Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Podemos usufruir de uma imersão total na República Sereníssima, graças à extraordinária exposição Veneza em Festa – de Canaletto a Guardi, do Museu Calouste Gulbenkian com o apoio da coleção Thyssen. Sentem-se os tempos heroicos e o seu ambiente, através do olhar dos maiores pintores que eternizaram a cidade que inspirou John Ruskin: “Veneza jaz ainda perante o nosso olhar como era no período final da decadência: um fantasma nas areias do mar, tão frágil, tão silenciosa, tão despojada de tudo exceto da sua beleza, que por vezes, ao contemplarmos o seu lânguido reflexo na laguna, nos perguntamos, quase como se fosse uma miragem, qual a cidade, qual a sua sombra”. Ali está tudo. A pintura veneziana do século XVIII, Giovanni Antonio Canal, conhecido por Canaletto, Francesco Guardi, Gianbattista Tiepolo, todos. As célebres vedute juntam ao quotidiano da urbe deliciosos pormenores miniaturais com a magia das festividades. A perspetiva converge para a Basílica de S. Marcos e para a verticalidade do campanário, cuja impressionante torre se antepõe parcialmente ao palácio ducal, que depois encontramos. As diagonais convergentes definem o desenho rigoroso dos edifícios. O Bucentauro, a barca do sol, dirige-se, na representação de Canaletto, ao Lido, à Igreja de S. Nicolau, onde o Patriarca abençoará o anel trazido pelo Doge. Sob o efeito glorioso da genial pintura, deixamo-nos deslumbrar pelo modelo, da autoria dos mais autênticos artesãos venezianos, simbolizando a magnitude da criatividade, na galera que transportava o Doge na grande festa da Quinta-feira de Ascensão, para celebrar a união sagrada da cidade com o mar. E é essa ligação, como meio de encontro com outros povos, que une os dois Patriarcados europeus de rito latino – Veneza e Lisboa. Afinal, o mais belo quadro é a própria cidade, como disse Goethe.
A cidade exprime a sua grandeza na intensidade das suas festas. O Carnaval veneziano, de columbinas e arlequins, máscaras e plumas, veludos e damascos, sedas finas e preciosas rendas, era uma atração dominante no Grand Tour dos viajantes cultos, na aprendizagem civilizada das grandes viagens. E o nosso Infante D. Pedro das Sete Partidas, ao trazer para a corte portuguesa o célebre livro do veneziano Marco Polo sobre a viagem até à China e às Índias, lançou o poderoso germe da aventura dos mares. Piazetta, Longhi, Marieschi e Bellotto juntam-se aos sublimes Canaletto e Francesco Guardi na observação da intimidade e da frescura de Veneza, enquanto metrópole artística e cidade mágica. E Luísa Sampaio, curadora da exposição, pôs o melhor do seu saber nesta mostra exemplar. O poderoso grupo escultórico de Eneias transportando seu pai Anquises e os Penates, seguido pelo filho Ascânio, evoca o gosto requintado de Calouste Gulbenkian, que tinha esta obra, representativa da vida e da História, em lugar de honra na sua casa parisiense da Avenue Iéna. E a Eneida está bem presente em Camões. Mas o colecionador tinha um amor especial por Veneza e por Francesco Guardi. Nenhum outro pintor está tão bem representado na sua coleção como este – e tal é suficiente para provar a preferência pela vivacidade, dinamismo e esplendor das obras do artista de setecentos, sobre quem Gulbenkian disse: “Sou um grande admirador do Mestre”.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA ÚLTIMA SEXTA-FEIRA
1. De 27 de maio de 1988 a 27 de maio de 2005 (nestes dois anos, 27 de maio calhou a uma sexta-feira), habituei-me ou habituaram-me a ler crónicas minhas nas páginas de um jornal. Primeiro, nos bons tempos de O Independente, que nasceu faz hoje 17 anos e talvez seja eu o único a lembrar-me. Here"s looking at you kid, e o kid é o Miguel Esteves Cardoso, que não vejo há que anos, embora não lhe perca o retrato aos domingos no Diário de Notícias. Entre "casas encantadas" (pois, pois, A Casa Encantada também faz hoje 17 anos) e saques de Roma, por lá andei até novembro de 2001 ou coisa que o valha, pois sempre fui melhor a datar inícios do que fins. Depois, desde 12 de julho de 2002 (eu não vos dizia?) aqui no PÚBLICO e já lá vão quase três anos. Ontem (estou a falar do meu ontem de escritor, e não do vosso ontem de leitores) telefonaram-me a dizer que ninguém sexta toda a vida e que aos 17 anos já tenho tamanho para me vestir de domingueiro. Trocado por miúdos: à sexta-feira deixa de haver "casas encantadas", J. B. C. e conversas de farrapos. Mas nada se perde. Só se transforma. Conversas destas, encantos destes e gente como eu fica melhor ao domingo, para ler na cama até tarde, para levar para a pesca ou para levar para a caça, conforme as estações, os tempos e os modos. Animal de hábitos que sou, virei-me um bocado na cadeira (de couro), mas não tinha nenhuma razão crisálida para dizer que não. Nunca gostei de domingos? É bem verdade e já não gostava 50 anos antes de 1988. Nem dos domingos de Carnide nem dos domingos de pastéis de Belém. Nem dos domingos de Paris, que me lembram o desaparecido que sentia comovido os domingos de Paris (as aspas caíram na tipografia), nem dos domingos da Arrábida, com aquela confusão de camionetes e o pó encarnado a esvoaçar. Nem dos domingos engarrafados da Praia Grande, nem dos domingos dos estádios em que o Barrosa falhava penaltis. Mas também não é aos domingos que tenho que escrevinhar coisas quejandas e, para as reler, narcisicamente, sobra-me tempo, meu Eco. Ao princípio irei estranhar, depois vou-me habituar. Mas sinto um nozinho na garganta, assim como se me despedisse. Não há de ser nada.
2. Mas a verdade é que o dia de ontem me foi muito especialmente especial. Devia estar a lua no carneiro, como diz o Alberto, com quem bebi catarinas à beira-rio. Ao menos bebemos vinho com nome de santa, como ele me lembrou, a certa altura, que alguém dizia em tempos que já lá vão. No carneiro ou não, ia alta a lua, essa lua que, só um bocadinho mais baixa, eu tinha acabado de deixar em Veneza, na antevéspera. Há gente que nasceu com o rabo virado para a dita e nesta semana eu senti-me uma delas. Chegou a altura de vos fazer um desenho, daqueles que me ensinaram há pouco tempo a fazer, para perceberem que não ensandeci definitivamente e que tudo isto pode ter mais nexo do que parece, aliterando ou não. Vamos lá a ver se nos entendemos, que, se não, nem no domingo que vem me convidam para a festa e esta é mesmo a minha última sexta-feira.
3. Subitamente, e por razões que agora não vêm ao caso, mandaram-me ir a Veneza no fim-de-semana passado. Se eu vos contasse o que lá fui fazer, ainda mais louco ou ébrio vos pareceria. Por isso, fico-me por uns instantâneos e julgue-os quem não pode experimentá-los. Nunca me falaram em Veneza sem que eu estremecesse de cima a baixo muito mais do que estremeceu a criada do Tartuffe. Desta vez, medi-me o pulso e não senti nada. Era como se me dissessem que no dia seguinte ia até Vila Franca de Xira. Já estava um bocado preocupado (e outros por mim), preocupado fiquei ainda mais. Mas logo que o táxi castanho largou à desfilada pela lagoa, os fantasmas desapareceram atrás dos postes e renasceu-me a alma nova que tinha metido nem sei bem onde. Depois, o barco moderou a velocidade e, num fim de tarde inacreditavelmente luminoso, desembarquei à porta do Danieli, onde muitas vezes bebera uns copos, mas onde nunca tinha ficado. E fosse pelo Danieli, fosse pelo que fosse, quando saí do hotel a caminho de São Marcos vi coisas que tinha obrigação de ter visto mais vezes, mas que via agora pela primeira vez. A bem da contenção, fico-me por cinco, que se vai fazendo muito tarde.
4. Reparei que no ângulo sudoeste e no ângulo sudeste do Palácio dos Doges, quero eu dizer no ângulo entre a Margem dos Escravos e a Piazetta e no ângulo entre o Palácio e a Ponte dos Suspiros, os dois capitéis celebram dois dos mais célebres nus da nossa génese. O primeiro mostra-nos Adão e Eva depois de comerem do fruto proibido. Não há serpente, não há deuses. Apenas dois ramos da árvore, um para cada lado, se vão cravar nos sexos de Adão e Eva, simultaneamente os cobrindo e simultaneamente os designando como origem de todo o bem e de todo o mal. O segundo capitel refere-se a um dos episódios mais obscuros do Antigo Testamento. Noé, após ter bebido em demasia, cai no chão a dormir, quase nu, só com as vergonhas cobertas por um trapo. Os filhos surpreendem o velho em tais preparos. Que pensam ou que concebem? Desnudar o pai, ou seja, retirar o trapo para verem o que este cobre. Por que é que o sexo é a obsessão mais visível do Palácio na fachada fronteira ao mar de que Veneza era sereníssima senhora, é coisa que não sei explicar nem nenhum Ruskin me explicou. Mas são essas as armas que desfralda em todo o sentido da palavra, e a história do pecado da carne começou a escrever-se em pedra no século XIV nesse "meravigliosi spigoli di pietra".
Depois de reparar no sexo reparei no sangue. Na fachada que dá para a Piazetta, o cor-de-rosa evanescente da fachada e das colunas (o cor-de-rosa mais cor-de-rosa alguma vez alcançado) é interrompido duas vezes em duas colunas, que contrastam com todas as outras por um encarnado fortíssimo. Porquê? Aí mo explicaram. Entre essas duas colunas eram anunciadas as penas de morte decretadas pelo Conselho dos Doges. Junto à morte, detinha-se o rosa e o sangue o substituía, efémero e brutal. Aliás, o mesmo sangue é cor da coluna de um metro que hoje está junto à Igreja de São Marcos, mas, em tempos idos, estava entre a coluna de S. Marcos e a de S. Jorge, frente ao mar. Sobre esse tronco de pedra eram degoladas as vítimas que tinham como última visão o dragão vencido ou o leão alado. Reparei - e aí mais parei do que reparei - que, perto do Rialto, na Igreja de San Salvador está a Anunciação mais terrível que alguma vez vi, obra célebre de Tiziano, que mil vezes vira em reproduções e só agora vi em carne e osso. Porque se cobre a Virgem com um véu à aproximação de um Arcanjo aterrador, com asas colossais que dominam o quadro enorme? Porquê tanta luz e tanta cor a acompanhar a descida do Espírito Santo rodeado por anjos álacres e pulcros? Ao fundo, no altar-mor da mesma Igreja, a Transfiguração, também de Tiziano, mostra-nos que nenhum dos Apóstolos conseguiu fitar as vestes branquíssimas de Cristo, estabelecendo uma divisão claramente platónica entre o que cega os homens das cavernas (os apóstolos) e o que iguala as Ideias da Luz (Cristo e os profetas). A quinta coisa em que reparei foi num palácio do Grande Canal, que é dos mais belos e mais ogivados. Ca D"Ario chama-se. O meu guia de ocasião informou-me que estava à venda e que há 50 anos o estava. Porquê? Porque se diz que uma maldição primeva atingirá todos os seus proprietários e até hoje ninguém escapou. Sabem quem foi o último presumível comprador, que chegou a dar sinal, mas que à última hora teve mais medo do que dinheiro? Woody Allen.
5. À noite debrucei-me da janela do meu quarto, num dos últimos pisos do Danieli, e olhei para a água negra cá em baixo, no pequeno canal dos dragões, onde algumas gôndolas jaziam. Em frente, havia uma casa com um belo jardim e, entre as janelas entreabertas, pareceu-me descortinar um vulto que lia de costas viradas para a janela e para mim.
Sem saber porquê, esse choque da luz da janela entreaberta com o escuro da água fechada, esse choque da horizontalidade fronteira com a verticalidade abissal, pareceram-me repetir e recapitular a imagética das fachadas do Palácio dos Doges, os segredos de Tiziano, e continuar a cantar e a contar os cantos eróticos e líricos de fé e de ferro, de sangue e de ouro, de madrepérola e pórfiro que em Veneza se ouvem a cada esquina e em cada rua.
"Senza rumor" dizia, no Senso de Visconti, Franz para Livia, naquele quarto dos Fondamenti Nuovi, onde se abrigavam para as suas tardes de amor. "Senza rumor" voltei a ouvir Veneza agora, ao luar de maio sobre o terraço do Danieli, ou à cor dos cometas abraçando de rosa e piedade o Palácio dos Doges. Palácio feito também da matéria de que os cometas são feitos ou de que eram feitos, nos contos de fadas os fatos, da cor do vento e da cor das nuvens de princesas enfeitiçadas. E um dia, enfeitiçado, já estava de novo em Lisboa, como se nada se tivesse passado e como se não tivesse estado a fazer de Caronte, à proa de uma gôndola entre os dragões de Carpaccio e os anjos músicos do Bellini de San Zaccaria. Esta é a vida de hoje? Não, esta foi a minha vida de ontem, o dia dos impossíveis acontecidos. Até domingo, 5 de junho, dia dos anos da Tia Zina.
Em Veneza, finalmente os peixes viram a luz do Sol, e nós os vemos, enfim, felizes, no final da sua desesperada espera.
As gôndolas leem agora tão bem o fundo dos canais que já não se perdem sozinhas.
Também há momentos em que o muito pouco ou o nada é tudo o que se pode fazer.
Também há momentos em que a poesia dos instantes tem um voo indecifrável.
Também há momentos em que se recorda o quanto a vida foi passada junto dos outros e não se registou a aventura.
Também há momentos em que o amor se iniciou como razão do viver, e tanto se gostou dele como da vida.
Também há momentos em que muito se ama sem que o digamos.
Também há momentos em que a terra nos escorre das mãos qual parcela de si a esvair-se para outro local.
Também há momentos em que os lares nos falaram da raiz da paz.
Também há momentos em que todos dormimos a mil quilómetros do essencial.
Também há momentos sem horários para as tempestades do não compreender.
Também há momentos em que as praias, suas espumas e as areias são a elegância do nosso trajar.
Também há momentos para o nosso choro de crianças escrever a nossa morada.
Também há momentos para decidir que não me casarei com um homem que não chora.
Também há momentos para te dizer e repetir sem fim, que contigo irei para qualquer mundo do mundo.
Também há momentos em que o momento se surpreendeu, ou não encontrasse no fundo de nós, o maravilhoso.
Também há momentos em que outros e os intelectuais já não veem o sorriso.
Também há momentos de melancolia no cerne da prodigiosa solidão.
Também há momentos em que nos escapa a vida depois da infância, bela, ou daquela que muito nos matou.
Também há momentos em que gostamos de nos perder e tanto desejamos depois que nos protejam como à rosa de Exupéry.
Também há momentos de frutos , tílias, passeios, camas alvas de doçuras, correios, beijos, ciúmes, felicidades infelizes, mãos de costureiras no peito, abrigos, arvores, pássaros e outros bichos, montanhas, pontes, abraços, despedidas, martírios, mortes que não souberam chegar no tempo das piedades, solidariedades, coragens e reencontros, traições, utopias, doenças, artes, civilizações, sobrancerias até nos destinos comuns, sacerdócios sem condição humana, arcanjos sedutores, algumas eternidades, aprenderes, ofícios , milagres, vaidades nas coisas pequenas e humildes nas muito grandes, orfandades Senhor!, e um olhar para a cidade condenada, pois lá
finalmente os peixes viram a luz do Sol, e nós os vemos, enfim, felizes, no final da sua desesperada espera.
As gôndolas leem agora tão bem o fundo dos canais que já não se perdem sozinhas.
1. De 27 de maio de 1988 a 27 de maio de 2005 (nestes dois anos, 27 de maio calhou a uma sexta-feira), habituei-me ou habituaram-me a ler crónicas minhas nas páginas de um jornal. Primeiro, nos bons tempos de O Independente, que nasceu faz hoje 17 anos e talvez seja eu o único a lembrar-me. Here"s looking at you kid, e o kid é o Miguel Esteves Cardoso, que não vejo há que anos, embora não lhe perca o retrato aos domingos no Diário de Notícias. Entre "casas encantadas" (pois, pois, A Casa Encantada também faz hoje 17 anos) e saques de Roma, por lá andei até novembro de 2001 ou coisa que o valha, pois sempre fui melhor a datar inícios do que fins. Depois, desde 12 de julho de 2002 (eu não vos dizia?) aqui no PÚBLICO e já lá vão quase três anos. Ontem (estou a falar do meu ontem de escritor, e não do vosso ontem de leitores) telefonaram-me a dizer que ninguém sexta toda a vida e que aos 17 anos já tenho tamanho para me vestir de domingueiro. Trocado por miúdos: à sexta-feira deixa de haver "casas encantadas", J. B. C. e conversas de farrapos. Mas nada se perde. Só se transforma. Conversas destas, encantos destes e gente como eu fica melhor ao domingo, para ler na cama até tarde, para levar para a pesca ou para levar para a caça, conforme as estações, os tempos e os modos. Animal de hábitos que sou, virei-me um bocado na cadeira (de couro), mas não tinha nenhuma razão crisálida para dizer que não. Nunca gostei de domingos? É bem verdade e já não gostava 50 anos antes de 1988. Nem dos domingos de Carnide nem dos domingos de pastéis de Belém. Nem dos domingos de Paris, que me lembram o desaparecido que sentia comovido os domingos de Paris (as aspas caíram na tipografia), nem dos domingos da Arrábida, com aquela confusão de camionetes e o pó encarnado a esvoaçar. Nem dos domingos engarrafados da Praia Grande, nem dos domingos dos estádios em que o Barrosa falhava penaltis. Mas também não é aos domingos que tenho que escrevinhar coisas quejandas e, para as reler, narcisicamente, sobra-me tempo, meu Eco. Ao princípio irei estranhar, depois vou-me habituar. Mas sinto um nozinho na garganta, assim como se me despedisse. Não há de ser nada.
2. Mas a verdade é que o dia de ontem me foi muito especialmente especial. Devia estar a lua no carneiro, como diz o Alberto, com quem bebi catarinas à beira-rio. Ao menos bebemos vinho com nome de santa, como ele me lembrou, a certa altura, que alguém dizia em tempos que já lá vão. No carneiro ou não, ia alta a lua, essa lua que, só um bocadinho mais baixa, eu tinha acabado de deixar em Veneza, na antevéspera. Há gente que nasceu com o rabo virado para a dita e nesta semana eu senti-me uma delas. Chegou a altura de vos fazer um desenho, daqueles que me ensinaram há pouco tempo a fazer, para perceberem que não ensandeci definitivamente e que tudo isto pode ter mais nexo do que parece, aliterando ou não. Vamos lá a ver se nos entendemos, que, se não, nem no domingo que vem me convidam para a festa e esta é mesmo a minha última sexta-feira.
3. Subitamente, e por razões que agora não vêm ao caso, mandaram-me ir a Veneza no fim-de-semana passado. Se eu vos contasse o que lá fui fazer, ainda mais louco ou ébrio vos pareceria. Por isso, fico-me por uns instantâneos e julgue-os quem não pode experimentá-los. Nunca me falaram em Veneza sem que eu estremecesse de cima a baixo muito mais do que estremeceu a criada do Tartuffe. Desta vez, medi-me o pulso e não senti nada. Era como se me dissessem que no dia seguinte ia até Vila Franca de Xira. Já estava um bocado preocupado (e outros por mim), preocupado fiquei ainda mais. Mas logo que o táxi castanho largou à desfilada pela lagoa, os fantasmas desapareceram atrás dos postes e renasceu-me a alma nova que tinha metido nem sei bem onde. Depois, o barco moderou a velocidade e, num fim de tarde inacreditavelmente luminoso, desembarquei à porta do Danieli, onde muitas vezes bebera uns copos, mas onde nunca tinha ficado. E fosse pelo Danieli, fosse pelo que fosse, quando saí do hotel a caminho de São Marcos vi coisas que tinha obrigação de ter visto mais vezes, mas que via agora pela primeira vez. A bem da contenção, fico-me por cinco, que se vai fazendo muito tarde.
4. Reparei que no ângulo sudoeste e no ângulo sudeste do Palácio dos Doges, quero eu dizer no ângulo entre a Margem dos Escravos e a Piazetta e no ângulo entre o Palácio e a Ponte dos Suspiros, os dois capitéis celebram dois dos mais célebres nus da nossa génese. O primeiro mostra-nos Adão e Eva depois de comerem do fruto proibido. Não há serpente, não há deuses. Apenas dois ramos da árvore, um para cada lado, se vão cravar nos sexos de Adão e Eva, simultaneamente os cobrindo e simultaneamente os designando como origem de todo o bem e de todo o mal. O segundo capitel refere-se a um dos episódios mais obscuros do Antigo Testamento. Noé, após ter bebido em demasia, cai no chão a dormir, quase nu, só com as vergonhas cobertas por um trapo. Os filhos surpreendem o velho em tais preparos. Que pensam ou que concebem? Desnudar o pai, ou seja, retirar o trapo para verem o que este cobre. Por que é que o sexo é a obsessão mais visível do Palácio na fachada fronteira ao mar de que Veneza era sereníssima senhora, é coisa que não sei explicar nem nenhum Ruskin me explicou. Mas são essas as armas que desfralda em todo o sentido da palavra, e a história do pecado da carne começou a escrever-se em pedra no século XIV nesse "meravigliosi spigoli di pietra".
Depois de reparar no sexo reparei no sangue. Na fachada que dá para a Piazetta, o cor-de-rosa evanescente da fachada e das colunas (o cor-de-rosa mais cor-de-rosa alguma vez alcançado) é interrompido duas vezes em duas colunas, que contrastam com todas as outras por um encarnado fortíssimo. Porquê? Aí mo explicaram. Entre essas duas colunas eram anunciadas as penas de morte decretadas pelo Conselho dos Doges. Junto à morte, detinha-se o rosa e o sangue o substituía, efémero e brutal. Aliás, o mesmo sangue é cor da coluna de um metro que hoje está junto à Igreja de São Marcos, mas, em tempos idos, estava entre a coluna de S. Marcos e a de S. Jorge, frente ao mar. Sobre esse tronco de pedra eram degoladas as vítimas que tinham como última visão o dragão vencido ou o leão alado. Reparei - e aí mais parei do que reparei - que, perto do Rialto, na Igreja de San Salvador está a Anunciação mais terrível que alguma vez vi, obra célebre de Tiziano, que mil vezes vira em reproduções e só agora vi em carne e osso. Porque se cobre a Virgem com um véu à aproximação de um Arcanjo aterrador, com asas colossais que dominam o quadro enorme? Porquê tanta luz e tanta cor a acompanhar a descida do Espírito Santo rodeado por anjos álacres e pulcros? Ao fundo, no altar-mor da mesma Igreja, a Transfiguração, também de Tiziano, mostra-nos que nenhum dos Apóstolos conseguiu fitar as vestes branquíssimas de Cristo, estabelecendo uma divisão claramente platónica entre o que cega os homens das cavernas (os apóstolos) e o que iguala as Ideias da Luz (Cristo e os profetas). A quinta coisa em que reparei foi num palácio do Grande Canal, que é dos mais belos e mais ogivados. Ca D"Ario chama-se. O meu guia de ocasião informou-me que estava à venda e que há 50 anos o estava. Porquê? Porque se diz que uma maldição primeva atingirá todos os seus proprietários e até hoje ninguém escapou. Sabem quem foi o último presumível comprador, que chegou a dar sinal, mas que à última hora teve mais medo do que dinheiro? Woody Allen.
5. À noite debrucei-me da janela do meu quarto, num dos últimos pisos do Danieli, e olhei para a água negra cá em baixo, no pequeno canal dos dragões, onde algumas gôndolas jaziam. Em frente, havia uma casa com um belo jardim e, entre as janelas entreabertas, pareceu-me descortinar um vulto que lia de costas viradas para a janela e para mim. Sem saber porquê, esse choque da luz da janela entreaberta com o escuro da água fechada, esse choque da horizontalidade fronteira com a verticalidade abissal, pareceram-me repetir e recapitular a imagética das fachadas do Palácio dos Doges, os segredos de Tiziano, e continuar a cantar e a contar os cantos eróticos e líricos de fé e de ferro, de sangue e de ouro, de madrepérola e pórfiro que em Veneza se ouvem a cada esquina e em cada rua. "Senza rumor" dizia, no Senso de Visconti, Franz para Livia, naquele quarto dos Fondamenti Nuovi, onde se abrigavam para as suas tardes de amor. "Senza rumor" voltei a ouvir Veneza agora, ao luar de maio sobre o terraço do Danieli, ou à cor dos cometas abraçando de rosa e piedade o Palácio dos Doges. Palácio feito também da matéria de que os cometas são feitos ou de que eram feitos, nos contos de fadas os fatos, da cor do vento e da cor das nuvens de princesas enfeitiçadas. E um dia, enfeitiçado, já estava de novo em Lisboa, como se nada se tivesse passado e como se não tivesse estado a fazer de Caronte, à proa de uma gôndola entre os dragões de Carpaccio e os anjos músicos do Bellini de San Zaccaria. Esta é a vida de hoje? Não, esta foi a minha vida de ontem, o dia dos impossíveis acontecidos. Até domingo, 5 de junho, dia dos anos da Tia Zina.
“A medicina já não me receita outra coisa senão viagens”
Noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar.
Veneza a muito bela das cidades da Europa Meridional. Veneza aquela a que os italianos sentiam como a soave austero.
Neste livro “Veneza – Versão de Antero de Quental”, este novo texto, híbrido, entre tradução e «transplantação», quando Antero nos diz no ensaio sobre tradução, que, tradução é mais que transplantação, Veneza era plácida, e passaremos sempre a entendê-la não como Thomas George Bonney, a descreveu, mas necessariamente como o resultado de um novo livro de Antero, uma «transplantação» com inúmeros trechos da sua própria autoria.
Assim, Veneza, era a cidade à qual o viajante sempre chegava com a sensação de caminheiro e ali se perfumaria numa preguiça indolente e indolentemente cismava uma cisma entre pombas mansas e a falta de solo; entre o espanto da fisionomia latina, bizantina, ocidental e oriental e enfim maometana.
A importância da situação geográfica e política de Veneza durante toda a Idade-Média foi o que a tornou mediadora inteligente entre civilizações hostis. E continua: Veneza, apesar de decadente, é ainda bela.
Diria que ao ler este livro “Veneza – Versão de Antero de Quental”, esta beleza de Veneza surge-nos muito explicitamente de um monte de ilhas onde assentava a relação com Constantinopla, Egipto, Síria, Creta, Chipre, enfim um Rialto de mãos de génio, sendo o governo nos primeiros séculos pura democracia. Diria que saber que que o Doge era magistrado e não senhor sob pena de o expulsarem ou executarem, é como atesta Antero a consciência de que se vive como perdidos em estados tão grandes, que desconhecemos a coragem que implicava a simples e reduzida cidade ter em si a força criadora e inventiva de um poder e de uma arte tão própria quanto a da arquitetura veneziana.
E, como já dissemos pelas palavras do que lemos
noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar.
Fazem-me sentir estas palavras que só se assim for, se poderá iniciar a razão profunda e até íntima da razão e da elegância de Veneza desta forma ser. Afirma-se que o Canal Grande é para Veneza o que são para Paris a rua Rivoli, o Corso para Roma ou Regent-Street para Londres, e ao espreitarmos por uma gôndola lá está o Palazzo Cavalli ou a poética Ponte dos Suspiros sobre movediço chão, em corredor de ligação à prisão Estado de Veneza. São Marcos fantástico!, magistral!, e a Força e a Justiça em duas mulheres de mármore a ladeá-lo e de cujas mãos o Doge recebia a espada do governo.
E assim se diz também que por toda a parte Veneza é rainha de portas sarracenas e que se entre nela humildemente pois que não há maior contraste que os olhos possam ver. E tantos são os contrastes que noutra parte pareceriam disparatados, filhos de inabilidades, e aqui, aqui harmonizam-se, fundem-se ou o artista medieval não tivesse o sentimento do conjunto. E eis como um dia o artista com a liberdade e o poder da Renascença denuncia a sua energia com Bramante ou com Miguel Ângelo. E não descuida Quental que o mal, o defeito da Renascença, ou antes do movimento saído da Renascença, depois de esgotado o seu impulso primeiro e genial, foi a superstição da antiguidade, das regras clássicas, o culto do convencional.
A destreza com que o gondoleiro maneja o remo chamado fercola por canais estreitíssimos, é admirável, e o encanto do viajante é o desespero do arqueólogo na confusão de estilos ao gosto veneziano que permitem mulher formosa a cada janela rendilhada.
E do livro:
Em Veneza tudo fala do passado, por conseguinte da morte. E o que é a história, essa agitação de efémeros, durante um momento, entre duas eternidades?
É irónico que Antero de Quental nunca tenha visitado a cidade dos doges.
Ainda hoje parte do espólio de Quental se encontra na Biblioteca Marciana de Veneza.
Antero um dos notáveis da nossa literatura.
Para mim, este livro de um cuidado e beleza indizíveis, acolhe em jeito de segredo aquele que sempre soube que o tempo continua a ser o de chegar a Veneza por mar, esse mesmo que muito tem segurado por lá as canções silenciosas que batem à porta do coração.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Este livro magnífico teve a organização, introdução e notas de Andrea Senior. Giorgia Casara na revisão e Mariana Pinto dos Santos na atualização da grafia e na revisão. A todas agradeço por este magnifico trabalho, e expresso o meu contentamento especial à Pianola Editores por esta luz em 2015.