Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Conta-se que, uma vez, estava um miúdo com a mãe, junto ao cadáver da avó. A mãe explicou ao filho: "Vês? Agora, o corpo vai para a Terra, a alma foi para Deus. Quando eu morrer, o meu corpo vai para a Terra e a minha alma vai ter com Deus. Depois, quando tu morreres, também vai ser assim: O teu corpo vai para o cemitério; a tua alma vai ter com Deus". E o miúdo, aflito, perguntou: "E eu?"
Esta pequena história, na sua aparente ingenuidade, ilustra bem todo o enigma da constituição humana. O pensamento enveredou frequentemente pelo dualismo, que quer exprimir uma tensão vivida: eu sou um corpo que diz eu, mas ao mesmo tempo penso-me como tendo um corpo, pois o eu fontal parece não identificar-se com o corpo. Parece haver no Homem um excesso face ao corpo, experienciado, por exemplo, na possibilidade do suicídio: Eu posso matar-me. Mas, por outro lado, eu não sou uma alma que carrega um corpo, à maneira de uma coisa que eu tivesse. Vivo-me desde dentro como sujeito corpóreo, um corpo-sujeito e matéria pessoal. O meu corpo sou eu mesmo presentificado, é a minha visibilização, sou eu próprio voltado para os outros. Numa concepção dualista de alma e corpo, os pais não seriam realmente pais dos filhos, mas apenas de um corpo que transporta ou é transportado por uma alma que viria de fora...
Vergílio Ferreira, referindo-se ao enigma humano, escreveu num misto realista, dramático e sublime: "Um corpo é o que em obra superior ele produz. Como é fascinante pensá-lo. Um novelo de tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um incansável produtor de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se manifestar, de rebentar o que a trava, sustida a custo a toda a hora para a decência do convívio, um equilíbrio difícil em dois pés precários, uma latrina ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na visibilidade disso, a harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de uma palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo da sublimidade sobre o mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá vontade de chorar. De alegria, de ternura, de compaixão. Dá vontade de enlouquecer".
O corpo humano é corpo pessoal, na tensão da inevitabilidade de morrer e do desejo de uma espiritualização crescente para uma personalização eterna. O corpo humano é corpo falante, e a palavra é o sentido encarnado — com a palavra dizemos o mundo, dizemo-nos a nós mesmos, comunicamos, abrimo-nos à questão da Transcendência —, de tal modo que pelo facto de falar o corpo humano será sempre misterioso. Nâo cabe numa concepção naturalista do real.
É infinitamente estranho e enigmático o significado de dizer "eu". Só cada um o pode dizer de si mesmo, com sentido único e irrepetível. Não é universalizável. Ninguém pode dizer "eu" na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro, outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro - outro eu, mas sobretudo um eu outro - é irredutível. É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele olhar, daquele olhar do outro - olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele me vê? O que se passará nele/nela, dentro dele/dela, quando me vê, quando me observa, quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!... O que é que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um "embrulhinho" (perdoe-se a expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro - o menino, a menina, o Vítor, a Rita... - até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?
Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim. Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo. E vamos ao espelho, admirados: “Eu sou este?”. Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último - parte da subjectividade - que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu objectivo e o eu subjectivo.
Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no nada. Mas, descendo até ao abismo de mim, aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é, enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí - no eu irredutível - posso encontrar-me com o mistério do Deus criador. É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada nem para ninguém, que se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián Marías: "A realidade psicofísica do filho - corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. - 'deriva' da dos pais, e neste sentido é 'redutível' a ela. Mas o filho que é e diz 'eu' é absolutamente irredutível ao eu do pai bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro, entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que 'vem' deles, pois eu não posso vir de outro eu, já que este é um 'tu' irredutível. Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa - de uma pessoa - enquanto tal é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de uma realidade nova e intrinsecamente irredutível".
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 25 de setembro de 2021
Evocação dos Teatros de Gouveia, a propósito do centenário do nascimento de Vergílio Ferreira
Assinala-se este ano o centenário do nascimento de Vergílio Ferreira. Nascido em Melo - Conselho de Gouveia, em 1916 e falecido em 1996, o que nos remete para a evocação também dos 20 anos da sua morte. Esta circunstância justificará uma evocação do imponente e hoje em plena atividade Teatro Cine de Gouveia, construído em 1942 e devidamente restaurado e requalificado no ano 2000.
Mas também devemos evocar, não só o grande escritor, dramaturgo episódico e teorizador da arte do teatro, que dá o nome à Biblioteca Municipal da cidade, e também a própria tradição de edifícios e atividade teatral de Gouveia.
E nesse aspeto, é interessante recordar, no seguimento destas crónicas, que a então interioríssima Gouveia do século XIX inaugurou o seu primeiro teatro em 1878, denominado Teatro Hermínio, iniciativa de uma então pujante Associação de Beneficência Popular. A obra foi dirigida por José Pinto de Sousa e o espetáculo de estreia esteve a cargo de uma companhia protagonizada pelo ator Francisco Taborda, então um nome primordial no teatro português como aqui temos dito.
Transcrevemos a propósito parte da referência que o sempre citável “Diccionário do Theatro Português” de Sousa Bastos dedica, em 1903, a este Teatro Hermínio de Gouveia: “Tem 13 camarotes, 20 cadeiras, 94 lugares de plateia e 111 de galeria. (…) É lindamente iluminado a luz elétrica. (…)
Ultimamente têm sido feitos grandes melhoramentos na sala havendo ao centro do arco do proscénio um escudo com o nome de Taborda”
Vejamos então o que se passou com o Teatro Cinema de Gouveia. Foi inaugurado em 13 de novembro de 1942 com uma sucessão de espetáculos a cargo da Companhia Rey Colaço - Robles Monteiro, na época, como bem sabemos, referencial (e de certo modo ainda hoje…) do meio teatral português. A companhia permaneceu três dias em sucessivos espetáculos, o que também é de assinalar. A lotação rondava os 350 lugares.
Mas sobretudo, impunha-se a imponência modernista do edifício, com galeria exterior e dupla fachada em que domina a própria designação programática de Teatro Cine numa coluna vertical em rotunda, a unir as duas fachadas, uma delas totalmente envidraçada: exemplo notável de arquitetura de espetáculo.
Vergílio Ferreira escreveu uma única peça, “Redenção”, que publicou em 1949 na revista “Vértice” mas que não inclui na sua bibliografia. Mesmo, assim, tal como noutro lugar já referi, é um texto com interesse, no conflito existencial do “poeta”, que se encerra na sua própria solidão angustiada e “hesitante” recusando a participação que os amigos lhe propõem para no final morrer no terror desse mesmo isolamento social.
É, repita-se, a sua única peça conhecida.
E no entanto, no livro intitulado “Pensar” (1992) Vergílio Ferreira traça uma longa e profunda análise sobre a arte do teatro, que aqui transcrevemos em parte:
“De todas as artes espetaculares a que o mais o é, é o teatro. Ela é por isso mesmo aquela de que mais normalmente se diz que é um «espetáculo». E de tudo o que se caracteriza por um grande efeito público se diz que é «espetacular» (…) Isso explica ainda porque é o teatro a forma de arte privilegiada para um tempo de ação revolucionária, um tempo em que, estando-se fora dele pela arte, está-se dentro dele pelo que de real e imediato há nesse estar em público de seres reais que são os atores” …
1. Vergílio Ferreira, na cerimónia em que lhe foi atribuído o prémio Europália, em 1991, leu um discurso onde afirma a ligação da língua portuguesa com o mar. Registamos aqui essa emblemática e representativa citação:
“A alma do meu país teve o tamanho do mundo (…). Uma língua é o lugar donde se vê o mundo, e em que se tratam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor, como da dos outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação. Assim o apelo que vinha dele foi o apelo que ia de nós. E foi nessa consubstanciação que um novo espírito se formou”.
Tentando detetar e interpretar as linhas de força daqui emergentes, podemos concluir que foi viajando, pelo mar e através dele, que se descobriu e descobre a ousadia de Portugal, não se limitando à sua pequenez territorial, aprendendo que o mundo é um conjunto de territórios entrelaçados por oceanos. Sendo um país limitado por terra, por um maior e mais populoso, a ambição possível era o mar. Existindo vontade de crescer, ou ia por mar, no achamento de outras terras e povos desconhecidos, ou abria-se e voltava-se em pleno para a Europa, não lhe virando as costas, pois é também do mar que a vemos. A opção prioritária foi o mar. Não iam sozinhos os intérpretes de tais viagens. Outros viajantes os acompanhavam e ultrapassavam em termos de importância, intemporalidade e longevidade: a cultura, a língua e a religião. Sendo companhia e intérprete permanente de todos os outros, a língua acaba por assumir um lugar primordial, corroborado pelas suas inegáveis consequências na atualidade e em termos estratégicos.
2. O mar, para nós, portugueses, sempre foi, e é, um interesse permanente, pela sua imutabilidade e incontestável geografia marítima e situação geográfica de Portugal. Perdido o império, a ausência de interesse pelo mar foi suprida pelo novo desígnio de adesão e integração na Comunidade Económica Europeia, onde impera uma opção europeia pela continentalidade e em que a Europa passa a exercer uma atração centrípeta no essencial.
Mesmo assim, continuamos a ser uma nação de vocação marítima debruçada para o Atlântico. Onde a omnipresença do mar e da viagem é constante na arte, nos monumentos, na religião, nos costumes e tradições deixados pelo interagir sucessivo a partir das primeiras viagens. Assim como na expressão artística por excelência da nossa língua, ou seja, na literatura portuguesa e lusófona. E em que sobressai, ainda, a disseminação da língua portuguesa na sequência dos descobrimentos, pela diáspora portuguesa, lusófona e contemporânea, pela sua dimensão de mercado e potencial geoestratégico, dado ter sido capaz de atravessar espaços geográficos deslocalizados territorialmente e abraçados pelo mar, numa descontinuidade linguística banhada por vários oceanos e continentes, como transoceânica e intercontinental, enriquecendo-a e miscigenando-a.
Numa consciência e compreensão dos nossos interesses permanentes emergem, como defesa, continuidade e projeção do nosso ser e identidade o mar e a língua portuguesa, reciprocamente sempre interligados, com e pela a adesão à viagem, o que implica uma abertura ao outro, o que é reforçado por se constatar que o mar une todos os países de língua portuguesa.
Se o mar, pela sua natureza e por imperativo geográfico, é insuperável, tendo sempre sido, e continuando a ser, um interesse permanente, já o nosso idioma, embora também tenha, até agora, caraterísticas de permanência, está mais dependente de um ato de vontade nosso, firme e incessante, que podemos continuar a defender, se quisermos, perante toda e qualquer ameaça.
Joaquim Miguel De Morgado Patrício 07 de novembro de 2016