguição não acabou, saúda o acordo com a China, para superar a dualidade da Igreja unida a Roma e a patriótica. “Agora, os católicos fruem o estar juntos. Com toda a política exterior dos pequenos passos, alguns sentem-se fora, isso é verdade, mas é a minoria. De facto, celebraram a Páscoa todos juntos, todos juntos e em todas as igrejas, este ano não houve problemas.” “Leva-nos à China?”, perguntou a jornalista. “Ficaria encantado. Para si vai ser a viagem número...”.

 

2.17. Quanto mais tempo ainda como Papa? A jornalista: “Lembra-se de que há quatro anos me dizia: ‘é que eu tenho a sensação de que o meu pontificado vai ser breve, dois, três, quatro anos...’, e já estamos, felizmente, no sexto.” Francisco: “E eu tenho a mesma sensação.” A jornalista: “Já passaram seis anos, já não é tão curto.” Francisco: “Mas também não pensemos em 20.” A jornalista: “Bom, em 20 talvez não, porque tem 82. Mas nos 100 anos...”. Resposta: “Está bem.”

 

A jornalista: “Recordo que também me disse que o que mais estranhava era como Papa não poder sair às escondidas para comer uma pizza, lembra-se? Já conseguiu fazer isso?” Francisco: “Não. Em Roma do que mais tenho saudades é de sair para comer uma pizza... Não, não o fiz. É uma coisa a que tenho de renunciar. Porque em Buenos Aires ia. A mim a rua diz-me muito, aprendo muito na rua.”

 

3. E a gente fica com a sensação de que Francisco, no meio de todas as crises por que passam a Igreja e o nosso mundo, é uma bênção para a Igreja e para o mundo. E compreendemos também o diálogo, no seu breve encontro com o Padre Ángel, o profeta dos pobres, presidente da ONG “Mensageiros pela Paz”, no Panamá, aquando do encontro da juventude: “Como estás?”, perguntou-lhe o Papa. Resposta: “Vou bem, apesar dos problemas. E tu, Francisco?” E Francisco: “Sobre os meus problemas, nem te falo.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 14 JUL 2019

CONFISSÕES DO PAPA FRANCISCO. 2

 

Dou sequência à longa e bela entrevista do Papa Francisco à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Porque, se é verdade que é sempre espontâneo no contacto com os jornalistas, raramente o terá sido tanto. Cordial, tratando a jornalista por “filha”, a quem revela que é “um conservador”, mas que mudou.

 

2.7. Os de fora e os de dentro. A jornalista observa: “Há quem diga que o Papa parece gostar mais dos que estão longe do que dos seus”. Francisco: “É um piropo para mim. É um piropo, pois é o que Jesus fazia, acusavam-no disso. E Jesus diz: ‘Não são os sãos que precisam de médico, mas sim os doentes’. Eu não prefiro os de fora aos de dentro. Cuido dos de dentro, mas dou prioridade aos outros, isso sim.” É como numa família.

 

Acrescentou: “Alguns jornalistas acusam-me de que sou demasiado tolerante com a corrupção na Igreja; por outro, se carrego em cima dos corruptos, dizem que ‘lhes carrego demais’. Bonito. Assim, sinto-me pastor. Obrigado.”

 

2.8. E volta aos migrantes e refugiados, observando a jornalista que há quem o acuse de “falar muito mais deste tema do que dos temas, dos valores que antes se dizia serem valores irrenunciáveis do catolicismo como a defesa da vida.”

 

Francisco: “Porque é uma prioridade hoje no mundo. Todos os dias recebemos notícias de que o Mediterrâneo é cada vez mais cemitério, para dar um exemplo.”

 

Mas reconhece as tremendas dificuldades do problema. “Sobre migrantes, eu digo, em primeiro lugar, que é preciso ter coração para acolher; depois, é preciso acompanhar, promover e integrar. Todo um processo. Aos governantes digo: Vejam até onde podem ir. Nem todos os países podem, sem mais. E para isso é necessário o diálogo e que se ponham de acordo. É preciso integrar isto tudo, não é fácil tratar o problema migrantes, não é fácil.”

 

A mesma dificuldade quanto aos repatriados. “Não sei se viu as filmagens clandestinas que há quando os apanham outra vez. Às mulheres e aos miúdos vendem-nos, e os homens são feitos escravos, torturam-nos... Por isso, digo: cuidado também para repatriar com segurança.”

 

2.9. Sobre o aborto. “O aborto não é um problema religioso no sentido de: porque sou católico não posso abortar. É um problema humano. É o problema de eliminar uma vida humana. Ponto final. E por aqui me fico.”

 

2.10. E com os governantes? “Não gosto de responder: ‘gosto mais, gosto menos’. Quero ser honesto. Frente a um governante, procuro dialogar com o melhor que tem. Porque a partir do melhor que tem vai fazer bem ao seu povo.”

 

2.11. É sabido que Francisco não se cansa de atacar a bisbilhotice na Igreja, na Cúria, na vida de todos. Acaba de distribuir um folheto na Cúria sobre isso, porque “somos inclinados a falar mal das pessoas”. A jornalista: “Como se chama o folheto?” Resposta: “Não falar mal dos outros”. “É um defeito que temos todos: ver o mal do outro e não o bem. Isso vale para todos: a bisbilhotice, os mexericos. Dizem que as mulheres são mais bisbilhoteiras, mas é falso. Os homens também o são.” O que é mau deve-se dizer ao próprio, “em privado, para que se corrija. Não o digas aos outros.”

 

2.12. Situações “irregulares”, recasados e homossexuais. Francisco lamenta que por vezes abusem das suas palavras e o interpretem mal: “Por vezes as pessoas, com o entusiasmo de serem recebidas pelo Papa, dizem mais do que o Papa lhes disse, é preciso ter isso em conta.” A jornalista: “É um risco que corre...”. Resposta: “Claro, um risco. Mas todos são filhos de Deus. Todos. Eu não posso descartar ninguém. Preciso de ter cuidado, tomar precauções, mas descartar, não. Também não posso dizer a uma pessoa que o seu comportamento está de acordo com o que a Igreja quer, quando não está. Mas tenho de dizer a verdade: ‘És filho, filha de Deus. A ninguém tenho o direito de dizer que não é filho, filha de Deus, porque estaria a faltar à verdade. Ou que Deus não gosta dele, dela. De facto, Deus gosta de todos, até de Judas.” As pessoas têm é de ser responsáveis.

 

Mas há más interpretações. “Perguntaram-me sobre a integração familiar das pessoas com orientação homossexual e eu disse: as pessoas homossexuais, as pessoas com uma orientação homossexual têm direito a estar na família e os pais têm direito a reconhecer esse filho como homossexual, essa filha como homossexual. Não se pode pôr fora da família ninguém nem tornar a vida impossível a ninguém.” “Outra coisa é, quando se vêem alguns sinais nos miúdos que estão a crescer, mandá-los a um ‘especialista’ (na altura, saiu-me ‘psiquiatra’, mas queria dizer especialista, foi um lapsus linguae). Ora, um diário colocou em título: ‘O Papa manda os homossexuais ao psiquiatra’. Não é verdade. Não disse isso.”

 

Quanto aos divorciados recasados, “a doutrina foi reajustada, o que significa recuperar a doutrina de São Tomás.” O princípio continua claro: casamento para toda a vida; do que se trata é de aplicar, dentro de certas regras, o princípio às circunstâncias. Neste quadro, abre-se a porta à possibilidade da comunhão em casos concretos.

 

2.13. A jornalista observou: “Conhecidos seus dizem que, na Argentina, era conservador na doutrina.” Francisco: “Sou conservador.” A jornalista: Mas “tornou-se muito mais liberal do que era na Argentina. Foi o Espírito Santo?” Resposta: “A graça do Espírito Santo existe certamente. Eu sempre defendi a doutrina. E é curioso, uma vez que chama a atenção para isso, na lei do casamento homossexual... é uma incongruência falar de casamento homossexual.” A jornalista: “Então, antes era uma coisa e agora é outra?” “É verdade. Confio em que cresci um pouco, que me santifiquei um pouco mais. A gente muda na vida. Ampliei os meus critérios, isso pode ser; vendo os problemas mundiais, tomei mais consciência de algumas coisas que antes não tinha. Julgo que nesse sentido há mudanças, sim. Mas sou conservador e... sou as duas coisas.”

 

2.14. Francisco e a imprensa. A jornalista: “Atendendo a esta evolução, pode dizer-nos o melhor nestes seis anos?” Francisco: “Bom, escutar-vos a vós jornalistas, creio que para mim foi uma coisa... não digo a melhor, mas uma coisa linda.”

 

“Na Argentina, nunca contactava com a imprensa, não éramos santos da sua devoção”, observa a jornalista. “Não, não. Também agora não muito (risos). Não, mas realmente o diálogo convosco — isto é um pouco piada, mas quero dizê-lo —, eu tenho boa relação convosco e sinto-me bem convosco, que fique claro. É uma das coisas lindas.” “Mesmo que o critiquemos”. Francisco: “Claro que sim. Se criticarem bem, bendito seja Deus; se criticarem mal, saio a dizer-vo-lo. Porque  o papel da imprensa não é só criticar, é construir. Mas também tenho consciência de uma coisa: Nem sempre sois livres, lamentavelmente muitos, para viver..., nem sempre podem dizer tudo o que querem.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 7 JUL 2019

CONFISSÕES DO PAPA FRANCISCO. 1

 

1. “O que está em crise são estruturas que formam a Igreja, que têm de cair. Sejamos conscientes. O Estado da Cidade do Vaticano como forma de governo, a Cúria, seja o que for, é a última corte europeia de uma monarquia absoluta. A última. As outras já são monarquias constitucionais, a corte dilui-se, mas aqui há estruturas de corte que são o que tem de cair.” “A reforma não é minha. Foram os cardeais que a pediram”, quando se debatia a sucessão de Bento XVI.

 

Quem disse isto foi o Papa Francisco numa extensa entrevista à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Os temas debatidos, num imenso à-vontade, mesmo quando difíceis e até escaldantes, foram muitos.

 

2. O que aí fica quer ser um brevíssimo resumo desse longo diálogo leal, onde não faltou o bom humor.

 

2.1. Um tema constante nas preocupações de Francisco: os migrantes e refugiados. Não se pode pretender resolver os problemas erguendo muros, como se “essa fosse a defesa. A defesa é o diálogo, o crescimento, o acolhimento e a educação, a integração ou o limite saudável do ‘não é possível acolher mais’, saudável e humano.” Referindo-se a Trump, disse: “Pode-se defender o território com uma ponte, não com um muro.”

 

2.2. Algo não funciona em relação à economia, que se tornou sobretudo economia da especulação financeira: “Já saímos do mundo da economia, estamos no mundo das finanças. Onde as finanças são gasosas. O concreto da riqueza num mundo de finanças é mínimo.” Então, o mal-estar provém desta constatação: “Cada vez há menos ricos, menos ricos com a maior parte da riqueza do mundo. E cada vez há mais pobres com menos do mínimo para viver.”

 

Francisco pronuncia-se contra uma economia neoliberal de mercado. É favorável a “uma economia social de mercado”.

 

Aqui, eu acrescentaria: economia social e ecológica de mercado e chamaria a atenção para as tremendas, se não insuperáveis, dificuldades para impô-la, apesar da sua urgência em ordem à sobrevivência. Porquê? Num mundo globalizado, os mercados são globais, mas a política é nacional ou regional. Nesta situação, onde estão as instâncias de regulação dos mercados? Francisco sabe disso e, por isso, acrescenta que é necessário “procurar saídas políticas, eu não as sei dizer, porque não sou político. Não tenho esse ofício. Mas a política é criativa. Não nos esqueçamos que é uma das formas mais altas da caridade, do amor, do amor social.”

 

Em conexão e interdependência com este mal-estar global da economia está “o maltrato do ambiente”. Francisco tem sido incansável no apelo a uma nova política para a salvaguarda do ambiente, se quisermos ter futuro. E até pergunta: será que ainda vamos a tempo de salvar “a nossa casa comum”? Sobre a ameaça do colapso ecológico, escreveu uma encíclica, Laudato Sí,  que fica para a História como decisiva, propugnando o que chamou justamente “uma ecologia integral”. Neste sentido, o Vaticano acaba de avançar com uma iniciativa ecuménica global de oração e de acção precisamente em ordem à protecção desta nossa casa comum: durante um mês, de 1 de Setembro a 4 de Outubro, chamado o mês do “Tempo da Criação”, os cristãos de todo o mundo são convocados para pôr em prática a Laudato Sí.

 

2.3. Sobre o narcotráfico: “É como se eu, para ajudar a evangelização de um país, fizesse um pacto com o diabo..., ou seja, há pactos que não se podem fazer.”

 

2.4. Os jovens? “Os jovens não estão corrompidos. Estão debilitados.” “A juventude corre o risco de, se é que o não fez já, perder as raízes.” E cita Zygmund Bauman, num livro escrito em italiano com um seu assistente italiano, com o título: Nati liquidi, nascidos líquidos, isto é, sem consistência. No alemão apareceu com o título: Die Entwurzelten, os desenraizados, os sem raízes. “Os alemães perceberam a mensagem do livro. Isso é muito importante hoje: ir às raízes”, o que nada tem a ver com “ideologia conservadora.” “Assumir as raízes normais, as raízes da tua casa, as raízes da tua pátria, da tua cidade, da tua história, do teu povo..., de ... mil coisas.” Por isso, acrescenta: “Eu aconselho sempre os jovens a falar com os velhos e os velhos a falar com os jovens, porque... uma árvore não pode crescer, se lhe cortarmos as raízes, como também não cresce, se ficarem só as raízes.”

 

2.5. As mulheres? Reconhece que a mulher “está ainda em segundo lugar... em segundo lugar.” Mas “sem a mulher, o mundo não funciona. Não por ser ela que gera os filhos, deixemos a procriação de lado... Uma casa sem a mulher não funciona.” Há uma palavra que está a desaparecer dos dicionários, porque “todos têm medo dela: ternura. É património da mulher. Daí ao feminicídio, à escravidão, vai um passo, não? Qual é o ódio, eu não saberia explicar. Talvez algum antropólogo o possa fazer.”

 

Aqui, o Papa Francisco que me desculpe, mas vou fazer um reparo. E na Igreja? Ele vai repetindo que “a Igreja é feminina” e já na viagem ao Brasil avisou: “Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão total e real, corre o risco de se tornar estéril.” Então, porquê tanta hesitação em ordenar as mulheres como diáconos? Esse seria um primeiro passo da abertura que se impõe.

 

Francisco insiste na Igreja sinodal e essa ordenação deverá, tudo indica, acontecer já na sequência do próximo Sínodo para a Amazónia, em Outubro.

 

2.6. Sobre os escândalos da pedofilia na Igreja. Aqui, Francisco reconhece que também se equivoca. Equivocou-se nomeadamente no que à questão da pedofilia no Chile se refere. E foram concretamente perguntas dos jornalistas, “feitas com muita educação” no regresso da viagem ao Chile, que o fizeram perceber que a informação que tinha não era verdadeira. Estava mal informado. E não exclui que tenha havido corrupção na informação prestada: “Nem sempre é corrupção assim... por vezes é estilo da Cúria — sim, no fundo há uma lei de corrupção —, mas é um estilo que é preciso ajudar a corrigir.”

 

Concretamente quanto ao cardeal McCarrick, a quem acabou por retirar o cardinalato e reduzir ao estado laical, confessa: “De Mc Carrick eu não sabia nada, obviamente, nada, nada.” “O cardeal Pell obviamente que está preso e está condenado, apelou, mas está condenado. O cardeal Errázuriz já não podia continuar, era óbvio”. Conclusão: o grupo de cardeais consultores começou por ser constituído por nove e agora são seis. Quanto às acusações que o ex-Núncio Viganò lhe fez, respondeu, explicando o seu silêncio na altura: “Eu confio na honestidade dos jornalistas e disse-vos: ‘Estudai vós a questão e tirai as conclusões.’ E o trabalho que fizestes foi genial, e três ou quatro meses depois um juiz de Milão condenou-o.”

 

Mas, indo ao cerne dessa chaga que é a pedofilia na Igreja, concluiu que, com as medidas concretas que estão a ser tomadas, a “tolerância zero” é mesmo para implementar, salvaguardando também o princípio da presunção de inocência: “A tarefa do padre é levar o jovem a Jesus. Com os abusos, sepulta-o. Essa é a grande monstruosidade. Que é mais grave que tudo o resto.” Mas não se pode ignorar os números aterradores de casos de pedofilia no mundo, a maior parte na família, também entre educadores, no desporto, etc., que apresentou no discurso final da Cimeira no Vaticano contra os abusos na Igreja, em Fevereiro passado. “Evidentemente, a percentagem de sacerdotes que caíram nisto faz parte do todo, uma corrupção mundial na pedofilia, é de terror... E por isso quis que todos tivessem as estatísticas da Unicef, das Nações Unidas, as mais sérias, as estatísticas sérias.” “Seria importante aqui referir os dados gerais — na minha opinião, sempre parciais — a nível global e a seguir a nível da Europa, da Ásia, das Américas, da África e da Oceânia, para dar um quadro da gravidade e profundidade deste flagelo nas nossas sociedades. A primeira verdade que resulta dos dados disponíveis é esta: quem comete os abusos, ou seja, as violências (físicas, sexuais ou emocionais) são sobretudo os pais, os parentes, os maridos de esposas-meninas, os treinadores e os educadores. Além disso, segundo os dados Unicef de 2017, relativos a 28 países no mundo, em cada 10 meninas-adolescentes que tiveram relações sexuais forçadas, 9 revelam que foram vítimas de uma pessoa conhecida ou próxima da família.” Um número aterrador, a título de exemplo, no nível global: “Em 2017, a OMS estimou em mil milhões os menores com idade entre os 2 e os 17 anos que sofreram violências ou negligências físicas, emocionais ou sexuais.” (Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 30 JUN 2019