Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O turista não vai além daquilo que está à vista, do que vê nos postais, guias, revistas, vídeos de viagens e o que publica nas redes sociais, planeando e fazendo o que está certo, observando ao longe e privilegiando selfies e fotos, para aparecer, provar que existe e dizer: “Vejam, eu estou aqui e estive lá”.
O viajante, em geral, não é turista, é alguém que explora, chega a um determinado lugar e descobre, improvisa, planeia e segue ao sabor do vento, foge às rotas mais típicas e massificadas, é altamente opinativo, de subtileza no olhar, sem perder os lugares imperdíveis e os alternativos.
Vivendo numa espécie de ecrã global, em que todos querem aparecer a qualquer preço, em que conta, cada vez mais, o que projetamos de nós numa imagem, vendo a vida através de uma câmara, há que saber distinguir entre os que estão essencialmente preocupados em visitar os lugares mais na moda e populares, tirar selfies para provarem que estiveram lá (turistas) e os que querem conhecer, descobrir, experimentar e sentir outros locais e culturas através da história, tradições, modo de vida e gastronomia local, tirando fotografias para memória (viajantes).
Nem todas as pessoas, incluindo turistas ou viajantes, publicam as suas imagens de viagens nas redes sociais, tipo “Maria vai com as outras”, em obediência ao modismo narcisista “se não te mostras, não existes”, pois nem todos os outros têm de estar informados de tudo o que fazemos, sob pena de exclusão da nossa privacidade.
Em ambas as situações há uma antecipação da viagem, que nos dá a diferença entre o modo como imaginamos um lugar e o que pode acontecer quando lá chegamos, havendo a ideia de que a realidade da viagem não é o que antecipamos mentalmente, podendo-o ser para melhor (otimistas) ou para pior (pessimistas), sendo tido como mais seguro sugerir que é, antes de tudo, fundamentalmente diferente.
E se, por um lado, em ambos os casos, a memória opera um processo de simplificação e de triagem de imagens das viagens feitas, em que a memória ativa não reteve mais que um número restrito delas, que sobrevivem conscientemente, também é verdade que enquanto o turista visita o eventual lugar dos seus sonhos, o viajante visita mais lugares dos seus sonhos por onde quer viajar.
Uma viagem não se resume ao tempo em que se realiza. Antegozamo-la nos preparativos, na procura de pistas, na definição dos percursos e até no modo como os poderemos realizar. Depois de partir, e sobretudo porque já definimos o campo de interesse, verificamos que a realidade ultrapassa o que pudemos imaginar. Não se trata de fazer ofício de turista acidental, mas de ir ao encontro de memórias perdidas ou esquecidas, desde as pedras às palavras, dos costumes às reminiscências históricas. A viagem tem sempre um fundamento no instinto nómada que nos acompanha. E é esse prazer de viajar, que nos leva à procura de fragmentos de nós mesmos espalhados pelo mundo. Nada melhor do que ilustrar o que dizemos com um caso prático.
Cidade fantasmagórica, Alcântara, em frente a São Luís do Maranhão, no outro lado da baía de São Marcos, é a recordação de um tempo que já não volta. E como o prazer supremo está em viajar pelo mundo com livros nas mãos e com leituras em dia, eis que Josué Montello nos ajuda na decifração do espírito do lugar: “Na calma da tarde ensolarada, vou andando pelo Largo da Matriz, e não encontro uma única pessoa. Tudo quieto. Não ouço rumor de vida à minha volta. Nem sequer uma revoada de andorinhas estala o seu alarido feliz por cima dos telhados escuros. Se apuro mais o ouvido, interrogando o silêncio que me rodeia, distingo uma rolinha chorando na borda de um beiral. É um choro manso, repetido, que não tem fim” (Noite Sobre Alcântara, Livros do Brasil, 1989). Mas recuemos no tempo. A cidade foi rica e opulenta. Fundada em 1648 foi centro da atividade económica da produção da cana-de-açúcar e do algodão até à abolição da escravatura, no terceiro quartel do século XIX. Trata-se de um conjunto arquitetónico dos séculos XVII e XVIII paradoxalmente preservado, entre ruínas e memórias, pelo abandono dos seus habitantes quando a decadência se tornou inexorável.
O catamaran leva-nos de São Luís até Alcântara. Ao aproximarmo-nos de terra e do velho porto, Danilo, o guia, recorda-nos que aqui houve um povoamento tupinambá, a aldeia de Tapuitapera, fundada por índios tapuias, que os tupis expulsaram. E se a colonização francesa ainda manteve os índios no local, a verdade é que o desenvolvimento agrícola, por um lado, a escravatura negra e um surto terrível de varíola (1663), por outro, afastaram definitivamente os índios da região. Alcântara foi buscar o nome ao lugar de Alcântara em Lisboa, donde provinha António Coelho Carvalho, o donatário da capitania de Cumã. A vila desenvolveu-se porque se tornou um ponto obrigatório nas ligações entre São Luís e Belém do Pará, e porque serviu de base às forças portuguesas que expulsaram os holandeses do Maranhão.
Estamos no Porto do Jacaré. Uns sobem a pé até à povoação pela ladeira, outros preferem seguir no ónibus. Depressa nos encontramos na Rua das Mercês, entre a igreja e a Casa da Câmara. A economia da cidade baseava-se nos engenhos do açúcar, cuja produção uma vez chegada aqui era embarcada para São Luís. Com a fundação da Companhia do Comércio do Maranhão (1682) as fazendas organizaram-se e a cidade tornou-se importante, crescendo significativamente até ao tempo de Sebastião José, quando foi criada a grande Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Além do açúcar, Alcântara era entreposto de gado, de arroz e de algodão, para o mercado inglês, nos alvores da revolução industrial.
Na Praça da Matriz, as ruínas da Igreja de S. Matias, de 1648 no lugar onde houve uma ermida feita pelo índio Maretin e uma igreja dedicada a S. Bartolomeu. O pelourinho com as armas de Portugal foi reposto na praça. Durante muito tempo, ficou deslocado para a Rua da Bela Vista, velha Rua da Amargura, e não se sabe se a designação vem dos castigos infligidos aos escravos, se do facto de ser daqui que se faziam as últimas despedidas dos que partiam para o Reino. Muitos jovens iam estudar para Coimbra, e em grande parte dos casos ficavam-se mesmo pela Europa… S. Matias está em ruínas, e conta-se mesmo que um novo rico de nome Sousandrade teria mandado demolir parte da torre para poder ter melhor vista do seu sobrado. As fazendas em redor chegaram a ter dez mil escravos no momento alto da produção do algodão, em meados do século XIX. Oitenta e uma fazendas de cereais, vinte e dois engenhos de açúcar, vinte e quatro fazendas de gado e cem salinas, eis os números da glória de Alcântara. Nem as epidemias de varíola e de cólera na passagem dos séculos XVIII e XIX impediram este progresso. Havia quem pensasse que a riqueza da cidade seria eterna. Montello ajuda-nos a reconstituir a vida: “Por estas calçadas compridas, ao pé dos sobrados que rodeiam o largo, retiniram esporas de cavaleiros, tacões de botas de soldados e sapatões ferrados de graves ouvidores. Estas pedras foram pisadas por sinhás donas e sinhazinhas. Nelas também estalou o pleque-pleque das sandálias de seda das negras de cintura fina, peito cheio e bunda redonda, que não se deitavam com brancos, negros e mulatos de outro lugar. E junto ao meio-fio, ainda se descobrem as argolas de ferro onde se amarravam os cavalos arreados de prata”.
Em cada sobrado há uma história para contar: amores contrariados, cumplicidades de escravos e senhores, vitórias e derrotas, tiranias e liberalidades. A pouco e pouco, o sonho foi-se desvanecendo. Acabou a escravatura, as técnicas mudaram, a guerra da Secessão americana teve o seu fim e a concorrência do algodão tornou o progresso insustentável. A independência, o melhor acesso de transportes, tudo levou a que o final do século XIX tenha sido um pesadelo. A cidade começou a ser abandonada e depois foi saqueada. Os antigos senhores foram substituídos pelos filhos e netos dos escravos… Este é o pano de fundo de Noite Sobre Alcântara. Natalino e Maria Olívia acompanham-nos. São os verdadeiros protagonistas nesta cidade cheia de espíritos. A pouco e pouco, a cidade vai desaparecendo, literalmente, e Natalino descobre o que antes não suspeita, mas que vai mudar tudo na sua vida, tem um filho homem de uma mulher casada com outro…
E encontramos os dois palácios inacabados dos barões de Mearim e Pindaré. Porquê? O Imperador D. Pedro II poderia ter sido a salvação da cidade decadente, se na vinda ou na ida de uma viagem aos Estados Unidos pudesse ter parado no Maranhão. Visitaria Alcântara e faria jus à sua glória. “Se vier temos de estar preparados”. O barão de Mearim era o chefe do Partido conservador e o barão de Pindaré o chefe do Partido liberal. Ambos se aprestaram a receber D. Pedro de Alcântara. E as construções começaram, a cem metros uma da outra. Vemo-las ainda hoje. São ruínas, são casas imperfeitas e inacabadas. “E se não vier?” – perguntava-se na cidade. “Ficamos de consciência tranquila: cumprimos o nosso dever”. A história, quase caricata, é a ilustração da decadência. E o Imperador não foi e as ruínas das “suas” casas ficaram por lá até hoje são motivo de visita e de ironia.
Na rua Grande, junto aos dois palácios inacabados, voltámos a tomar o ónibus improvisado. E olhámos o longe da Baía de São Marcos, o Maranhão das águas. Descemos a ladeira do Jacaré, lembrando o último diálogo de Natalino e de Maria Olívia. “- Vamos juntos para São Luís?”. “- Não, Natalino. Já lhe disse que fico. Alguns têm de ficar. Vim para lhe dizer adeus”… Alguns têm de ficar!
«Princípio de Karenina» de Afonso Cruz (Companhia das Letras, 2018), que acaba de ser publicado, nasceu da viagem ao Vietname e ao Camboja, organizada pelo Centro Nacional de Cultura, em 2017.
GEOGRAFIAS DENTRO DE NÓS O objetivo dessa viagem seria encontrar vestígios dos portugueses nesses lugares tão distantes – e, no dizer do autor, “porventura, encontrar essas mesmas geografias dentro de nós”… A novela agora vinda a lume tem ainda com outra origem o texto escrito por Afonso Cruz para o espetáculo “Pasta e Basta”, da autoria de Giacomo Scalisi com cocriação de Miguel Fragata e que mistura “teatro e culinária, fazendo das receitas uma metáfora da própria criação, enquanto encontro de ingredientes de várias proveniências”. A obra parte da ideia de um pai que escreve à filha que não conhece para contar-lhe a sua própria história, que é, afinal, de ambos. “Esta história, minha e de tua mãe, é também tua. (…) No lugar onde me encontro, a felicidade é um luxo, e talvez por isso, porque pela primeira vez me encontro numa situação verdadeiramente desesperada, tenha alcançado aquilo que o conforto ou a abundância ou a segurança nunca me deram, esse estranho júbilo que se deixa afetar pelo mundo, pelas suas circunstâncias e que, malgrado a dor que nos rodeia, mantém em nós um sorriso intocado, invulnerável, por debaixo das aparências mais desconcertantes ou sofridas”. Estamos, deste modo, perante uma entrega e uma troca de natureza emocional. E a viagem à Cochinchina visa “encontrar e perceber aquilo que está mais perto de nós, aquilo que nos habita”. Estamos perante uma busca que leva a ir “para lá do longe”, o que significa a procura de quem somos, “com as relações mais próximas, com os nossos erros, com as nossas paixões, com as nossas dores e, ao somar tudo isto, entre sofrimento e júbilo”. E assim talvez se possa ir ao encontro da felicidade. “Cochinchina era para o meu pai o lugar para lá do lugar. Uma pessoa podia pecar, mas a Cochinchina era o meta-pecado, a fera suprema, o ponto onde a razão enlouquece, estava para lá de Deus. Uma pessoa podia imaginar a extensão do mundo, mas a Cochinchina era um passo além da nossa imaginação. Como nunca tinha sentido uma paixão verdadeira, ainda não sabia que a mesma definição se poderia aplicar ao amor: fera suprema, enlouquecimento da razão, ponto para lá de Deus ou da imaginação”… E aqui nos encontramos perante um mistério que precisa de ser desvendado. Este pai encontrou o amor com a mãe desta filha que desconhece e está distante. “A tua mãe, por não falar corretamente, tinha a poesia do que erra, que, por vezes é a mais bela”.
UM SENTIDO RELATO DE AMOR E toda a história é um sentido relato de amor. O apelo “Quando chegas?”, logo após o nascimento daquele pequeno ser que era sua filha – tem especial intensidade, como a tentativa de comunicar com a sua própria mãe no leito de morte para lhe dizer que teria de partir ao encontro do amor distante. “Mas fora ela quem partira”. Encontro e desencontros. Que é, afinal, a vida? O amor antigo esmorecera e um novo amor distante tornara-se vivo e bem presente. E o certo é que naquele momento era o amor de sua mãe que ele lembrava como definitivamente perdido, enquanto realidade próxima. E a morte sobrepôs-se à vida. Para complicar tudo, se a partida foi impedida pela morte da mãe, a verdade é que sua mulher anuncia-lhe que está também grávida. “Tinha-se instalado um grande dilema: magoar uma ou magoar outra, o que deveria escolher? E as nossas famílias? E tu? E a gravidez da minha mulher? E os meus princípios? Não havia maneira nenhuma da sair moralmente ileso daquela situação. E, mais uma vez, a conversa foi adiada, precisava de meditar sobre tudo o que me acontecia, interior e exteriormente”… A distância alargou-se. E os adiamentos sucederam-se. A criança que se anunciava não nasceu e a mulher ficou impossibilitada de ter filhos. A pouco e pouco, veio o efeito progressivo da idade. Subitamente chegou, inesperada, a viuvez, por um choque anafilático provocado pelas picadas de um enxame de abelhas… Mas “não me dera conta de que tudo desaparecera da minha vida, a minha mãe, a tua mãe, o meu pai, o meu melhor amigo, a minha mulher. Não me dera conta de que não fora somente o meu passado a desaparecer, tinha feito a mesma prestidigitação com o futuro: nessa atividade fastidiosa que é viver e a vida plena (e não plena), também tu tinhas desaparecido”… É o momento em que decide ir ao encontro da sua segunda família na Cochinchina. E lembra o princípio de “Anna Karenina” de Tolstoi que dá título à novela: “Todas as famílias felizes se parecem, todas as infelizes são infelizes à sua maneira”. Do mesmo modo que invoca a expressão de Aristóteles: “As pessoas são boas de uma maneira, e más de inúmeras”…
A TREMENDA MEMÓRIA Uma busca no Vietname e no Camboja obriga a lidar com a tremenda memória da guerra. Em Ho Chi Minh procurou a morada de onde recebia a correspondência. Era um restaurante, e aí obteve a informação de que a amada teria partido para Phnom Pehn, capital do Camboja. E a procura prosseguiu, mas a história que encontrou no novo destino confirmou as piores suspeitas. Havia uma carta que não tinha sido enviada e o negrume da notícia da morte. O guia, perante a trágica desilusão, aconselhou-o a visitar Angkor Vat – “o maior templo jamais construído foi esquecido e rapidamente ficou coberto de vegetação (…). A sumptuosidade é já prolegómeno da ruína, mas é precisamente o esforço de edificar, conhecendo à partida o triste destino desse ato, que coroa a vida”. Mas acontecem milagres. Numa viagem de negócios no aeroporto de Hanói, ouviu o nome de sua filha. Talvez fosse coincidência, mas não era. No avião para Hue, conseguiu sentar-se a seu lado. “Conversámos mas não nos podíamos compreender, eu falava a minha língua, tu dizias alguma coisa na tua, não tínhamos um idioma comum para comunicarmos. (…) Evidentemente que não te disse que era teu pai, por vários motivos: não saberia como fazê-lo sem parecer louco, não teria forma de te explicar o que quer que fosse. Adiei, Fá-lo-ia na altura certa, agora que te tinha encontrado…”. Um pequeno saco de cannabis ditaria, porém, o destino final desta novela. “De todas as coisas que fiz, as duas mais importantes foram ter-te dado a vida e ter-te salvado a vida”… E vem a lembrança o dominicano Frei Gaspar da Cruz que acabou por converter uma única pessoa – que morreu antes do frade regressar… Mas, afinal, foi preciso viajar até aos antípodas para encontrar a verdadeira terra – a alegria e a plenitude do outro…
Guilherme d'Oliveira Martins
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