Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Regressados de Marrocos, em mais uma viagem do ciclo “Os Portugueses ao Encontro da sua História”, recordamos hoje a presença portuguesa em Mazagão, hoje El-Jadida.
OS NOSSOS VIZINHOS DO SUL Marrocos está muito perto, mas é muitas vezes esquecido pelos portugueses. No entanto, não podemos compreender a nossa cultura ancestral e a abertura e o diálogo sem darmos atenção aos nossos vizinhos do sul, com quem temos tantas afinidades. Não esqueçamos, por isso, Ibne Batuta (1304-1377) um extraordinário viajante, estudioso e explorador, que entre 1325 e 1353 atravessou o norte de África até à Península Arábica, o Iémen, as margens do Nilo, a Ásia Menor, o Mar Negro e a Rússia, o Afeganistão e a Índia, até à Indonésia e à China. É fundamental considerar a sua obra, ditada a Ibne Juzai, intitulada “Um Presente para Aqueles que comtemplam as Maravilhas das Cidades e as Maravilhas da Viagem”. Foi sem dúvida o maior viajante da Idade Média e o seu testemunho é muito importante, como o do “Livro de Marco Polo”, trazido para a Corte portuguesa pelo Infante D. Pedro, duque de Coimbra, indispensável para o plano das nossas navegações. Não é possível visitar e compreender o Reino de Marrocos sem o conhecimento e o contacto com as raízes culturais partilhadas pelos nossos povos. Partindo de Ceuta o primeiro destino de Além-Mar dos portugueses encontramos uma costa atlântica bem nossa conhecida, de pescadores e navegadores, que o algarvio Gil Eanes ajudou a conhecer melhor. De El-Jadida a Agadir, passando por Safi e Aguz, temos as marcas da presença e de um convívio de mais de dois séculos, feitos de contactos mútuos, de intercâmbio cultural e também de conflitos bélicos, naturais em relações de vizinhança. Este Ocidente, o Magrib al Aksa, onde o sol se põe, que se associa ao Garb do Al Andaluz, o nosso Algarve, foi na pré-história a passagem do Homem saído do berço africano para colonizar a Europa, porto de chegada de fenícios e cartagineses, que organizaram o embrião das cidades costeiras atuais. Durante cinco séculos, o território português integrou-se nessa matriz e os dois povos conviveram pacificamente e em conflito, sob a ação das cruzadas tardo-medievais, bem como da presença de Almorávidas e Almóadas. Entre cristãos do norte e mouros do sul, há uma história comum que hoje merece ser valorizada, num contexto de indispensável diálogo ente culturas e religiões com diferenças e uma herança comum.
UM PATRIMÓNIO EXTRAORDINÁRIO O conhecimento do património cultural de influência portuguesa exige uma partilha de experiências e uma atitude aberta de entendimento da importância do culto pelo património comum da humanidade. Quando o Centro Nacional de Cultura leva a cabo no sul de Marrocos mais uma jornada do ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”, iniciado por Helena Vaz da Silva, merece referência especial o caso de Mazagão, El-Jadida, que permite compreendermos a diversidade das influências, o respetivo intercâmbio e as repercussões quanto ao diálogo cultural, presente e futuro, num tempo de tantos fechamentos e incompreensões. Hoje, a praia de El-Jadida é frequentada pelos habitantes de Marraquexe e de outras cidades do interior, mas afirma ainda a memória antiga da presença portuguesa na costa marroquina. Em 1506 Jorge de Melo solicitou ao rei D. Manuel licença para construir um forte, o que o rei aceitou, dando-lhe capitania da futura fortaleza “de juro e herdade para todo o sempre”. Contudo, não foi possível concretizar tão alto desígnio, por falta de recursos. Só em 1542 se concluiu a obra, sob a direção de João de Castilho, mestre de obras de El-Rei, com João Ribeiro, seguindo a traça de Benedetto de Ravena. Em 1562, a praça era, porém, um constante pesadelo, pois os mouros quase todos os dias a assaltavam. E apesar de Mulei Mohamed ter cercado a fortaleza durante dois meses, não logrou conquistá-la, em virtude da qualidade da engenharia utilizada por Ruy de Sousa Carvalho. Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis” fala da importância da praça pela grande riqueza da região na pesca, nos campos de cereais e no muito gado. No interior da cidadela, as ruas ainda guardam alguma da antiga toponímia, e neste magnífico conjunto situa-se a importante cisterna, construída no centro do corpo fortificado. Tal cisterna é um espaço quadrangular com mais de mil metros quadrados, coberto por abóbadas de nervuras apoiadas em doze colunas dóricas, constituindo quatro naves enquadradas por grossas paredes com cerca de três metros de espessura. As abóbadas e o piso são de tijoleira, tendo um tanque de limpeza. A alimentação da cisterna fazia-se por caleiras de aproveitamento das águas pluviais vindas do terraço superior e pelo abastecimento indireto a partir dos terrenos próximos. O modelo é em tudo semelhante ao da cisterna do Convento de Cristo em Tomar.
PARTIDA PARA O BRASIL Mazagão é o único bastião português “moderno” em Marrocos, onde há uma articulação efetiva entre a artilharia e a arquitetura. Trata-se de um modelo inexpugnável, como encontramos nos fortes do Golfo Pérsico. O bastião do Anjo da Guarda ou o de S. Sebastião virado a noroeste tem um campo de ataque de 360 graus. E estamos perante uma verdadeira cidadela apta a abrigar uma população desprotegida com grande eficácia. A história de Mazagão é muito rica e termina com o grande cerco de 1768, perante o qual o futuro Marquês de Pombal ordenou, por falta de condições de permanência, a evacuação da população, que ocorreu em março de 1769. Os moradores perderam todos os seus bens por não poderem transportá-los, e tiveram de incendiar todos os móveis e roupas antes de se dirigirem para as naus. As pedras de ara das igrejas foram lançadas ao mar do alto do baluarte do Anjo, depois de quebrados. Os livros paroquiais e os arquivos do tesouro público foram, porém, preservados e trazidos, mas os bastiões da fortaleza foram armadilhados com barricas de pólvora. Os refugiados de Mazagão, cruelmente tratados, ficariam em Lisboa até setembro de 1769 e foram destinados à Província do Grão-Pará, onde nas margens Norte do Amazonas, no atual estado de Amapá fundariam Vila Nova de Mazagão, sendo acolhidos no mosteiro dos Jerónimos em Belém e depois na Quinta Velha, alimentados pela Coroa, mas mal assistidos, tendo “morrido mais de trezentos da doença de saudade”, segundo as crónicas da época.
Mazagão fica, no fundo, como um símbolo de fortificação emblemática, de cidadela exemplar, de construção marcante e de elemento patrimonial significativo do encontro de culturas. A permanência no Brasil desta memória projeta numa lógica global o património de influência portuguesa no mundo – pelo que independentemente das vicissitudes históricas constitui um elo referencial inserido numa das rotas da língua portuguesa.
«Itália – Práticas de Viagem» de António Mega Ferreira (Sextante Editora, 2017) ajuda-nos a compreender melhor a Roma que foi destino e presença de muitos portugueses.
PIAZZA DEL POPOLO
A esplanada do Caffè Rosati, na Piazza del Popolo, recomeça a ter o movimento usual, depois das vicissitudes da pandemia. Este ano o Rosati faz cem anos. Descansamos um pouco, sob breves efeitos de um aguaceiro que se anuncia. Viemos pela via del Corso em demanda de onde se encontra sepultado o Cardeal de Portugal, em Santa Maria del Popolo. Mas, antes de falarmos sobre o célebre D. Jorge da Costa (1406-1508), lembramos que foi na praça que nos rodeia que foi montado o gigantesco estaleiro para a montagem da Capela de S. João Batista na nossa Igreja de S. Roque. Encomendada por D. João V em 1740 e inaugurada dez anos depois, teve como autores Luigi Vaniteli e Nicola Salvi, que contaram com 130 artífices para a concretizar. A capela seria primeiro sagrada em Santo António dos Portugueses pelo Papa Bento XIV, tendo sido necessárias três naus para o seu transporte para Portugal, depois de desmontada. Aí se representam o Batismo de Cristo, a Anunciação e o Pentecostes, sendo as representações feitas de embrechados de materiais nobres, num verdadeiro museu mineralógico, lápis-lazúli, ágata, verde antigo, alabastro, mármore de Carrara, pórfido roxo, branco-negro de França, brecha antiga, diásporo e jade… Sentados no Rosati, lembramos antigas presenças fiéis, como Alberto Moravia, Elsa Morante, Italo Calvino e Pasolini. E não resistimos (porque viagens se fazem sempre com livros) a recordar o que António Mega Ferreira diz sobre uma fotografia mítica que publica (Itália – Práticas de viagem, Sextante Editora, 2017): “Pasolini tornou-se, naqueles vertiginosos anos 60, um dos ícones do café Rosati e são diversas as fotografias que o surpreendem na companhia deste e daquele, sobretudo Calvino e Moravia, que eram mais que seus confrades, admiradores fiéis”. Nestas lembranças, ali ficámos com o Centro Nacional de Cultura por momentos, com Maria Calado, cientes de que este era o nosso lugar, e não o Canova, à esquina da Via del Babuino, de outras companhias…
O CARDEAL DE PORTUGAL
Mas voltemos a Santa Maria del Popolo, mandada construir pelo prolífico Sisto IV, entre 1472 e 1477. O Cardeal de Portugal, conhecido como de Alpedrinha, viveu até aos 102 anos, serviu 5 Papas e foi detentor de 7 títulos cardinalícios, estando provavelmente representado nos Painéis de S. Vicente. Desempenhou um papel fundamental na diplomacia, em especial no Tratado de Tordesilhas. Está sepultado aqui, com pompa e circunstância, dispondo de estátua jacente e identificação com as suas armas, a roda das navalhas de Santa Catarina de Alexandria. A visita à Igreja permite-nos ver com deslumbramento as obras-primas de Caravaggio “Conversão de S. Paulo” e “Crucificação de S. Pedro”, mas também as intervenções barrocas de Bernini sobre as arcadas da nave. Em S. Lourenço in Lucina encontramos o local onde se situava o seu Palácio e na Basílica próxima, construída sobre um templo proto-cristão descobrimos o túmulo de Gabriel da Fonseca, cristão-novo, médico dos Papas Inocêncio X e Alexandre VII da autoria de Bernini. Lembre-se que o “Arco de Portugal”, que conhecemos apenas em gravura, e foi demolido, no tempo de Alexandre VII, para alargamento da via del Corso, tem essa designação pela relação de proximidade com o palácio de D. Jorge. Continuamos no Café Rosati, quando se animam os frequentadores e volta a sentir-se, não a intensidade do tempo de Pasolini, mas, ao menos, a necessidade de voltar à criatividade dos tempos áureos. E lembro Stendhal, naturalmente. Se desta vez viemos em busca de portugueses não podemos esquecer os roteiros de Goethe e do autor de “A Cartuxa de Parma”. “O povo romano é talvez aquele de toda a Europa que mais gosta da sátira fina e mordente. O seu espírito extremamente fino agarra com avidez e felicidade as alusões mais distantes. O que o torna muito mais feliz do que o povo de Londres, é por exemplo, o desespero. Acostumado há três séculos a olhar os seus males como inevitáveis e eternos, o burguês de Roma não se encoleriza contra o ministro, e não deseja a sua morte; o ministro será substituído por um outro ser igualmente mau. O que o povo quer, antes de tudo, é fazer pouco dos poderosos e rir à sua custa, daí os diálogos entre Pasquino e Marforio. A censura é mais meticulosa que a de Paris, e nada é mais maçador que as comédias. O riso refugiou-se nas marionetas que representam peças mais ou menos improvisadas”. O retrato tem atualidade. Voltamos a olhar em redor a Piazza del Popolo. A chuva hoje foi exceção, e não dissuade a multidão que percorre as ruas em busca dos monumentos e das curiosidades. As igrejas gémeas de Santa Maria de Montessanto e de Santa Maria dos Milagres, recordam o arquiteto Carlo Rainaldi.
UM MODELO DE CIDADE
Verdadeiramente quem se torna marcante nesta praça como modelo é a memória do tempo de Bernini. E volto às notas preciosas de António Mega Ferreira: “Entre 1623, data de acessão ao sólio pontifício de Matteo Barberini, o papa Urbano VIII, e 1667, data em que morreu Fabio Chigi, que adotara o nome de Alexandre VII, a cidade de Roma sofreu uma das mais profundas revoluções da sua história: a munificência de três papas e a esplendida criatividade dos seus artistas fizeram da antiga urbe imperial o centro de um movimento que consagrou a imagem do barroco romano e marcou a fisionomia e a história para sempre”. A cidade estruturada por Alexandre VII a partir desta entrada da Piazza del Popolo tornou-se outra realidade, dando ao “tridente” uma consistência que permitiu transformar Roma numa realidade capaz de mostrar a sua riqueza e heterogeneidade culturais e artísticas. É o grande momento do barroco, nos palácios, nas igrejas, nos jardins, nas escadarias, nas fontes, nos claustros, nas decorações. A Arte torna-se movimento. E quem é o encenador, o mestre, o criador? Naturalmente, Bernini (1598-1680) – escultor e artífice dos caprichos e das representações. Tem razão Mega Ferreira: “Bernini era de uma versatilidade estonteante e de uma criatividade sem limites; nele tudo era movimento, expressividade e graça” Falei há pouco do busto de Gabriel da Fonseca. Temos vontade de o tocar e de partilhar com ele uma charla. E se dúvidas houvesse, aí está o Baldaquino erguido sobre a sepultura de S. Pedro em plena Basílica Maior. Sem necessidade de fazer comparações, não podemos desvalorizar o outro grande nome do momento, Borromini. Se bem virmos as coisas, tudo se completa, numa convergência singularíssima. Só esta extraordinária explosão de génio permite compreender San Carlo alle Quatro Fontane ou o equilíbrio dos quatro rios da fonte da Piazza Navona. Mas tudo só é possível, graças à decisão (tão referida por Le Corbusier) de criar o Tridente, que parte da Piazza del Popolo – via del Babuino, via del Corso e via della Ripetta – e que, passado o Tibre, nos leva á extraordinária esplanada vaticana de S. Pedro. A história humana nunca depende só de um génio ou de um movimento, mas de uma convergência de elementos complexos. A “arte, todas as artes, devem entrelaçar-se na criação de um bel composto, que é tanto mais verdadeiro quanto mais se afasta da verdade nua que só o Tempo revela…” Por um momento, na esplanada do Rosati a chuva amainou ligeiramente e Le Corbusier veio à conversa.
“Uma Viagem das Arábias” de Leonor Xavier (Clube do Autor, 2011) é um fantástico relato de uma viagem sentida e vivida pela nossa querida e saudosa amiga.
A VIDA É UM MILAGRE Leonor Xavier dizia: “a vida é um milagre, que procuro aproveitar, mas o forte é a minha relação de pasmo, de um imenso espanto e de gratificação” Era assim a Leonor. Um encontro em que estivesse era sempre uma oportunidade de alegria e de recordação. Tinha um especial talento para a generosidade e para fazer amigos. E gostava de lembrar a afirmação de Agustina Bessa-Luís: “a formosura do mundo é meu tesouro, pois dela faço torres de pensamento. E a grandeza do mundo não me tolhe, porque maior que tudo é a realidade de um coração que ama e sente”. Julgo que está aqui bem expresso aquilo em que sinceramente acreditava. Conhecia-a ainda antes de Direito, nas disciplinas económicas que me interessaram. Quando reencontrei Leonor foi no seu regresso do Brasil, em 1987, havia amigos comuns, trabalhos em conjunto, um grande entusiasmo - Helena e Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, Graça Morais, Raul Solnado, Agostinho da Silva, Ana Vicente, Eduardo Prado Coelho, Teresa Belo e mais recentemente José Tolentino Mendonça – o jornalismo cultural, a literatura, as artes, a poesia, as iniciativas do Centro Nacional de Cultura. Lembro-me de um tempo em que vinha à baila a palavra “escreviver”, na expressão de David Mourão-Ferreira. E Leonor tantas vezes repetia que assim se sentia, a saborear os acontecimentos da vida e o prazer de animar mil conversas, em tertúlias de geometria variável que eram sempre um motivo de novos temas e encontros… Era um tempo em que procurávamos que a afirmação de Emmanuel Mounier “o acontecimento é o nosso mestre interior” se tornasse uma verdadeira realidade. E o exemplo de Tristão de Athaíde ou Alceu Amoroso Lima teve a maior importância. Nessas amizades, “conversar com o António Alçada, segundo Leonor, era um exercício de alegria, pelo improviso, pelo encadeamento de fábulas e de histórias. Podia dizer que os portugueses dramatizam o calor do verão e o frio do inverno. Ou que os portugueses têm vergonha de ser felizes e os brasileiros têm vergonha de ser infelizes”.
TUDO O QUE ERA PORTUGUÊS… Tudo o que era português entusiasmava-a, mas sempre com o sentido crítico, de exigir que não fizéssemos má figura. Mas a noção de ser português para Leonor era muito ampla. Lia o “Chiquinho” do Baltazar Lopes com genuína emoção, como coisa sua. Emocionava-se com essa obra que deve ser de leitura obrigatória para qualquer amante da língua portuguesa e dos nossos crioulos. Deleitava-se a recordar: “Depois deitávamo-nos de barriga para o ar, namorando o céu carregado de estrelas. Ao fundo o mar fazia um ronco de meter medo. As constelações eram rebanhos pastando, dávamos nomes de vacas conhecidas às estrelas mais brilhantes. Detrás das estrelas, Nossenhor era um velho pastor vigilante do seu gado (…) Ficávamos parados, possuídos de um respeito religioso pelos mistérios com que a monte envolvia nossos corações meninos”. Também amava profundamente o Brasil. Um dia, em Itabira, quando fomos homenagear Carlos Drummond de Andrade na velha casa de família, ele que dizia que a sua casa era uma casa portuguesa, a simpática guia que nos acompanhava emudeceu ao compreender que nada podia explicar, pois Leonor sabia tudo sobre o grande poeta. E em Minas Gerais, em Ouro Preto e em Congonhas, com ela, sentimos que estávamos em casa, ao ouvir: “Aleijadinho sua alma voou / encantada / porque as pessoas não morrem diz joão guimarães rosa / Ele está no outro lado da morte sem cor de candinho portinari / o pintor do menino balanço de gangorra feito anjo no ar / Em Ouro Preto posso ouvir as vozes mineiras / de Itabira de Drummond / e Conceição de Mato Dentro de josé aparecido / e também o Rio de millôr / dos que amei eu guardo as vozes”. Entre rir e pensar, numa conversa à mesa, onde se diz que não se envelhece, porque a palavra puxa a palavra, um dia Nélida Pinõn disse. “a morte é simplesmente deixar a sopa esfriar na mesa, cruzar a porta do jardim sem olhar para trás ao menos para dizer adeus a quem fica e tomar um caminho que não sabe para aonde o leva e do qual nunca mais se retorna”. Leonor achava que essa era uma boa definição de um caminho possível que aceitasse os maiores mistérios. E por um momento pegava no tema para o ligar à vida, à memória, às lembranças. Quando lemos “Casas Contadas”, percebemos que descreve uma extraordinária trajetória de vida, através do ambiente das 13 casas que habitou desde a infância. Acompanhamo-la passo a passo, para descobrir em cada recordação um motivo de vida e de compreensão das pessoas, das pequenas e grandes diferenças. E o último livro que escreveu ainda nos reserva surpresas, que esperamos ansiosamente, com o título “Adolescência”. Leonor deixou-nos, assim, não só a memória do que fica, mas também o lado peregrino, que busca permanentemente os outros. A distância atraía-a como modo de tomar consciência dos limites. Demos a volta ao mundo e essas viagens ficaram memoráveis. Releio “Uma Viagem das Arábias” e não posso deixar de reviver essas aventuras, no Golfo Pérsico, Sultanato do Oman, Jordânia, Petra, Emiratos Árabes (onde encontrámos a lembrança do piloto árabe de Vasco da Gama) até à magia do Cairo…
DOS QUE AMEI GUARDO AS VOZES Havia sempre com Leonor Xavier uma inesgotável capacidade de olhar e de nos fazer compreender melhor os segredos e enigmas da vida. Em cada viagem revelava-se a ideia de nos procurarmos no divertimento e no lado alegre da vida, os “Disparates do Mundo” de Chesterton. Quando li o “Livro de receitas dos Lugares imaginários” de Alberto Manguel imaginei-a a cozinhar Salada de Sol, Camarão Nautilus à moda do Capitão Nemo ou Pedaços de Imortalidade. E não precisei de fazer um esforço especial, uma vez que ela nos ensinou em vários dos seus livros receitas deliciosas e modos diversos de definir personalidades diferentes. Assim podia saborear a existência em todas as suas qualidades. Portugal e Brasil existiam juntos em Leonor. Tantas vezes o seu inconfundível pronunciar da nossa língua comum pressupunha essa preocupação de se fazer entender dos dois lados do Oceano. “A cultura comum permanece nos traços do património histórico, nos gestos de cortesia, na intimidade das famílias tradicionais. E liga-nos a língua portuguesa, sagrada união de facto. Mas sendo no discurso oficial designados países irmãos, Portugal e Brasil são irmãos separados à nascença. Separados de facto, porque não cresceram juntos, não têm os mesmos códigos, nem verdadeira cumplicidade. São diferentes no entendimento do mundo, nos rituais da vida e da morte, no traçado da condição humana. Temos tanto a aprender uns com os outros, portugueses e brasileiros, sobre o que nos aproxima e nos separa”. E assim Alberto Costa e Silva deixou claro, numa conversa que teve com Leonor Xavier, que “uma política da língua interessa a todos os países onde se fala o português, porque ele fortalece a nossa presença no mundo. Nós seremos nos séculos vindouros aquilo que for a nossa língua”. E assim continuaremos a encontrar-nos. Ainda há muito mundo para viajar.
Se a linguagem falada, é um produto da evolução biológica, e a linguagem escrita exige instrução, sendo um fenómeno cultural, destinado a vencer o tempo e o espaço, através da imprensa e do livro, a que acrescem os meios eletrónicos e digitais atuais, um ser humano civilizado e qualificado tem de saber ler e escrever, enquanto o homem natural pode viver com a linguagem oral, como sucede em tribos primitivas.
Mas o potencial de universalidade e a dimensão de estratégia e de vanguarda de uma língua decorre ainda de ter tido capacidade de atravessar e penetrar em vários espaços geográficos deslocalizados territorialmente por continentes, através da descontinuidade linguística.
O que sucedeu com o nosso idioma, através da sua disseminação, o que é corroborado pelas suas caraterísticas de língua intercontinental, transnacional, transoceânica, transatlântica, pluricêntrica, internauta e de comunicação global.
Ser partilhada por várias culturas que a democratizaram, enriqueceram e moldaram com novas colorações e mais valias, embelezando-a e nobilitando-a, como língua absorvida, apropriada, miscigenada, incorporando novos vocábulos africanos e ameríndios, formando crioulos ou protocrioulos, tornou-a dinâmica, migratória, mestiça, dotando-a de uma maior flexibilidade e plasticidade, permitindo-lhe permanecer atuante e viva, o que a diáspora portuguesa, lusófona e contemporânea consolidou.
As quatro línguas europeias mais faladas (inglês, espanhol, português e francês), fruíram da primeira fase da globalização iniciada com a expansão portuguesa.
Tomando como referência a economia, um dos fatores mais decisivos para a utilidade funcional de uma língua, o nosso idioma sofre, de momento, algum défice, dado que a maioria dos países de língua oficial portuguesa ficam em África, continente deficitário em termos de desenvolvimento (embora também aí fiquem a maioria dos países de língua oficial francesa e uma parte significativa dos de língua inglesa).
Em contrapartida, tem melhor representação no continente americano, pelo Brasil, país de dimensão continental, maior número de falantes e potência emergente, sendo a língua mais falada do hemisfério sul, com grande potencial de crescimento demográfico, atenta a taxa de natalidade e população essencialmente jovem dos jovens países lusófonos.
Sendo o português uma língua de comunicação global enquanto materna e oficial de vários países de quatro continentes, associando um bloco linguístico global e internacional, corporizado e institucionalizado na CPLP, ultrapassado por uma comunidade linguística mais ampla que é a lusofonia, tem uma margem de crescimento superior, por exemplo, à do alemão, francês, italiano, russo, japonês.
No caso da língua portuguesa, transitou-se de uma conceção lusista, lusíada, nacionalista e patrimonialista, para uma conceção não patrimonialista, partilhada, transcontinental, transnacional, lusófona e de exportação.
Sendo imperioso que seja útil ser usada por falantes de outras línguas, como segunda, terceira ou outra opção, apropriada, aceite, escolhida e querida como de exportação, informática e internauta, pois se servir apenas os seus nativos e maternos, não será um idioma internacional de comunicação global, antes sim uma língua internacional regional do ponto de vista global.
É também tida como uma língua bipolar, assumindo o estatuto de língua global a nível mundial e o de “pequena língua” na Europa, sendo cada vez mais, em termos estatísticos, essencialmente não europeia, apesar da sua génese.
No dizer de Ivo de Castro, e sem esquecer a sua matriz galega: “a história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso território (de nós, portugueses) e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal”.
Segundo Fernando Venâncio: “A experiência do português como instrumento de contactos alargados é não apenas uma surpresa: pode provar-se um deslumbramento. Isto deve-se, decisivamente, à abertura que sempre o português patenteou, à sua característica de bom aproveitador de quanto, à sua volta, achava de útil”. Uma língua em circuito aberto, acrescentando: “Mas, se fomos sobretudo um idioma importador, alguma coisa produzimos, também, de proveitoso para o largo mundo” (Assim nasceu uma língua, Guerra e Paz, 2019).
Sucede que o mundo é cada vez menos eurocêntrico, há um ocidente em crise, uma Europa em declínio, ausência de liderança europeia, sendo-nos preferencialmente favorável uma visão europeísta e atlantista, e a ter como exemplo evolutivo, no mundo ocidental, a liderança atual dos Estados Unidos da América, pode concluir-se que são e serão os descendentes da velha Europa imperial os novos impérios linguísticos do futuro o que, por analogia, está a suceder com a nossa língua.
Uma vez que a expansão marítima europeia foi iniciada pelos portugueses, a sua língua, ou a adaptação dela, tornou-se a língua franca da maioria das regiões costeiras que se abriram ao comércio e aos empreendimentos europeus em todo o globo.
Mesmo quando substituídos por holandeses, o nosso idioma criou raízes fortes. Enquanto os holandeses dominaram a totalidade ou parte do nordeste brasileiro, não conseguiram impor a sua língua. O mesmo sucedeu em Angola e no Congo onde, apesar de a maioria dos Bantos se ter associado aos holandeses entre 1641 e 1648, os seus escravos, auxiliares e aliados negros continuaram a utilizar o português.
Na Ásia, o português e os dialetos crioulos criados a partir dele, resistiram com êxito à pressão e legislação oficial holandesa. O exemplo mais visível da vitória da língua portuguesa sobre a holandesa é-nos dado pela capital colonial holandesa de Batávia, tida como a rainha dos mares orientais. O dialeto crioulo constituído a partir do português foi introduzido por escravos e criados domésticos da região da baía de Bengala e era falado pelos holandeses e mulheres de casta intermédia nascidas e criadas em Batávia, por vezes com exclusão da sua própria língua. Apesar das críticas oficiais a este costume, a maior parte dos holandeses tinha por grande honra ser capaz de falar uma língua estrangeira. O mesmo sucedeu em outras zonas, por exemplo no Cabo da Boa Esperança, onde o português crioulo se manteve durante muito tempo e teve forte influência no desenvolvimento da língua africânder.
A língua portuguesa era tida como uma língua fácil de falar e de aprender, com caraterísticas de língua global, unitária e universal, atenta a posição privilegiada de Portugal como potência marítima mundial, como língua apropriada, absorvida, enriquecida e miscigenada com o falar de outros povos, elevada à categoria de primeira língua de comunicação e imperial, como sucede hoje com o inglês.
Como consequência, difundiu-se por todo o mundo, ora falada corretamente, outras vezes sob a forma de crioulos e pidgins. Exemplos de uma língua que teve por base o português europeu, mas que depois se afastou do idioma de origem, temos os crioulos de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Casamanssa (Senegal), os papiás cristam de Malaca, de Ceilão, os crioulos malaio-portugueses de Java e Singapura e os crioulos indo-portugueses de Goa, Damão e Diu. O pidgin é o proto-crioulo que deu origem aos vários crioulos portugueses espalhados pelas costas africanas e asiáticas. Mas a difusão do nosso idioma não foi rígido nem categoricamente imperativo.
No Brasil, por exemplo, o português conviveu com o tupi-guarani dos índios, chegando a ser mais falada esta sua língua geral que o nosso idioma, o que prova que nos primeiros tempos não existia uma tentativa deliberada e consciente de aí difundir a língua portuguesa, o mesmo sucedendo, em maior ou menor grau, com as restantes línguas europeias em relação às suas colónias.
Esta política manteve-se até meados do século XVIII, época em que o Marquês de Pombal, no caso português, expulsou os jesuítas do Brasil e obrigou ao ensino do nosso idioma em todo o território, assegurando a unidade linguística e o futuro da língua portuguesa como idioma daquele país. Idêntica política viria a ser adotada mais tardiamente nas colónias africanas.
Esta conceção de imperialismo linguístico, em que era necessário impor a língua do centro, era praticada pelas demais potências coloniais em geral, nomeadamente Portugal, Espanha, França e Inglaterra. Tinha raízes na Revolução Francesa, em que um ideólogo, Abbé Grégoire, impunha o uso do francês e a proibição do latim, política que foi tomada como modelo a seguir. A Conferência de Berlim, em 1848, reforçaria esta visão.
Sendo a dilatação da fé uma das razões para a expansão marítima, viajavam nas naus sempre missionários que se estabeleciam nas terras descobertas ou conquistadas, evangelizando e convertendo povos ao cristianismo.
Com referência a esses viajantes da fé cristã, refiram-se os padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega, António Vieira e frei Cristóvão de Lisboa (Brasil), e S. Francisco Xavier e S. João de Brito (Ásia).
Descoberto o caminho marítimo para a Índia, assegurado e consolidado o Império pela África, Ásia, América e Oceânia, através de nomes como D. Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, Lopo Soares de Albergaria e D. João de Castro, o rei D. Manuel I tomou o título de Rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar, em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, título pomposo coroando e glorificando essa globalização.
Há a ter presente o conhecimento geográfico e a exatidão náutica que as viagens marítimas portuguesas proporcionaram à Europa, porque as suas cartas e rotas eram as melhores, sendo por isso pioneiras dos impérios marítimos europeus.
Da escola cartográfica portuguesa, nasceu a cartografia moderna, com cartógrafos como Diogo e Lopo Homem, Pedro e Jorge Reinel, Luís Teixeira, João Freire, Sebastião Lopes, Manuel Godinho de Erédia e Fernão Vaz Dourado.
Escreve o historiador britânico J. H. Plumb: “(…) o fascínio pela observação exata encontrava-se na maioria dos grandes exploradores portugueses. Traçavam as suas rotas nas cartas com uma exatidão espantosa. Anotavam cuidadosamente os animais, a vegetação, os minérios e as raças desconhecidas que iam encontrando, à medida que desciam a costa de África. Nada foi deixado ao acaso nos seus descobrimentos. Foram deliberados, bem programados e audaciosamente executados (…)” (introdução ao livro de Charles Boxer “O Império Marítimo Português 1415-1825”).
Dessa aventura pelos mares, surge a “era gâmica”, nas palavras do historiador inglês Arnold Toynbee, contactando com todo o género humano e todas as geografias.
A tomada de consciência da existência de um outro grupo de seres humanos, a troca de olhares e os gestos que acompanharam o primeiro encontro entre dois grupos de seres humanos foram o princípio da globalização cultural - a fala, a escrita, a discussão, o texto impresso, virão depois.
A confraternização ou a luta que se seguem a esse encontro, a negociação ou a violência que os acompanham são tidos como o princípio da globalização política, passando a globalização político-militar após a vinda das armas, exércitos, diplomatas e tratados.
A gestão das intenções em relação à posse das coisas, em termos de propriedade, e que eventualmente irá mudar como corolário das primeiras negociações ou confrontos, é o princípio da globalização económica.
Em 1394, nasceu, no Porto, a 4 de março, o Infante D. Henrique, “O Navegador”, pioneiro dos descobrimentos e da globalização.
Foram, assim, os portugueses os formuladores e os construtores iniciais da globalização/mundialização, neste feito forjando os seus heróis, aqui assumindo especial relevo Fernão de Magalhães e a viagem de circum-navegação à volta do globo terrestre, a primeira a nível mundial.
Cumpre referir, entre muitos, João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira, Gonçalo Velho Cabral, Gil Eanes, Afonso Gonçalves Baldaia, Nuno Tristão, Álvaro Fernandes, Dinis Dias, Diogo Gomes, António da Nola, Pedro de Sintra, Fernão Gomes, João de Santarém, Pedro Escobar, Fernando Pó, Álvares Esteves, Diogo de Azambuja, Diogo Cão, João Afonso de Aveiro, Bartolomeu Dias, João Fernandes Labrador, Pedro de Barcelos, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Duarte Pacheco Pereira, Diogo Dias, Gaspar Corte Real, João da Nova, Vicente Sodré, Tristão da Cunha, Diogo Lopes de Sequeira, Francisco Serrão, António de Abreu, Jorge Álvares, Fernão Mendes Pinto que refere, no seu livro “Peregrinação”, que em 1541 ele próprio e dois companheiros, Diogo Zeimoto e Cristóvão Borralho, foram os primeiros portugueses que chegaram ao Japão, tendo visitado a ilha de Tanegashima, cujo régulo prendaram com uma espingarda, tida como a primeira arma de fogo introduzida naquele país.
Outros viajantes se podem mencionar, como Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã, aos quais, em 1487 e às ordens de D. João II, coube, ao primeiro, levar à corte etíope cartas dirigidas pelo monarca português ao Preste João, nome dado na Europa ao Imperador da Etiópia, enquanto o segundo ficou com o dever de obter frutuosa e sigilosa informação sobre o comércio e navegação no Oceano Índico. A que acrescem outros nomes como os de Lopo Gonçalves e Rui de Sequeira, Diogo de Teive, viagens pelo Atlântico Norte de João Vaz Corte Real e Álvaro Martins Homem; novas explorações da Terra Nova por Miguel Corte Real e do Golfo de São Lourenço (ao sul da Terra Nova) por João Álvares Fagundes; achamento das Maldivas atribuído a Simão de Andrade, entre tantos outros.
Continuaram os portugueses a percorrer os mares e a descobrir novas terras, mesmo que por conta das navegações espanholas. Portugueses como João Dias de Solis, de origem espanhola e nascido em Portugal, que em 1515 achou as costas meridionais da América do Sul e explorou o estuário do Rio da Prata, onde foi morto pelos indígenas; João Rodrigues Cabrilho, explorador da Califórnia (1542-1543); Pedro Fernandes de Queiroz, descobridor das Marquesas (1595) e das Novas-Hébridas (1606). Portugueses marinheiros e construtores iniciais da globalização, mesmo colaborando no estudo e execução da expansão marítima de outros povos.
Para além da perspetiva unitária do mundo via diversidade, as navegações portuguesas abriram uma brecha no conceito restrito de humanidade até então dominante na Europa.
A Europa, incluindo a eclesial, ensinada nas escolas, não aceitava que o Homem fosse um ser existente para além do mundo europeu, da romanidade e, quando muito, das periferias africana e asiática. A antropologia europeia do século XV era restritiva, sendo tido como Homem o do mundo arábico-judeo-cristão, do mundo romano e, no máximo, o das regiões periféricas europeias. Pierre d´Ailly, o sábio, seguido no ensino, ensinava que, para além da periferia, o que se achava, em termos de seres vivos, lá para os extremos da terra, eram uns “seres selvagens”,“difícil de precisar se são homens ou bestas”. Para além dos mares pensava-se que houvesse seres que, mesmo parecendo homens, haviam de ser bestas. O episódio do Adamastor, em Os Lusíadas, representa a alegoria deste temor, a figura do “monstro humano”, ensinada por D´Ailly.
Era a tese oficial da Europa, que justificava caçar, dizimar, ocupar, deter, prender, sem problemas de consciência. Foi esta conceção que justificou as hecatombes na América, via extermínio dos Astecas, Maias, Incas, Apaches, entre outros.
Tese corroborada pela teoria aristotélica da inferioridade natural de algumas raças, adaptada à legalização da escravatura, tema enxertado na história do Antigo Testamento da maldição de servidão perpétua rogada por Noé à descendência de Canaã, filho de Cam, de quem se pensava que descendiam os negros (Génesis IX, 25). Outros afirmavam que descendiam de Caim “que havia sido amaldiçoado pelo próprio Deus”. Teólogos e leigos estavam convencidos que a escravatura negra era autorizada pela Bíblia, apesar de alguns, por razões humanitárias, censurarem o tratamento cruel infligido aos escravos.
Portugal não foi exceção à regra, daí a existência de traficantes de escravos ou negreiros, veleiros e mercadores incluindo, não poucas vezes, a colaboração de indígenas com a mesma origem das próprias vítimas, embora desde o início das viagens houvesse vozes portadoras de uma consciência humanista. Para narrar a chegada e a repartição dos escravos africanos a Lagos, no Algarve, o cronista régio Gomes Anes de Azurara entra na narração com um prévio clamor, tipo ato de penitência: “Eu te rogo (ó tu celestial Padre) que as minhas lágrimas nem sejam dano da minha consciência… E se as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto, conhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta humanal natureza, vendo assim diante dos meus olhos aquesta miserável campanha, lembrando-se de que são da geração dos filhos de Adão?” (Crónica da Guiné, cap. XXV).
Álvaro Velho, roteirista da primeira viagem de Vasco da Gama, ao chegar à Guiné, tratou de vincar, para a Europa, que os seus habitantes eram homens com dignidade anotando, num traço de ternura e simpatia para com aqueles povos: “e têm muitos cães como os de Portugal, e assim mesmo ladram”. Um sinal para se compreender a identidade na diferença e que aquela gente era ser humano, tanto assim que tais homens (os da Guiné), são iguais aos daí, que até têm cães, que são iguais e ladram como os daí. No teto da Capela Sistina, Miguel Ângelo pintou uma alegoria: o português a elevar o negro africano.
A maior dificuldade, porém, viveu-se na América, onde pessoas “mui avisadas” diziam que os índios “não eram próximos”, ou seja, não eram seres humanos, “e porfiam-no muito, nem têm para si que estes são homens como nós” (Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil). Os conquistadores queriam mão de obra índia, gratuita. Os frades queriam as almas dos índios, vendo neles homens. Os mercadores e ocupantes de terras queriam súbditos, vendo neles “bestas”, tendo apoio no reino de Castela onde predominava a tese oficial da não humanidade dos índios americanos.
Não admira, assim, que o que causou estranheza à Europa foram os testemunhos a favor dos índios (entre os espanhóis, refiram-se Francisco Vitória, Bartolomé De Las Casas e Francisco Suarez).
Significativa é a Carta do Achamento de Pêro Vaz de Caminha, onde o cronista régio do Brasil tem como principal missão informar que os índios brasileiros são homens, seres humanos: “segundo o que a mim e a todos pareceu esta gente, não lhes falece outra cousa para ser toda cristã”. E acrescenta: “parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos”.
No filme “A Missão”, de Roland Joffé, a mensagem é que os índios são pessoas com dignidade humana, com alma, alfabetizados e cristianizados pelos jesuítas, que os ajudaram a resistir contra quem os tinha como coisas e os queria como mão de obra escrava.
Os índios deixam de ser coisas, porque são homens, logo podem ser cristianizados, pelo que também não podiam ser obrigados a trabalhar, porque eram pessoas, indo-se então buscar os africanos como mão de obra escrava, justificando-se a escravatura africana.
Foi no século XVI que a fixação da língua portuguesa se consolidou, tendo contribuição decisiva a invenção da imprensa, permitindo a divulgação do livro em larga escala.
Genuínos cabouqueiros do nosso idioma foram D. Dinis (ver texto anterior), Fernão Lopes (em especial na Crónica de D. João I), D. Duarte (Leal Conselheiro), D. Pedro (Tratado da Virtuosa Benfeitoria), Gil Vicente, Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro.
Também a palavra escrita na literatura e na cultura em geral assumiu lugar de destaque, inclusive via disseminação pelos descobrimentos, em que o rei poeta e visionário, plantador de naus a haver, salvador dos templários portugueses pela criação da ordem militar de Cristo, fundador da primeira universidade portuguesa e da instituição do português como língua oficial da corte, teve papel estratégico de engenho e arte.
Em “Os Lusíadas”, o Velho do Restelo representa a política de fixação e da continentalidade europeia, sendo uma alegoria da Europa, dizendo esta a Portugal para não partir e ficar. Mas Portugal partiu, “indo a outros lugares que o onde estamos”, surgindo uma nova cultura ligada àquilo a que chamamos literatura portuguesa de viagens, e a literatura científica associada, onde a palavra escrita é rainha.
A ciência e historiografia quinhentista floresceu e consolidou-se com nomes como os de Duarte Pacheco Pereira (Esmeraldo de Situ Orbis), Pedro Nunes (Tratado em Defesa da Carta de Marear), João de Castro (Roteiro de Lisboa a Goa e do Mar Roxo), João de Barros (Décadas da Ásia), Diogo do Couto (Diálogo do Soldado Prático), Damião de Gois (Crónica do felicíssimo Rei dom Emanuel de gloriosa memória e a Crónica do Príncipe Perfeito), Gaspar Correia (Lendas da Índia), o naturalista Garcia da Orta que, em 1563, escreve: “Digo que se sabe mais agora em um dia pelos Portugueses, do que se sabia em 100 anos pelos Romanos”(“Colóquio dos Simples e Drogas da Índia”). De igual modo se podem mencionar Tomé Lopes (“Diário da Segunda Viagem de Vasco da Gama à Índia”, 1502), D. Francisco Álvares (“A Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias”, 1540) e Fernão Lopes de Castanheda (“História dos Descobrimentos e Conquista da Índia pelos Portugueses”, 1551).
Fernão Mendes Pinto, com a sua “Peregrinação” é, para muitos, o iniciador, dentro da cultura ocidental e mundial, da “primeira tomada de consciência da unidade do mundo através da sua diversidade - consequência do encontro de civilizações resultantes dos descobrimentos dos séculos XV e XVI” (António José Saraiva, “Prefácio” a Fernão Mendes Pinto, Peregrinação e Outras Obras, Livraria Sá da Costa, 61, vol. I, p. 25). Invertendo o exotismo literário e turístico do século XIX e princípios do século XX, tido como diletante e pretensioso para o preconceito de superioridade de rico e letrado transeunte, “em Fernão Mendes Pinto, pelo contrário, encontramos uma adesão sincera e emocionada ao mundo maravilhoso que percorreu. Não é um turista, é um homem que não se cansa de aprender, com o entendimento, com os ouvidos, com os olhos”(op. cit.).
Gilberto Freyre, em “Aventura e Rotina”, descreve-o assim: “Fernão foi soldado e foi marinheiro mas espalhou-se de tal modo noutras atividades - comerciante, médico, missionário, embaixador - que sua figura permanece a do mais extraordinário homem-orquestra que já nasceu em Portugal”.
De Fernão Mendes Pinto, a propósito de “Peregrinação”, há o trocadilho Mentes, Pinto? - Minto, porque algumas páginas de aventuras e memórias autobiográficas pelas terras do Oriente pareceram inverosímeis aos ocidentais de então, porque portadoras de inusitadas e surpreendentes novidades…
Um Fernão Mendes Pinto cada vez mais conhecido como um valor literário de sentido universal, maior, neste sentido, para alguns, que o do próprio Camões, prejudicado por um heroísmo e nacionalismo épico mais excessivo.
D. Dinis, em plena Idade Média, ao mandar plantar o pinhal de Leiria, queria matéria prima para uma marinha forte e eficaz, nomeando almirante mor do reino o genovês Manuel Pessanha, ato tido pelos historiadores como um dos seus feitos fundamentais, daí saindo madeira para as futuras viagens marítimas. Fernando Pessoa chamou-lhe “plantador de naus”. Um estratega, que para além da fundação da universidade portuguesa, decretou o uso do português nos documentos públicos, mandando traduzir obras valiosas do hebraico, árabe e outros idiomas. Nas viagens por mar não iam só os seus protagonistas, viajando consigo outros viageiros que os ultrapassavam em longevidade, como a língua, a cultura e a religião, sendo dos três o mais relevante a língua, na sua qualidade de companheira e intérprete constante dos outros dois.
A língua “era a companheira do Império”, na opinião de António de Nebrija, atribuindo tal função ao castelhano, ao publicar, em 1492, a sua “Grammatica Castellana”, o que pode ser extensivo à língua que os navegadores portugueses transportavam, neste caso a portuguesa.
No mesmo sentido se pronunciou o primeiro gramático português Fernão de Oliveira, na sua “Gramática da Linguagem Portuguesa”, em 1536, mantendo-se seguidor da linha imperialista de Nebrija, ao defender que os portugueses deviam atuar como os gregos e os romanos, que tinham assegurado a coesão do Império devido à difusão obrigatória das suas línguas. Duarte Nunes de Leão, na obra “Ortografia e Origem da Língua Portuguesa” (1576), na última quarta parte do século XVI, associando às navegações, descobrimentos e conquistas dos portugueses a difusão e utilização língua portuguesa, escrevia que ela “tão puramente se fala em muitas cidades de África que ao nosso jugo estão sujeitas, como no mesmo Portugal, e em muitas províncias da Etiópia, da Pérsia e da Índia, onde temos cidades e colónias, nos Sionitas, nos Malaios, nos Maluqueses, Léqueos, e nos Brasis, e nas muitas e grandes ilhas do Mar Oceano e tantas outras partes”. Também as gramáticas de Pero de Magalhães Gândavo (1574), Amaro Roboredo (1619) e de P. Bento Pereira (1666), desempenharam um papel crucial na fixação do nosso idioma.
Com a língua chegou às antigas colónias portuguesas da América, África e Ásia, toda uma matriz de cultura lusa, que iria, ao longo dos séculos, em contacto e mistura com o elemento local, criar culturas variadas e individualizadas, sem prejuízo dos seus traços de origem, que se desdobrariam posteriormente em afetos, afinidades, cooperação, permutas e conflitos.
Para além do poderio militar e naval dos portugueses na era de quinhentos, conhecedores, inclusive, de armas de fogo, inicialmente desconhecidas para os povos que inicialmente descobriram, colonizaram e dominaram, também o português contribuiu decisivamente como língua de conhecimento, comunicação, afirmação e unidade desses mesmos povos, com especial incidência em África e na América.
Numa análise dos elementos substantivos da cultura africana e indígena do Brasil, conclui-se, desde logo, serem compostas por elementos folclóricos (danças, canções e os trajes de cada região), em conjugação com uma visão peculiar do homem e da natureza, em que o plano do humano e do natural se articulam numa harmonia animista de índole ecológica.
Atento a natureza oral de tais culturas, pode-se dizer que o seu ponto fraco e perigo de não resistência residia predominantemente nessa mesma oralidade, operando as línguas pela palavra falada, instantânea e momentaneamente dita, ao invés da que era falada e escrita, fixa em livros, que influencia quem a fala e lê, com natural tendência para ser imitada e divulgada como uma linguagem organizada.