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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


CINZAS DE VERÃO
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA


1 - 
1 de outubro. Para mim, os anos começam sempre a 1 de outubro. 1 de janeiro é só o menos estimulante dos dias da quadra do Natal, uma espécie de cinzento P.S. (vale para "post-scriptum") do Dia do Menino Jesus. 

Aos mais novos recordo que, nos meus tempos, era a 1 de outubro que recomeçavam as aulas, após as férias que nos anos sem exame (e dos sete do liceu, quatro eram anos desses) se espraiavam docemente entre 14 de junho e 30 de setembro, dia dos anos da minha avó. Para mim, espraiavam-se literalmente entre 1 de agosto e 28 ou 29 de setembro. 1 de agosto era o dia da viagem, entendendo-se por viagem o percurso entre o nº 86 da Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa, e a Villa Raul na Arrábida. Os quilómetros (46) não encolheram com o tempo, mas sem pontes sobre o Tejo (travessia em "ferry-boat"), camioneta de Cacilhas para Azeitão e mais camioneta de Azeitão para a Arrábida, o percurso era coisa para quatro, cinco horas a que se somavam as horas de espera pelas mencionadas carripanas, exclusivo de João Cândido Bello. Cedo erguer em Lisboa e pôr do sol na Arrábida, onde, felizmente, havíamos sido precedidos pelas criadas, que já tinham posto a casa mais ou menos em condições. Tudo era diferente, nos rituais do quotidiano. Não havia luz elétrica, a água provinha de uma cisterna e era levada em jarros para os quartos e respetivos lavatórios. Não havia telefonias nem telefones, não havia cinemas nem lojas. Havia a praia e os banhos, os passeios na serra. Um silêncio total. Regressar a Lisboa era passar do século XIX ao século XX. A surpresa de carregar num interruptor e fazer-se luz, da água a jorros, do telefone a tocar. À noite, na cama, eu ouvia os silvos dos comboios de Entrecampos e não mais a nortada a fazer ranger as madeiras das portas e dos tetos. Um ano acabara, começava outro, ao reencontrar (ou perder) colegas e professores nos pátios e nas aulas do Liceu Camões. Nunca mais via os primos e as meninas do Verão. Até outro Verão. Mas não o Verão, como eu não o via, com os mesmos olhos. O tempo ainda não passava a correr e um ano na adolescência é maior do que a légua da Póvoa. Nesse tempo, é que a vida eram literalmente dois dias: os dias do Inverno e os dias do Verão. As coisas então mais importantes para mim também se contavam a dois: os dias do campeonato de futebol e os dias sem campeonato, começou a época, acabou a época. Havia, no defeso, alguns sucedâneos (a Volta em Portugal em bicicleta, por exemplo), mas não era nada a mesma coisa. As temporadas dos cinemas: os grandes filmes chegavam em outubro e desfilavam até junho-julho, quando começam as "reprises". No Verão, muitos cinemas fechavam enquanto os anúncios anunciavam: "Temporada de 1949-50". Havia os amores de Verão e os desamores do Inverno, e só mais tarde começou a ser vice-versa. Havia os pecados de Lisboa e os pecados da Mata Coberta. Havia as missas em capelas de casas ou grutas particulares e havia as missas de S. Sebastião da Pedreira ou do Patronato. Havia um eu de Inverno e um eu de Verão. Como é que eu posso dizer que o ano não começa a 1 de outubro?


2 -
 É fácil darem-me cabo do sofisma. Afinal de contas estou a falar da infância e da adolescência e, descontando os anos sem memória, anos desses, em que a vida eram dois dias, não devem ter sido mais de 12. Numa contabilidade feita de hoje, é menos de um quinto da minha vida consciente, ou supostamente consciente. Como é que faço regra de tão breve exceção? 

Penso que o cinema tem alguma coisa a ver com isso. Afinal de contas, a Cinemateca sempre fechou para férias em agosto. Quando reabre, costumo eu tirá-las e só a 1 de outubro retomo a plena "existencialidade" dela ("existencialidade" ou "essencialidade"?). Mesmo os Agostos em Lisboa, se nada têm que ver com os Agostos de outrora, não são como os outros meses. As salas de cinema estão fechadas, os portões da Barata Salgueiro fecham às 20h, é preciso sair ou reentrar por outras portas. Se os Agostos da cidade já pouco se assemelham ao que me contavam de outras eras ("Lisboa, em agosto, sem a família, é melhor do que Baden-Baden", contava-se que contavam) são, mesmo assim, bastante mais tranquilos do que os outros 11 moradores do calendário. Como em tudo, a diferença tornou-se mais pequena, mas ainda existe e para alguns continua a ser saborosa. De setembro pouco vos posso dizer. Hoje, como ontem, é mês em "off" noutros "in". Mas a 1 de outubro, sim. A 1 de outubro tudo recomeça e prometo a mim próprio e aos outros a promessa de sempre: "Demain je serais sage."Por exemplo, prometo aos leitores do PÚBLICO que para o próximo Outubro não escrevo mais chaladices destas. Ocupar-me-ei com o devido vagar de um discurso do Presidente da República (fez um dos melhores e mais urgentes discursos dele no dia 30) ou de um político da cena internacional (dia 30 também foi o dia de Blair).


3 -
 Mas não estou tão desacompanhado quanto isso nesta crença outubral. Bem sei que a tendência dominante é para o 1 de setembro, mas setembrar ou outubrar não é o mais importante. O que mais conta, nos nossos ritmos e nas nossas rimas, é esta vontade de partir o ano ao meio, não onde manda o calendário, mas onde nos mandam o sol, a lua e os apetites. E aí basta ver por tudo quanto é sítio. Das omnipotentes televisões aos menos lidos jornais, não há quem não faça a sua época estival, mais "silly" ou menos "silly", conforme os usos e os poderes. Por exemplo, aprendi alguma coisa com uma dessas "especialidades" do Verão deste ano, no caso em questão a do "Diário de Notícias". O jornal retomou, em versão livre, o célebre "questionário de Proust", assim chamado só porque Proust lhe respondeu duas vezes. 

Nas respostas deste Verão reparei numa recorrência que me deu que pensar. À pergunta: "Qual o defeito que lhe inspira maior indulgência", houve, é certo, a resposta genial de Agustina ("o amor"), mas uma significativa percentagem (não fiz estatísticas) respondeu com a estupidez ou a ignorância. 
Que a estupidez seja um defeito é discutível (embora um amigo meu, católico, não hesitasse em a considerar um pecado, e mesmo o único pecado veramente mortal), mas que, sendo-o, seja, hoje, tão genericamente desculpável, deu-me que pensar. A condescendência - ou compreensão - com a ignorância ainda mais. Nunca fui muito nessa conversa de "gerações rascas" ou coisas quejandas. Mas quando tanta gente, nova em anos, se mostra tão tolerante com a estupidez e com a ignorância, pergunto-me se alguma coisa mesmo não se está a passar. "Morte à inteligência" foi um grito horrível ouvido há menos de um século nesta mesma península. Ficou para a História a resposta que teve. Essa história e essa História serão as mesmas habitadas pelos doces domesticadores da estupidez? Já estávamos habituados aos insultos aos "pseudo-inteletuais" na boca de qualquer desgraçado que não se sentia amado nem compreendido e sobretudo não compreendia nem amava o que "essa gente" fazia. Será necessário dar vivas à estupidez ou à ignorância? 
Lembro-me de um filme de 1994 - "Forrest Gump" chamava-se - em que o herói (Tom Hanks) era uma espécie de atrasado mental, que só tinha uma pálida ideia dos problemas e conflitos americanos ou mundiais. O filme retratava-o como um típico produto do que se chamou a "baby boomer generation", a que foi dominante entre a ascensão de Elvis e a queda de Nixon. Mas aquilo que no livro (de Winston Groom) serviu de base ao filme - uma sátira, mais ou menos verrinosa, contra essa geração - transformou-se, no filme de Zemeckis, numa apologia do "pobre de espírito", que triunfava, porque milhões de americanos se achavam iguais a ele e queriam que a América e o mundo fossem de homens como ele. Quando vi o filme, tive o primeiro prenúncio que aquele personagem não representava um tempo passado, mas um tempo futuro. O êxito desse elogio à estupidez deixou-me perplexo. Mais ano menos ano, não iria nova minoria reclamar direitos e a comemoração do Dia do Estúpido? Estúpido fui eu, porque, infelizmente, essa minoria é maioritária, na América ou em qualquer outro país. Quando as maiorias se unem, sobretudo em épocas globais, adivinham-se os resultados. 
Em Portugal, sem querer tomar tão pequena parte pelo todo, fiquei a saber que muitos se não incomodavam nada (ou se incomodavam pouco) com a ignorância e a estupidez alheias. "Deixa-os pousar", como se dizia antigamente na velha história do galo e dos abutres? Talvez seja pior. Porque, olhando o "Diário de Notícias" de 28 de setembro, vi, na reportagem da chamada "marcha branca" (convite tendencial a almas pacíficas e misericordiosas) um cartaz que pedia para os pedófilos castração e prisão perpétua. Um grupo de monstros infiltrado entre os manifestantes e que os organizadores não puderam controlar? Ficava mais descansado se fosse assim. Porque o mais provável é que nem maus sejam. Que sejam simplesmente ignorantes ou estúpidos, ou as duas coisas ao mesmo tempo, a mais explosiva mistura humana que imaginar se pode. E isso é, de tudo, o que mais me assusta. 
Resta-me esperar que sejam as últimas cinzas de Verão e não as primeiras chuvas de Inverno.


3 de outubro 2003, in Público

VINTE LIVROS PARA FÉRIAS…

 

À semelhança de outros anos, escolhemos vinte livros que serão uma excelente oportunidade de leitura para este verão…

 

Revista «Colóquio – Letras» - Correspondência inédita de Alexandre O’Neill e Diálogo Edgar Morin e Eduardo Lourenço.
«Rimas» de Francisco Petrarca (tradução de Vasco Graça Moura), (Quetzal).
«Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa» (diversos volumes) - coordenação Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco (Circulo de Leitores)
«A Cidade Virtuosa» - Alfarrabi (tradução de Catarina Belo) (F. C. Gulbenkian).
«Obras Completas de Maria Judite de Carvalho» – vol. I «Tanta Gente Mariana» e «As Palavras Poupadas» (Minotauro).
«Antero – ou a Noite Intacta» (Gradiva)
«Estuário» - Lídia Jorge (D. Quixote).
«Obra Perfeitamente Incompleta» - José Sesinando (Tinta da China).
«Na Prática a Teoria é Outra» - Vítor Cunha Rego (D. Quixote).
«O Fiel Defunto» - Germano Almeida (Caminho).
«O Fogo Será a Tua Casa» - Nuno Camarneiro (D. Quixote)
«A Sociedade dos Sonhadores» - José Eduardo Agualusa (D. Quixote)
«Gente Séria» - Hugo Mezena (Planeta).
«Portugal no Golfo Pérsico – 500 Anos» (vários autores), (Biblioteca Nacional de Portugal).
«O Fundo da Gaveta» - Vasco Pulido Valente (D. Quixote).
«Memórias Secretas» - Mário Cláudio (D. Quixote).
«Um Amante no Porto» - Rita Ferro (D. Quixote).
«Em Minúsculas» - Herberto Helder (Porto Editora).
«Os Ricos» - Maria Filomena Mónica (Esfera dos Livros).
«Correspondência Eugénio de Andrade e Jorge de Sena, 1949-1978» (Guerra e Paz). 

 

BOAS LEITURAS!

 

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

CINZAS DE VERÃO

 

1 - 1 de outubro. Para mim, os anos começam sempre a 1 de outubro. 1 de janeiro é só o menos estimulante dos dias da quadra do Natal, uma espécie de cinzento P.S. (vale para "post-scriptum") do Dia do Menino Jesus. 
Aos mais novos recordo que, nos meus tempos, era a 1 de outubro que recomeçavam as aulas, após as férias que nos anos sem exame (e dos sete do liceu, quatro eram anos desses) se espraiavam docemente entre 14 de junho e 30 de setembro, dia dos anos da minha avó. Para mim, espraiavam-se literalmente entre 1 de agosto e 28 ou 29 de setembro. 1 de agosto era o dia da viagem, entendendo-se por viagem o percurso entre o nº 86 da Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa, e a Villa Raul na Arrábida. Os quilómetros (46) não encolheram com o tempo, mas sem pontes sobre o Tejo (travessia em "ferry-boat"), camioneta de Cacilhas para Azeitão e mais camioneta de Azeitão para a Arrábida, o percurso era coisa para quatro, cinco horas a que se somavam as horas de espera pelas mencionadas carripanas, exclusivo de João Cândido Bello. Cedo erguer em Lisboa e pôr do sol na Arrábida, onde, felizmente, havíamos sido precedidos pelas criadas, que já tinham posto a casa mais ou menos em condições. Tudo era diferente, nos rituais do quotidiano. Não havia luz elétrica, a água provinha de uma cisterna e era levada em jarros para os quartos e respetivos lavatórios. Não havia telefonias nem telefones, não havia cinemas nem lojas. Havia a praia e os banhos, os passeios na serra. Um silêncio total. Regressar a Lisboa era passar do século XIX ao século XX. A surpresa de carregar num interruptor e fazer-se luz, da água a jorros, do telefone a tocar. À noite, na cama, eu ouvia os silvos dos comboios de Entrecampos e não mais a nortada a fazer ranger as madeiras das portas e dos tetos. Um ano acabara, começava outro, ao reencontrar (ou perder) colegas e professores nos pátios e nas aulas do Liceu Camões. Nunca mais via os primos e as meninas do Verão. Até outro Verão. Mas não o Verão, como eu não o via, com os mesmos olhos. O tempo ainda não passava a correr e um ano na adolescência é maior do que a légua da Póvoa. Nesse tempo, é que a vida eram literalmente dois dias: os dias do Inverno e os dias do Verão. As coisas então mais importantes para mim também se contavam a dois: os dias do campeonato de futebol e os dias sem campeonato, começou a época, acabou a época. Havia, no defeso, alguns sucedâneos (a Volta em Portugal em bicicleta, por exemplo), mas não era nada a mesma coisa. As temporadas dos cinemas: os grandes filmes chegavam em outubro e desfilavam até junho-julho, quando começam as "reprises". No Verão, muitos cinemas fechavam enquanto os anúncios anunciavam: "Temporada de 1949-50". Havia os amores de Verão e os desamores do Inverno, e só mais tarde começou a ser vice-versa. Havia os pecados de Lisboa e os pecados da Mata Coberta. Havia as missas em capelas de casas ou grutas particulares e havia as missas de S. Sebastião da Pedreira ou do Patronato. Havia um eu de Inverno e um eu de Verão. Como é que eu posso dizer que o ano não começa a 1 de outubro?

 

2 - É fácil darem-me cabo do sofisma. Afinal de contas estou a falar da infância e da adolescência e, descontando os anos sem memória, anos desses, em que a vida eram dois dias, não devem ter sido mais de 12. Numa contabilidade feita de hoje, é menos de um quinto da minha vida consciente, ou supostamente consciente. Como é que faço regra de tão breve exceção? 
Penso que o cinema tem alguma coisa a ver com isso. Afinal de contas, a Cinemateca sempre fechou para férias em agosto. Quando reabre, costumo eu tirá-las e só a 1 de outubro retomo a plena "existencialidade" dela ("existencialidade" ou "essencialidade"?). Mesmo os Agostos em Lisboa, se nada têm que ver com os Agostos de outrora, não são como os outros meses. As salas de cinema estão fechadas, os portões da Barata Salgueiro fecham às 20h, é preciso sair ou reentrar por outras portas. Se os Agostos da cidade já pouco se assemelham ao que me contavam de outras eras ("Lisboa, em agosto, sem a família, é melhor do que Baden-Baden", contava-se que contavam) são, mesmo assim, bastante mais tranquilos do que os outros 11 moradores do calendário. Como em tudo, a diferença tornou-se mais pequena, mas ainda existe e para alguns continua a ser saborosa. De setembro pouco vos posso dizer. Hoje, como ontem, é mês em "off" noutros "in". Mas a 1 de outubro, sim. A 1 de outubro tudo recomeça e prometo a mim próprio e aos outros a promessa de sempre: "Demain je serais sage."Por exemplo, prometo aos leitores do PÚBLICO que para o próximo Outubro não escrevo mais chaladices destas. Ocupar-me-ei com o devido vagar de um discurso do Presidente da República (fez um dos melhores e mais urgentes discursos dele no dia 30) ou de um político da cena internacional (dia 30 também foi o dia de Blair).

 

3 - Mas não estou tão desacompanhado quanto isso nesta crença outubral. Bem sei que a tendência dominante é para o 1 de setembro, mas setembrar ou outubrar não é o mais importante. O que mais conta, nos nossos ritmos e nas nossas rimas, é esta vontade de partir o ano ao meio, não onde manda o calendário, mas onde nos mandam o sol, a lua e os apetites. E aí basta ver por tudo quanto é sítio. Das omnipotentes televisões aos menos lidos jornais, não há quem não faça a sua época estival, mais "silly" ou menos "silly", conforme os usos e os poderes. Por exemplo, aprendi alguma coisa com uma dessas "especialidades" do Verão deste ano, no caso em questão a do "Diário de Notícias". O jornal retomou, em versão livre, o célebre "questionário de Proust", assim chamado só porque Proust lhe respondeu duas vezes. 
Nas respostas deste Verão reparei numa recorrência que me deu que pensar. À pergunta: "Qual o defeito que lhe inspira maior indulgência", houve, é certo, a resposta genial de Agustina ("o amor"), mas uma significativa percentagem (não fiz estatísticas) respondeu com a estupidez ou a ignorância. 
Que a estupidez seja um defeito é discutível (embora um amigo meu, católico, não hesitasse em a considerar um pecado, e mesmo o único pecado veramente mortal), mas que, sendo-o, seja, hoje, tão genericamente desculpável, deu-me que pensar. A condescendência - ou compreensão - com a ignorância ainda mais. Nunca fui muito nessa conversa de "gerações rascas" ou coisas quejandas. Mas quando tanta gente, nova em anos, se mostra tão tolerante com a estupidez e com a ignorância, pergunto-me se alguma coisa mesmo não se está a passar. "Morte à inteligência" foi um grito horrível ouvido há menos de um século nesta mesma península. Ficou para a História a resposta que teve. Essa história e essa História serão as mesmas habitadas pelos doces domesticadores da estupidez? Já estávamos habituados aos insultos aos "pseudo-inteletuais" na boca de qualquer desgraçado que não se sentia amado nem compreendido e sobretudo não compreendia nem amava o que "essa gente" fazia. Será necessário dar vivas à estupidez ou à ignorância? 
Lembro-me de um filme de 1994 - "Forrest Gump" chamava-se - em que o herói (Tom Hanks) era uma espécie de atrasado mental, que só tinha uma pálida ideia dos problemas e conflitos americanos ou mundiais. O filme retratava-o como um típico produto do que se chamou a "baby boomer generation", a que foi dominante entre a ascensão de Elvis e a queda de Nixon. Mas aquilo que no livro (de Winston Groom) serviu de base ao filme - uma sátira, mais ou menos verrinosa, contra essa geração - transformou-se, no filme de Zemeckis, numa apologia do "pobre de espírito", que triunfava, porque milhões de americanos se achavam iguais a ele e queriam que a América e o mundo fossem de homens como ele. Quando vi o filme, tive o primeiro prenúncio que aquele personagem não representava um tempo passado, mas um tempo futuro. O êxito desse elogio à estupidez deixou-me perplexo. Mais ano menos ano, não iria nova minoria reclamar direitos e a comemoração do Dia do Estúpido? Estúpido fui eu, porque, infelizmente, essa minoria é maioritária, na América ou em qualquer outro país. Quando as maiorias se unem, sobretudo em épocas globais, adivinham-se os resultados. 
Em Portugal, sem querer tomar tão pequena parte pelo todo, fiquei a saber que muitos se não incomodavam nada (ou se incomodavam pouco) com a ignorância e a estupidez alheias. "Deixa-os pousar", como se dizia antigamente na velha história do galo e dos abutres? Talvez seja pior. Porque, olhando o "Diário de Notícias" de 28 de setembro, vi, na reportagem da chamada "marcha branca" (convite tendencial a almas pacíficas e misericordiosas) um cartaz que pedia para os pedófilos castração e prisão perpétua. Um grupo de monstros infiltrado entre os manifestantes e que os organizadores não puderam controlar? Ficava mais descansado se fosse assim. Porque o mais provável é que nem maus sejam. Que sejam simplesmente ignorantes ou estúpidos, ou as duas coisas ao mesmo tempo, a mais explosiva mistura humana que imaginar se pode. E isso é, de tudo, o que mais me assusta. 
Resta-me esperar que sejam as últimas cinzas de Verão e não as primeiras chuvas de Inverno.
 

3 de outubro 2003, in Público

UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo X

 

 

Saltou de leve e rolou sobre o ombro para absorver o momento. Duas rodas, aumento da passada, balanço, corrida e subida da parede até onde dizia “Luana I love you: Jaime pôs a sola do ténis em cheio no coração sprayado a vermelho vivo no cimento. Tomou o balanço necessário para uma última pirueta no ar, parou no ar para olhar o mundo de cabeça ao contrário e quando aterrou, puxando o cós das calças e ajustando os fundilhos, mal poderia imaginar que aquela que lhe passaria pela cabeça lhe fulminaria o futuro de forma irreversível virando-lhe a vida para um outro avesso. 

 

De t-shirt a gritar “Light my Fire”, de ténis agora sem sangue pisado e sem skate por baixo, pensou naquela, aquela! de quem nem sabia o nome mas que se chamava Elisa e que personificara Tsela Curtis, aquela que era morena e que afinal eram duas, aquela que ele salvou da sua overdose com um fogo posto enquanto ela-enquanto-outra-mas-polícia namorava o seu amigo Nelson no Bar do Bill, o seu falhado alibi. Pagaria o acto heróico involuntário (e nada “à la Doors”) com uma pena de 7 anos.  

 

Hoje era o seu último dia de liberdade e sem saber muito bem o que fazer, Jaime sai da boca do metro no Marquês de Pombal, sem skate, sem olhar as ruas como uma geometria de curvas apetitosas para percorrer sem norte nem sul, sem cima nem baixo, e sobe agora o parque Eduardo VII como quem até aprecia andar com os dois pés calçados no chão, sem rodas por baixo. Jaime sobe o parque arrastando os pés pelo chão. Apenas a cabeça faz loops incansáveis no ar interrogando-se por que raio tinha de se ter lembrado dela naquele preciso momento, e porquê ela, e logo ela! Jaime percorria os olhos pelas estantes da 86ª feira do livro de Lisboa da direita para a esquerda, da esquerda para a direita nunca se atrevendo a olhar o céu pensando nos 15€ que tinha no bolso e que prometera gastar antes das 18h, hora em que tinha de se apresentar na penitenciária de Lisboa na Rua Marquês da Fronteira. Jaime tinha lido algures que a maioria dos filósofos e dos escritores tinham escrito as suas melhores obras em regimes de clausura, forçada ou não. Tinha de encarar esta injustiça como uma oportunidade. Era o que ouvia dizer ao mais popular dos políticos e ao mais Zen dos mestres. Uma pessoa perde a casa, perde o emprego, perde a família, perde a liberdade, perde mesmo o norte mas deve encarar tudo isso como uma oportunidade. 

 

Jaime pisara sangue mas era o sangue inventado que corre nas bermas dos filmes menores em que a vítima é muito mais quem mata do que quem morre que lhe acenava com possíveis finais felizes para este capítulo da sua vida. Pára logo ali na primeira banquinha e lê um título sobre o qual já ouvira falar. O mistério da boca do inferno. Pessoa e Crowley. De Crowley já ouvira falar porque assinava sempre com um 93/93, o mesmo número insubstituível de um qualquer jogador de basebol famoso que Jaime admirava e exibia numa t-shirt quando não vestia a dos Doors; e de Pessoa todos já tinham ouvido falar, então não era dele o do fogo que arde sem ver?, é ferida que arde e não se sente?… Oh não?…este fogo era de Camões, mas Pessoa também ardia por dentro, pensava Jaime, tal como a Elisa, tal como ele, o Jaime, tal como o Jim, o Morrison, mas também o francês do filme com o travelling mais longo sobre Paris que por acaso também atravessava a cidade lá para os lados de Père Lachaise. E ele mesmo, Jaime, que também era Jim, que também era Jules, não desprezava o facto de ter um nome iniciado pela letra J. Antes pelo contrário. Decidiu fazer jus à letra e ao legado muito Cahiers du Cinéma e ali mesmo decidiu que tinha três horas para se apaixonar antes de entrar na penitenciária e cumprir a sua pena. Jaime correu para o Bar do Bill, Nelson ainda lá estava, ou lá estava ele outra vez, com a gémea, a outra, a Palmira, a da coxa tatuada e com um sinal por entre as tatuagens. Jaime pisara sangue, as solas ficaram molhadas de morte, mas continuou a avançar. Até ao fim. Assim é que terminavam os filmes na vida real. Com um fim mesmo fim. Nelson olhou o amigo com surpresa, Palmira com horror, o Bill com ar de quem já tinha lido aquela história em qualquer lado, são muitas as gerações que passaram e se perderam por ali, ao seu balcão, mas Jaime não tem tempo a perder com primeiras ou últimas impressões, tem de cumprir o filme da sua vida, com a banda sonora ideal e tudo para depois a poder escrever depois de morto. Sim porque a prisão é uma morte temporária, olha que frase à maneira, pensou o Jaime já a desenhar o primeiro capítulo na sua cabeça, e Jaime não tem mesmo tempo a perder, agarra-se a Palmira e beija-a como se não houvesse amanhã e diz-lhe que foi tudo por causa dela, Percebes? Ela acena que sim mas é mentira, lá está, todos queremos ter o papel principal nas nossas vidas e se possível na de mais alguém, e ele pega-lhe na mão, acena a Nelson e diz-lhe: Vê! Entram os dois num carro dos anos 30, 40? (quanto tempo passa para Jules e Jim no filme das suas vidas?) e ele carrega a fundo no acelerador como se fosse a Jeanne, e não o Jaime, enquanto Palmira percebe de imediato que é Catherine, ou não fosse este o momento alto de um grande filme. À sua frente abre-se um abismo e eles são por um breve meio segundo, Jules e Catherine (ou seria o Jim quem conduzia?), Thelma e Louise, Butch Cassidy e Sundance Kid. Antes morrer que ser cativo. Antes matar o amor que não ser amado, e poder, depois de morto exibir a tal placidez, esboçar quiçá um sorriso, uma última ofensa para os vivos!, nós ali, depois de mortos, todos com cara de quem sabe que na vida nada acontece de especial.

 

São 8 euros e meio. Diz o vendedor da banca quando Jaime se preparava para levar o livro sem pagar.  

Desculpe-me. Consentiu Jaime, pousando o livro. Não precisava de mais um crime, não precisava de aumentar a pena nem ter um capítulo a mais no seu opus magnum. Subiu o resto do Eduardo VII sem olhar para qualquer livro. Comprou uma fartura. Pareceu-lhe uma boa ideia. No cimo do parque Eduardo VII olhou para trás para ver a cidade como nunca a tinha notado. Virou-lhe costas e pensou que gostava de ir ao cinema antes de se fechar numa cela. Mas a próxima sessão já começava tarde demais. 

 

 

. : : FIM : : .

 

 

UM ESTRANHO ENIGMA | Folhetim de Verão CNC 2016

Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados] 

 

Apoio       

 

 

 

 

 

 

 

 

 

UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo IX

 

 

JAIME, JIM E O GOLPE DO BES

 

I

Jaime nunca gostara de ser interrogado, encostado à parede. Mentir era uma forma de fuga, de meticulosa evasão usando as palavras como mola capaz de o projetar para além da nuvem densa da mais profunda suspeita. Sabiam sempre mais sobre ele do que seria capaz de imaginar. Lima sabia tudo a seu respeito. Ele era uma peça passiva e esquiva do seu jogo, nada mais. Quando lhe disseram que a “Judite” queria falar com ele, Jaime percebeu que o cerco se apertara muito para além do que o silêncio lhe permitia dissimular. À sua maneira era um artista sem palco e sem esperança, um filho do bairro armado em débil disfarce de si mesmo. Em boa verdade já nem sabia como se chorava. Se soubesse, inventava uma trama qualquer e carpiria mágoas por uma perda recente e irreparável. Qualquer uma lhe serviria na perfeição. Mas o choro nunca fora janela entreaberta para um seu voo defensivo.

 

II

Ele era daquele tempo e de muitos outros. Pertencia ao mundo das gémeas e a um outro que era só seu e no qual se guardava, disfarçado, como se ali houvesse um cofre inviolável. Perdia perdão a si mesmo por tudo aquilo que deixara de fazer como se alguém quisesse perder tempo a atribuir-lhe culpas do que quer que fosse.

O que mais desejava era estar longe, longíssimo, sabe-se lá onde, talvez no quarto de hotel onde Jim naquele dia terrível se despedira da música e da vida. Muitas vezes imaginou que ainda o poderiam responsabilizar por aquela morte que lhe tirou anos de vida. Lima, o inspetor ainda poderia insinuar que ele estava escondido num armário e que fora buscar a dose fatal, como se fosse o instrumento de uma ardilosa cabala para eliminar o cantor que tudo abalava, a começar pela enganadora tranquilidade dos resignados.

Ele nunca o dissera, mas sabia que Jim, se tivesse alguma convicção futebolística, só podia ser do Benfica, porque tinha cabeça e porte de águia desafiadora e sempre triunfante. O Benfica dava-lhe alegrias mas fazia-o pensar em tudo o que poderia ter sido se porventura tivesse conseguido escolher outro caminho e desenhar na areia molhada da praia ao amanhecer um outro rumo, um outro destino.

Assim, era um merdas e disso não conseguia livrar-se. Nada sabia sobre a rapariga que o incêndio não quisera poupar. Ela dava-se com gente que ele não conhecia nem se atrevia a tentar conhecer, porque há universos que não se misturam, exatamente como o de Jim com as tribunas de glória de um sistema que odiava e que jurara amachucá-lo até à morte, até ao derradeiro colapso que nenhuma canção, mesmo sofrida e dolorosa conseguiria descrever.

 

III

Estava atento às palavras do polícia e sobretudo aos seus silêncios. Os silêncios eram a oficina onde oleava as perguntas que lhe faziam tremer as pernas e lhe secavam a garganta, fosse qual fosse a cerveja gelada que lhe dessem para beber. E ali não havia cerveja nem água turva pela fadiga noturna dos canos. Ali só havia o seu medo ancestral e uma vontade inadiável de o verem amarrado a um enredo de que não era nem queria ser ator.

Se pudesse, se fosse capaz, deixava-se morrer como Jim e talvez alguém depois alguém lamentasse com arrastada lamúria: “Que pena, até nem era mau rapaz. Deu-lhe para isto como lhe podia ter dado ganhar um balúrdio no totoloto e mudar drasticamente de vida.”

Quanto mais o inspetor o apertava mais ele se lembrava do tempo em que era apanhado a jogar à bola nas traseiras da esquadra e passava, como castigo, duas ou três horas no banco reservado aos proxenetas e aos drogados. Ele não era nada disso mas podia ser muito mais, porque tudo na vida lhe saíra errado e esquinado. Nascera estupidamente sem sorte.

O pai de Jim era um oficial americano importante, um dos mandões, com um filho armado em grande lagarto do deserto a desafiar os deuses da erva e da chuva, o dele um desgraçado que voltara de Angola à espera de uma segunda chance e acabara por morrer vítima de trombose no quarto onde se refugiava a pensar num golpe militar que devolvesse o país ao que fora antes, terra sem alma e sem sonho onde um gajo até era capaz de imaginar que Deus, se existisse, lhe faria o jeito de o colocar no comboio certo para a felicidade.

 

IV

A Jaime, em vez de Vietname, caíra-lhe o bairro em sorte. Ele ali teria de ser tudo, de soldado raso a capitão aventureiro. Com essa patente e esse destino nem a avó de Kalu havia de desencantar meios que lhe permitissem sobreviver. Morria de medo de se sentir sozinho. A solidão era sempre um gume afiado que lhe atravessava a garganta e não o deixava respirar, sobretudo se estava a dormir e se imaginava Jim de corpo inteiro, com pais e mães a insultarem-no e a atingirem-no com a fruta podre do seu desprezo e e enquistado ódio.

Uma vez levaram-no a uma consulta de psiquiatria e ele confessou que, n verdade, era Jim e que nunca fora nem quisera ser outra coisa, para não trair um destino que lhe quisera dar a oportunidade de se imaginar melhor do que era. Tinha medo. Não havia nada que injetasse ou inalasse que lhe desse outro alento e energia. Adormecia Jaime e acordava Jim, com toda a gente em redor carpindo a dor da sua perda.

Houve tempos em que uma das gémeas lhe abrira as portas para entrar numa telenovela.
Foi a uma audição e não devem ter gostado do seu timbre de voz ou do olhar embaciado com que olhava para o mar através de um estúpida janela entreaberta. Mandaram-no voltar na semana seguinte, mas dessa vez queriam que fizesse ajudante de um mafioso que vendia joias, armas e droga pesada. Não fora talhado para papéis assim. Bem lhe dissera a avó de Kalu que todos na vida somos para o que nascemos e não para os papéis secundários que alguém nos dá para nos manter entretidos e sempre prontos para pegar de caras o destino em qualquer Campo Pequeno da puta das nossas vidas.

 

V

Como podia um fracassado candidato a ator-tapa-buracos meter-se na aventura da magoar ou matar alguém só para endireitar o barco escangalhado de uma vida sem rumo? Nem o Arnaldo que fiava minis tinha agora cacau bastante para o ajudar a saltar a vedação alta que o separava da grande planície onde podia correr rumo a lado nenhum, sombra de si mesmo, entontecido pela solidão e pela pegajosa tristeza de uma existência amarrada às cordas.

A mulher muito alta que lhe apareceu na frente, chamada por Lima, tinha o recorte estranho e indefinível de uma personagem de pesadelo, daqueles em que Jim se tornava Jaime e cantava no meio do fumo da casa de banho até lhe minguarem as forças e cair de borco quase com a cabeça enfiada na água tépida.

Jaime pisou sangue mas era o sangue inventado que corre nas bermas dos filmes menores em que a vítima é muito mais quem mata do que quem morre. Tudo até ali lhe correra mal. Até umas parcas massas que conseguiu arrecadar foram para comprar ações do BES que o deixaram ainda mais entalado do que já alguma estivera. Depois vieram ter com ele para ajudar a organizar manifestações em Lisboa e no Porto. E houve até alguém que, agarrando-o com força por um braço, lhe fez esta proposta, mais bizarra que um enredo em que Jim morresse para logo de seguida ressuscitar: “Se te pagarmos bem, podes ir a Cascais, àquela zona das vivendas, para as bandas da Boca do Inferno, e despachas o Salgado, que é amigo de muita gente, até do Presidente da República, mas que não escapa à sede de vingança dos desgraçados desta vida?”

Era só o que lhe faltava, depois de ter sangue debaixo das solas, agora queriam que se tornasse justiceiro, mesmo numa área de investigação que não era da competência do Lima, que nele era capaz de enxergar todas as culpas, incluindo as da passividade mais absoluta e provocadora perante a absoluta adversidade da vida. Deixassem-no em paz, ou apenas Jim mortificado pela sua estrutural incapacidade de ser outra coisa para além do imenso desaire de si próprio.

Estava cansado, com a boca seca, exausto e a mulher alta não lhe saía do campo de visão. Tinha ar, bem vistas as coisas, de gerente de uma velha casa de putas para a zona do Intendente. Agora só lhe faltava que ela viesse fazer-lhe perguntas sobre o que estava a fazer num carro alugado, berrantemente azul, nas imediações da casa de Ricardo Salgado com uma pistola de ar comprimido com uma ridícula mira telescópica. Uma das gémeas foi-lhe levar uma cerveja e perguntou-lhe num sussurro se já conseguira ver o banqueiro barricado atrás de uma tela italiana do século XIX representando Veneza turva e distante num dia de tempestade.

 

VI

O grande sonho de Jaime era encontrar-se com Jim e poder contar-lhe a épica da sua vida medíocre no meio de polícias de série B, de gémeas aberrantemente desiguais e de campanhas para o extermínio de banqueiros desonestos que tão mal haviam feito a um país sem rei nem roque que fizera do martírio da austeridade uma ida a Fátima sem retorno para a tão desejada salvação da alma.

Em nenhuma série daquelas em que embrutecia até de madrugada conseguira Jaime vislumbrar uma história tão ridícula e perversa. Com ele todos eram culpados, muito mais do que suspeitos, muito mais do que personagens caricaturais em busca de uma metafísica salvação. Cena em que ele entrasse e trouxesse consigo o elenco menor de outros malfadados enredos já tinha a sentença lavrada. E depois podia vir o inspetor Lima e a mulher desajeitadamente alta que ele se limitaria apenas, para apaziguamento da sua alma, a confirmar o que todos suspeitavam ser a verdade.

 

VII

O inspetor Lima era um homem da velha guarda, embora fosse matéria sobre a qual não gostasse nada de soltar a língua. Estivera em 1971 no Festival de Vilaer de Mouros e assistira à atuação de Elton John, que conseguira ver dentro de um camarim muito mal-amanhado a beijar o autor das letras das suas canções, um tal Bernie Taupin, que, segundo parece nada tinha a ver com a sua paixão por futebol. Eram outros tempos. Havia a guerra em África e quem por cá e desse mal logo ia bater com os costados em Angola ou em Moçambique. Jaime não conheceu esse tempo e esse país. O pai estava em Angola e nunca acreditou que o desfecho militar o obrigasse a desandar para Lisboa onde nunca estivera antes. A guerra era assunto que não o molestava. Sempre gostara mais dos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial em que o John Wayne dava as ordens certas para “entalar” o Hitler e o empurrar para Berlim, onde acabaria os seus malditos dias.

O Jaime agora tinha, com peso de chumbo, sobre os ombros a suspeita de andar a querer cobrar à força o dinheiro pilhado pelos aldrabões do BES, que ele nunca vira de perto e muito menos ao alcance de uma pequena arma vingativa.

 

VIII

- Jaime, acorda, que hoje é um dia especial. Estou a pensar ficar a viver aqui em Paris. Escrevo umas canções, dou umas entrevistas, publico uns livros e faço tudo voltar à estaca zero. Por isso é importante que venhas comigo àquela audição. O homem gosta de mim e dos “Doors”. Tu bem podes ajudá-lo a tomar a decisão certa. Se eu ficar a ganhar tu também ganhas.

Jim levantou-se com dificuldade da banheira, enxugou-se, acendeu um cigarro, vestiu uns “jeans”, uma velha “T-shirt”, bebeu apressadamente um café e preparou-se para sair do quarto. Jaime quis acompanhá-lo mas as pernas recusaram-se a obedecer-lhe. Sempre sonhara com aquele momento mágico e agora que estava a vivê-lo era a realidade que o bania e o mantinha irremediavelmente distante. O inspetor Lima entrou no quarto, como se sempre ali tivesse estado, ordenou a Jaime que levantasse os braços, disse-lhe que passara a noite a interrogar as gémeas e por fim revelou que o caso que o ligava à antiga Administração do BES já estava sob o seu controle e sem segredos. Tirou um cigarro da cigarreira e disse a Jaime, com a naturalidade de quem entra com altaneira segurança num filme: “Please light my fire”. 

 

 

 

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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo VIII

 

 

 

Recapitulemos: Duas morenas, gémeas, um jovem de skate, seu nome: Jaime. Não se lhe sabe o apelido. É um Jaime. Qualquer um. Pobre. Vive num Bairro – no Bairro, lugar indemonstrável, impraticável. Que Bairro? No meio disto tudo, personagens: uma das morenas gémeas, heroinómana. A outra, polícia? Para além de Jaime, personagens de circunstância: Fulgêncio Lima, inspetor; Mamã Rosa, dona do lugarejo – cubículo onde Jaime mora -; Kalu e Nélson, amigos ou conhecidos de Jaime, o último daqueles envolvido com a irmã polícia da morena defunta, da que morreu – ou não morreu – de overdose. E há a mulher alta, aquela que viu Jaime circundando o prédio onde morava a heroinómana-gémea e que se chama Palmira, também ela da PJ («Santos! Diga à agente Palmira que chegue aqui!»), disse o inspetor Lima aquando do interrogatório a Jaime, já aqui suspeito de ter ateado fogo ao prédio onde morava a primeira das gémeas. Tudo somado: Jaime ou é culpado ou é inocente, mas para efeitos de irrealismo total, diremos que nada do que tu, leitor, estás lendo aqui se passou exatamente assim. Na verdade, a questão fundamental não é saber por que razão se ateou fogo ao prédio da dita gémea, nem saber - como sabemos agora - que ela sobreviveu. Jaime, apesar de ter (ingenuamente, diga-se) lançado chamas ao prédio depois de a ter visto quase morta no chão do apartamento, fez o que mandam os manuais: apagar todas as provas que o pudessem colocar no tempo e espaço impróprios para um crime do próprio. Jaime não queria que o associassem a essa que, morta, lhe reaparecia, de coxa grossa e apetecível, nos braços do Nelson. A questão, caro leitor, é perceber – entender, escrutinar, analisar, escalpelizar – um facto que terá passado desapercebido a quem, neste emaranhado policial, não associou a t-shirt de Jaime ao fogo. Light my fire, toda a gente sabe disso, é música dos Doors, do seu primeiro álbum, de 1967, Verão do amor. Vietname, sangue, contestação às políticas de Johnson, operação «Rolling Thunder», bombas incendiárias nos campos de arroz vietnamitas; De Gaulle apupado em França; por cá, que portugueses somos, lá se disse «Para Angola, depressa e em força!», nas fracas e assobiadas palavras de chefe Sal e Azar. E é essa a questão: Jaime era, no Bairro, conhecido por ter, na sua família, casos estranhos, Gente fascinada pelo fogo, qualquer fogo. Light my fire, letra de Robbie Krieger, o guitarrista de flamenco da banda de Morrison, tinha escrito a letra. Também ele se viu envolvido num caso assim, similar ao de Jaime, em 1969, por ocasião da ida da banda ao Wiskey-a-go-go, bar de São Francisco, para uma última atuação. O facto foi simples: Krieger, procurando quem pudesse dar-lhe a dose exata para poder fazer o solo de guitarra a par das teclas de Manzareck naqueles imensos minutos de orquestração musical, tinha ido ao apartamento onde morava Tzela Curtis. Uma escultural preta, fêmea, de coxa definida, roupas coladas ao corpo alongado e leve, mas robusto e feito para recessos de amor e sexo à maneira holyywoodesca. Tzela aperta-lhe o garrote, as veias verdes vibram, o pó entrava e Krieger, enlevado, tocou como nunca nessa noite quente de 1969, mesmo de esgotado de tanta saliva gasta, em jeito de agradecimento a Tzela, percorridos que foram seios e púbis, axilas, coxa e braços, pés e seios e púbis, de falo mais cego que ereto. Jaime sabia dessa história. Light my fire. Naquele dia, que razão profunda tinha movido Jaime a ir ter com essa morena? Aquela morena que escapou por pouco de morrer de overdose? A envolvente imaginação de Jaime, jovem romântico, conhecido no Bairro por ouvir Doors e imitar a voz de Morrison e saber tudo sobre Krieger, Manzareck e Densmore, para além do ícone, o poeta James Douglas. Ele mesmo, Jaime, não desprezava o ter um nome iniciado pela letra J. Assim tinha conquistado algumas brancas granfinas das avenidas novas, algumas cabo-verdianas de usufruto fácil, entre morna e chorinho, assim teria de conquistar Elisa – o nome da gémea – essa afamada morena de veias verdes salientes e que, aos olhos de Jaime, trazia qualquer coisa do Summer of Love. Naquele dia, como tinha sido combinado, Jaime foi ter com Elisa (Elisa, língua de fogo, diziam lá no Bairro), ouvindo na sua banda sonora interior não só Light my fire, mas Strange Days. Strange Day, esse para Jaime. Tocou no apartamento de Elisa. Entrou. Recapitulemos: Jaime pisou sangue, as solas ficaram molhadas de morte, continuou a avançar. A morena igual às outras, que o levara misteriosamente até ali, estava à sua frente, a cara aberta num sorriso celestial, como se o universo fosse uma grande piada cujo final ainda está para soltar um Big Bang, então fungou, puxou as calças, olhou para as solas, olhou para ela, observando a estranha calma de um morto. Como é que um morto pode estar calmo, numa situação daquelas? Uma pessoa perde a vida e exibe placidez, até esboça um sorriso, que ofensa para os vivos, nós temos de ser ansiosos, sem isso não fazemos piruetas nem parafusos nem trepamos paredes, e ali estava ela com cara de quem não tinha acontecido nada de especial. Trocaram palavras duas ou três vezes, Jaime e ela, olhares também, mas nada mais do que isso, havia morenas mais bonitas e, perdoando a redundância, mais vivas. E agora pensava que a sola dos sapatos, as suas pegadas o incriminavam, que qualquer detetive seguiria aquele trilho. Um trilho de fogo: não, Elisa não era uma morena normal. Se havia morenas mais bonitas – vivas, claro, porque Jaime, olhando-a, entendeu que ela era já figura jazente no momento em que, no chão da casa, tinha, semi-nua, dado o caldo com que iria encarnar a persona de Tzela Curtis – o certo é que nenhuma, mas nenhuma, tinha aquela fama: «língua de fogo». E «fogo» é a palavra exata, a palavra densa, a palavra extrema para sabermos o porquê profundo de Jaime estar onde não devia estar. Poema de O’Neill («estou onde não devia estar») e cujo o verso lhe rebentava agora na cabeça, misturado com o refrão de Morrison: Come on baby light my fire. Esse o problema: Jaime sabia de Doors, tinha lido, aqui e ali, alguma poesia, estava onde não deveria estar. Mas o fogo – sempre o fogo – conduzia-o e Elisa, a negra, tinha-o conduzido. Guerra interior, romantismo, ingenuidade, Vietname e tudo somado: recapitulemos.

 

 

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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo VII

 

   

Olhando para Palmira, estremunhado, e vendo-se calçado, passou-lhe pela ideia o que fizera na véspera, não sabendo já se o sonhara se o vivera de facto. Vendo-se descalço, pouco lhe tinha restado senão desencantar um sapato em algum lado, circunstância improvável, mesmo apesar de, nos estendais suportados por paus altos, as vizinhas terem o costume de deixar os ténis dos putos a secar ao sol. Tomado pelo desespero, entrou no prédio de Kalu, que tinha a porta aberta, e subiu a escada, dando um murro na porta ao chegar ao segundo andar. Surpreendido a meio do programa da tarde, que via religiosamente, ouvindo especialistas em criminologia, vida social, ou doenças dos pés com uma atenção difícil de explicar: chegando a ligar do telemóvel para números de valor acrescentado tal e qual uma idosa com colesterol alto, Kalu abriu-lhe a porta. “Sócio, comé?” “Orientas-me uns ténis, mano? — explico-te depois.”

Saídos do quarto, onde se calçara, ao som das palmas da plateia alegre do Nós às Três, e esquecendo-se por momentos da sirene do carro da polícia, que se ouvia além das persianas corridas, não ocorreu a Jaime que seria importante desfazer-se do sapato que deixara no quarto do amigo. Estava estoirado e definitivamente comprometido, agora que envolvera Kalu no seu álibi de improviso. Na sala, à meia-luz, corria uma brisa de meio da tarde, ajudada por uma ventoinha antiga, que parecia soltar ainda mais calor, e levantava ao rodar duas tiras de tule lilás a ela presas. Cuidadosamente decorada por bibelôs sem valor, os dois não pareciam estar sozinhos na sala, mas antes vigiados, em primeiro plano, pela colecção de pequenos cães de porcelana, dispostos em círculo numa prateleira no armário em que a televisão da avó de Kalu estava incrustada: um exército de dissidentes, a que faltava, olhando-os de perto, as pontas de uma orelha, ou uma das patas. A toda a volta, sorria-lhes uma galeria de pequenas figuras, longinquamente parecidas a Kalu, em poses de festa e passeio, vestidas ora de noivas, contra o fundo turquesa acetinado, e já roído pela luz, de um estúdio fotográfico de bairro, ora apenas em roupas leves de praia, numa viagem memorável a Badajoz, emoldurada sobre um naperon de croché numa prateleira acima da televisão. Aquela gente morta, e apatetadamente feliz, saberia onde o encontrar, assemelhando-se por instantes a uma parada de detectives-fantasma, estranhamente apaziguadores.

 

Do ponto de vista das escassas relíquias da avó de Kalu, acumuladas com zelo e meia dúzia de trocos ao longo de décadas, a rua estava agora entre parêntesis, parecendo-lhe o mesmo que as brincadeiras com os amigos de que se despedia ao fim do dia, nas férias de verão, quando Vitória, sua madrinha, o chamava para jantar, tinha então nove anos. Na televisão, comentava-se um incêndio em Vila Pouca de Aguiar, lendo-se em rodapé que Joselito fora transferido para o Valência. Resolvido o assunto dos ténis, Kalu já pouco parecia dar pela sua presença, não se lembrando sequer de lhe perguntar porque tinha tanta pressa. Quem o lamentaria tivesse ele ardido no incêndio ou se fosse preso? O pessoal do café? O Sr. Arnaldo, do lugar, onde fiava minis? De que lhe valia a urgência em safar-se daquilo que não tinha feito, senão para confirmar que estava sozinho, o que apenas disfarçava a cada novo mortal, dominando o bairro como apenas o dominaria quem nada tem a perder? E então sentou-se junto a Kalu, perguntando-lhe se sabia onde ficava Vila Pouca de Aguiar. “Portugal é bué grande”, “um gajo aqui fechado é que não pensa nisso.” Mas quem era Kalu? Estaria a dormir de olhos abertos? Haviam passado menos que poucos minutos, e o seu silêncio diante das pernas longas da agente Palmira começava a enrascá-lo. 

 


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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo VI

 

    Ainda eram nove horas da manhã quando Mamã Rosa lhe bateu à porta do quarto.


    - Levanta-te já, Jaime, estão lá fora à tua procura.

    Num primeiro momento, não percebeu se estava a sonhar ou acordado. Não eram horas de tirar da cama um cidadão desprevenido e não acreditava que qualquer dos manos o viesse importunar a uma hora tão imprópria.

    - Foda-se, Mamã Rosa! Quem é que me vem chatear a esta hora?

    - É a Judiciária, Jaime, dois agentes.

    Saltou da cama, estremunhado, abriu a porta e deu de caras com a negra gordíssima que o olhava com um misto de pena e de terror.

    - O que é que arranjaste agora, Jaime? Não gosto de ver polícias a bater-me ao ferrolho...

    - Deixe que eu já vou ver o que eles querem.

    Vestiu os jeans coçados que estavam pendurados no cabide, enfiou a t-shirt com o rosto do Morrison, enfiou nos pés os ténis velhos e sujos, e caminhou devagar até à porta onde os agentes o esperavam.

    - Tens de vir connosco, Jaime. O Inspetor Lima quer falar contigo.
 


    Quando Jaime entrou no gabinete, viu Fulgêncio Lima de costas. Ficou de pé, especado à porta, mirando de soslaio um poster do Benfica colado às três pancadas na parede à sua esquerda. Ao menos o gajo é do Benfica, pensou. Podia ser um desses lagartos de merda, convencidos de que são gente importante e que não passam de uns betinhos presumidos. No bar do Bill eram todos lampiões, claro, e muitos deles integrantes dos Diabos Vermelhos, a mais antiga claque do clube.

    Quando Fulgêncio Lima se voltou, Jaime adivinhou-lhe um sorriso trocista.

    - Senta-te – e apontou-lhe uma cadeira do outro lado da secretária. – Ao que parece, eras amigo da rapariga que foi apanhada pelo incêndio que houve lá no teu bairro. Como era o nome dela?

    - Não sei, inspetor. Era uma morena igual às outras.

    - Mas que tu foste visitar nesse dia?

    - Nunca a visitei, inspetor. Nem sei ao certo onde mora. Conhecia melhor uma irmã gémea que tem, que por vezes se amarra no bar do Bill com o meu amigo Nelson.

    Passou-lhe pela cabeça a imagem da coxa grossa e imaginou um sinal no meio das tatuagens que a cobriam. Se calhar não devia ter falado do Nelson.

    - Vamos a ver se nos entendemos. Aquela a que chamas morena estava no quarto com uma overdose das antigas quando alguém lhe chegou fogo à casa. Para a matar ou para destruir outras provas? Tu foste visto nas imediações e portanto vais-me contar a história toda tintim por tintim.

    Jaime sentiu um ligeiro tremor nas pernas. O sacana do polícia estava a tentar encalacrá-lo, mas ele conhecia muito bem essa técnica de dar como certo o que era apenas conjetura. Ou não fosse fã das séries policiais que o Bill punha à noite como chamariz, aproveitando-se do facto de quase ninguém por ali ter acesso ao cabo. Estás a tentar foder-me, pensou. Mas como é que sabes que estive ali por perto?


    - Não sei nada dessa história, inspetor.

    Fulgêncio Lima olhou-o de novo com o sorriso trocista que lhe adivinhara há pouco, pegou no telefone, marcou uma extensão e, quando o atenderam, ordenou:


    - Santos? Diga à agente Palmira que chegue aqui.


    Quando a porta se abriu, entrou uma mulher muito alta que Jaime julgava já ter visto.

 

 

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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo V

 

E nisto Jaime nauseado, não era a primeira vez que lhe dava, em situações de pânico, uns ameaços de vómitos que nunca se decidiam, ficavam ali a atormentá-lo, a embrulhar-lhe o estômago, curioso, pensava, ele que dava piruetas, fazia rodopios, saltava à altura de parapeitos sem vertigens, uma vez até de um terceiro andar, caramba, era um skater reputado lá no bairro, o seu próprio corpo devia mostrar alguma consideração por ele mesmo, e esta sensação que não o abandonava, o andar de embarcadiço, o olhar de marinheiro ausente, já afastar-se do Bar do Bill, enjoado com o cheiro a charro, alheado das interpelações pouco lúcidas do Nelson abraçado à morta ou à gémea da morta, ia dar no mesmo, que coisa, ele até tinha um olhar felino, calculava com precisão as distâncias, raramente se estampava e se acontecia, era defeito do material, um deck bambo, o parafuso do truck que se soltava, as rodas já sem aderência, os amortecedores manhosos, que o Rastapoupolos até nem era mau tipo, mas toda a gente sabia que na oficina dele as peças não vinham em primeira mão, e por isso custavam um terço do preço, mais trabalho lhe dava embalá-las no invólucro certificado a dizer «à prova de contrafação» do que faná-las aos betos das avenidas, coitado, não era mau tipo, a intrujice estava-lhe no sangue, ninguém do bairro levaria a mal se ele confessasse que tiveram muitas andanças e outros donos aqueles skates desmontados, grande maluco o Rastapopulos, devia ser o único brother que Jaime conhecia que tentava adaptar a sua imagem à alcunha que um dia um setôr lhe colocou, vinha de uma banda desenhada qualquer, parece, coisas de cotas, mas a malta achou graça, era exótico e ficou assim, e lá teve o bacano de deixar crescer rastas até às omoplatas, apesar de ter cabelo fino, quase louro, e duas entradas que ameaçavam alopécia precoce, diabos, o enjoo não o largava, também dar de caras com uma morta, e ver a sua réplica minutos depois, sabia lá se tinha ou não sinal na coxa, ainda por cima vinham-lhe à cabeça umas tatuagens demasiado familiares, já tinham passado por baixo dos seus olhos, ou dos seus dedos, numa destas noites de nebulosa, um dragão enrolado a soprar labaredas, funesta coincidência, e isso ainda lhe dava mais tonturas, precisava de acalmar, recuperar forças para enfrentar a fúria da mamã Rosa, por causa da maldita chave, e ainda a da bófia, por causa de um crime que não cometeu, pensando bem, antes a bófia do que a mamã Rosa, não lhe daria tréguas, ela bem o avisou que devia usar uma corrente nas presilhas das calças para não perder a chave nos seus saltos mirabolantes, mas onde se viu um skater de corrente, ia ser a chacota do bairro, pensando bem, antes a fúria da Mamã Rosa, no elenco das iras que tentava hierarquizar, do que ser gozado pelos manos, pá, que um homem não é de ferro, até no pé sentia uma dor, era capaz de ser uma dor reflexa e só agora a sentia, o melhor era beber mais um pouco de água e foi ao passar pelo chafariz que deu por ela, a chave, a rebrilhar, entre as golfadas intermitentes, passou os dedos pelas reentrâncias, não havia dúvidas de que era a sua chave, estava safo, da polícia, da Mamã Rosa, da morta e da sua gémea e nisto passa-lhe a náusea tal como chegara, só aquela dor no pé, que ele, de tão feliz, fazia por ignorar, agora, prometia-se, iria portar-se bem, manter-se à sombra durante uns tempos, bastou para o susto, e nem é tarde nem é cedo, rumaria de seguida à oficina do Rastapopoulos que, além de outras coisas, também fazia duplicados de chaves, era muito dotado o rapaz, estranha esta sensação agora de estar a ser observado, bem o sabia, a sua fama no bairro não o deixava passar incógnito, mas geralmente recebia olhares de apreço ou de medo, não este tipo de olhar de soslaio e que ele não sabia descodificar, bem, havia de averiguar mais tarde, tinha de gozar bem a sensação de alívio, respirar fundo, começava a ouvir uns rumores, grupos de pessoas que comentavam o incêndio, que foi logo extinto pelos bombeiros, antes assim, que se não fossem os soldados da paz a arrombarem a porta nunca dariam pela morena, que se safou por pouco da overdose, diz quem viu que até sangrava pelo nariz, enquanto a transportavam na maca, excelente, meu, não havia morte, não havia homicídio, e se não fosse ele a atear o incêndio a tipa não se salvava, top, queria lá saber da gémea, do sinal na coxa, desde os chuis não suspeitassem, tá-se bem, algo lhe dizia que ainda seriam muito felizes os três, quem sabe, Jaime gostava e sonhar e saltar alto, mexericos, sirenes da polícia, só não percebia bem porque o olhavam, na rua, tão insistentemente, daí a nada haveriam de conhecer a fúria de um Jaime irritado, não era bonito de se ver, ai não era, não, e já ia chegando à oficina do Rastas, sempre cheia de clientela, novos rumores, novas conversas, tinham descoberto uns ténis meio derretidos no pátio da morena, número 43, a polícia procurava um skater incendiário e descalço, Jaime conectou os neurónios à dor no pé, era um facto, tinha andado este tempo descalço, toda a gente cochichava à sua passagem, e além disso, sangrava de um dedo mindinho.  


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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo IV

 

 

     - Como poderia ser, pensou Jaime, tinha-a visto morta e estava ali, viva da costa, com os olhos fixos nele, e ele a sentir-se já culpado da sua ressurreição?

     E lembrou-se de que a morena lhe falara da irmã gémea, tal qual como ela, a não ser um sinal a meio da coxa grossa, e ele agora perplexo. Seria esta a morta, ou seria a outra? Os jeans e o blusão impecáveis não deixavam margem para dúvidas, era da bófia, só elas se aperaltavam assim, ao contrário da que deixara morta e tinha jeans rasgados, um blusão mais para engate do que outra coisa, o cabedal sem cor, de tão coçado, e ele sempre a dizer-lhe que se aperaltasse, assim é que não iria a lado nenhum, e ela a perguntar-lhe:

     - Mas para que lado queres que eu vá?

     Tivesse ele sabido que iria encontrar a gémea, e não teria dúvida, antes de sair do prédio e que o fogo consumisse tudo, faria o que nunca tinha feito, despir-lhe-ia os jeans e confirmaria que ela tinha o sinal onde lhe tinha dito que estava, a meio da coxa grossa, agora é que não havia nada a fazer. Não ia voltar à cena do crime, falar com a médica legista que já lá devia estar e perguntar-lhe:

     - Doutora, havia um sinal tal e coiso em tal parte?

     E só avivaria desconfiança, como é que sabe do sinal? Para que quer a informação? Identifique-se.

     E ele a balbuciar desculpas, a procurar explicações, só queria confirmar que esta é uma e não a outra.

     Mas agora era tarde. Em frente da que pensava ser a gémea, mas que podia ser a outra, a morta, não sabia o que fazer, a não ser que não lhe iria perguntar:


     - É verdade que tem um sinal a meio da coxa? 

     Se lhe perguntasse, ela puxaria do cartão da polícia, e ele a ver-se metido em sarilhos, com a judite não se brinca, lá iria para o interrogatório, e sabia que iria cuspir tudo cá para fora, ainda por cima a irmã, se fosse ela, havia de querer saber da coisa ao pormenor, como é que ele sabia do sinal, que intimidades teriam, se teria sido naquele dia, naquele apartamento, que ele tinha sabido do sinal? Tê-la-ia despido, visto o sinal, teria sido droga, violação, o diabo a quatro é que ele sabia o que fora, mas a forma como ela o olhava é que não era de quem nunca o vira, e ele a tentar lembrar-se. De tantas morenas, de tantas noites, de tanta luz ofuscante em concertos em que as caras se confundem, podia ser que tivesse levado a morena para um banco de jardim, que ela lhe tivesse contado a vida toda e ele, que chatice, quero é voltar para a confusão, mas ela a insistir com a conversa.

     Pouco importa, a gémea estava morta, ele tinha pegado fogo ao corpo, e agora estava ali, viva, e ele sem saber se era ela ou a outra, e qual delas era chui? Aqui, era crime agravado: ainda se fosse a morena da vida a que ele incendiou, agora a irmã é que não, quase se sentia criminoso, afinal o que fizera fora apenas pôr-se ao fresco e não deixar pegadas, e era tão inocente que nem olhara para trás, ao atear a chama; e se o corpo não tivesse ardido, ainda haveria razões para o incriminar?
     

    E a gémea a olhá-lo, ou seria a morena? Que tem para me dizer? Confesse tudo. Onde está a arma com que matou a minha irmã?


     Olhou para Nelson, que se aproximara da gémea e a abraçara, como que a protegê-la, sentira que havia ali alguma coisa estranha, um enigma.


     E sentiu-se subitamente aliviado. Afinal, basta que pegue em Nelson por um braço e o levasse para fora dali, se ele a abraçava é porque havia intimidade entre eles.


     - Ouve lá, uma pergunta, ouvi dizer que ela tem um sinal a meio da coxa?

     E o seu reino por uma resposta, acrescentaria se tivesse cultura para tanto, pedindo a Deus, o que quer que fosse, que ele não lhe dissesse:


     - Sinal, com tanta tatuagem na coxa, como queres que eu saiba se há ali um sinal?

 

 


UM ESTRANHO ENIGMA
| Folhetim de Verão CNC 2016

Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados] 

 

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