Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Em pleno Oceano Índico, agrupadas em vinte e seis atóis, mais de mil pequenas ilhas de coral estendem-se de norte a sul, de oeste a leste, a sul da Índia e a sudoeste do Sri Lanka, no continente asiático. Habitadas, umas, tornadas estâncias turísticas, outras, a maioria são desabitadas, vivendo a população essencialmente da pesca e turismo.
Estas ilhas, conhecidas por Maldivas, são tidas como um destino tropical, um paraíso no coração do Índico que ainda conserva o seu estado natural, onde o profundo azul do mar se abraça com recifes turquesa, praias de areia branca e palmeiras, onde o sossego, desportos náuticos e subaquáticos campeiam. Eis o seu cartaz turístico por excelência, com clima convidativo todo o ano, mesmo em época baixa, haja chuva ou uma descarga tropical tempestuosa e concentrada.
Foi numa das suas ilhas, com resort e spa, que descansei e saboreei umas férias em família, contemplando e usufruindo a natureza, num espaço térreo com menos de mil metros de comprimento e duzentos de largura, de infraestruturas turísticas e de lazer com qualidade, onde o mar, na sua imensidão, domina, e o sol, na sua inacessível altitude, ilumina. Mar e sol conjugam-se e entreajudam-se numa infinidade que esmaga a pouca terra da terrinha em que sobrevive o ser humano. Antepõem-se, coagem, ditam as suas regras à pequenez terrestre que aí subsiste, até quererem, mesmo quando artificialmente prolongada, por obra humana, mar adentro, em apelativas habitações, pontes e passeios marítimos. Wellcome, Hello, Have a nice day, Enjoy it, são frases feitas, acolhedoras e simpáticas, que de tão repetitivas se tornam banais, dando azo a uma sensação de fuga, a um não querer ouvir mais, com efeito inverso ao desejado. Por maioria de razão num espaço insular, onde o excesso é mais sentido.
Eis-me, assim, neste mais mar que terra, rodeado pelo Índico que foi Mar Português, em tempos idos, aquando do achamento das Maldivas pelo primeiro europeu e navegador português Simão de Andrade.
Japoneses, chineses, sul-coreanos, de Taiwan e Singapura, eram as nacionalidades mais representativas, numa percentagem maioritariamente significativa de asianos (a que não é alheia a proximidade geográfica), por confronto com uma proporção menos relevante de ocidentais e uma minoria árabe.
Os turistas asiáticos avultam e diferenciam-se. Por mais discretos que sejam, há situações em que a sua propalada discrição os ultrapassa, não passando despercebidos. Lembro-me dos magotes de japoneses, chineses e sul-coreanos, entre outros, que aparecem e desaparecem de imprevisto, em cruzeiros, em grandes e pequenos grupos organizados, em família, quais pequenas formigas e bailarinas ambulantes, que vão e vêm, concentrando-se, deslocalizando-se, reunindo-se e dispersando-se, usualmente num coletivo, pequeno ou massificado. Mesmo se cautelosos a expressarem-se, fazendo o culto da reserva e do silêncio, são chamativos pela sua quantidade, por estarem sempre presentes com condutas programadas e previsíveis entre si, captando a atenção do outro, desde logo dos ocidentais. O que é reforçado com o serem useiros e vezeiros no uso de toda a panóplia de máquinas fotográficas, câmaras de filmar, tablets, iphones, ipads, ipods, telemóveis e similares, fotografando e filmando tudo, a começar pelos próprios, num rodopio constante, tantas vezes exaustivo, interrogando-me se é inerente à sua essência, ou se mais narcísico que agradável. Também aqui é flagrante o contraste entre uma aparente discrição no falar e passar entre os pingos da chuva e a indiscrição entre o uso e abuso de toda a gama de novas tecnologias, que de tão usadas, exibidas e fruídas, se tornam inconfidentes. Alguns modos e usos eram desproporcionalmente chamativos, dada a desproporção do tamanho dalgumas câmaras com a estatura dos donos, tendo o seu máximo chamariz num jovem casal de anões. Por vezes sucede o inverso, de tão minúsculas que são, tornando-se indiscretas para um observador que se preze. Em qualquer circunstância, filmam-se e fotografam-se exaustivamente, numa aparente verosímil e perene compensação do ego, o que factualmente se evidencia. Qualquer caricatura que os caricature, não pode ocultar essa particularidade, dado que, por um lado, os individualiza, mas cuja mentalidade grupal, por outro lado, o permite, porque uma conduta aceite e universalizada por todos.
Sintomático que num dia meio chuvoso, cinzento, encoberto e não solar tenham exigido, em grupo, a feitura dum cruzeiro de barco para ver o pôr-do-sol, alegando ser parte integrante do pacote turístico, não aceitando adiamentos ou compensações, mesmo não surtindo efeito útil, dada a sua impossibilidade, ao invés doutros turistas, nomeadamente ocidentais. O que não impediu manifestações pontuais e inconfidentemente originais, à revelia da pressão do grupo e dos outros, revelando-se contra um comportamento geral tido como de postura e etiqueta social, como numa estudada e ostensiva sessão fotográfica duma meneante e sensual linguagem corporal recíproca, entre uma beldade nipónica e um impudico assistente driblador dos trópicos. Em analogia com uma sessão de modelos, num seleto espaço paisagístico, por entre reflexos cromáticos refletindo os efeitos solares incidindo no mar e águas de uma elegante piscina estrategicamente situada. Numa ousadia para os costumes, tradições e religião dos locais, mas não, ao que parece, sendo turistas estrangeiros, numa ilha desabitada por nativos.
Mas se a maioria destes orientais não se cumprimentavam com beijos na face, nem se abraçavam ou davam as mãos em público, essa quase inexistência de contacto físico é suprida, em opulência, com manifestações de afeição e carinho entre casais em viagem de núpcias e recém-casados, em condutas análogas às dos seus pares ocidentais, fazendo-se filmar e fotografar em poses alusivamente explícitas, que o ambiente natural e humano envolvente incentivam. Como que a desejarem prender e possuir a beleza do momento e do lugar. Estas paragens e paisagens são pródigas e propícias a esse nível, aliando à qualidade e limpidez do seu estado natural, uma intervenção humana amiga do descanso e sossego, para quem o queira apreciar e saiba experimentar.
Todavia, há em todos estes viajantes asiáticos uma ocidentalização no vestuário, desde a roupa diária, à de praia, piscinas, de desportos, corroborada pela adaptação ao modo funcional e prático das refeições, demais lazeres e relacionamentos.
Ao inverso dos turistas árabes, onde sobressai uma permissiva ocidentalização masculina no vestir e outras condutas, por oposição às proibições femininas. Embora em minoria, por mais discretos que sejam ou tentem sê-lo, também nunca passam por não notados. Em especial pelo flagrante contraste entre a informal maneira de estar dos homens, e as impositivas regras islâmicas no uso imperativo da burka, para as mulheres, sempre cobertas de negro, da cabeça aos pés, não frequentando praias ou piscinas em fato de banho, não conversando nem se relacionando com estranhos. Nos restaurantes a mesa era escolhida estrategicamente, o mais isolada possível, onde a mulher fica sentada de costas para os demais, com exceção do marido, em frente do qual, e tão só, destapa o rosto para comer, levantando o véu o estritamente necessário, protegendo-se de ser vista pelos outros. Viajando de barco, passeando ou sentando-se no areal, indo ao spa, iam sempre acompanhadas e de burka, apenas os olhos e pontualmente as mãos se visualizando. Curiosamente, não vi nenhum árabe fazer gala do seu vestuário tradicional, antes se vestindo à ocidental, não esquecendo o fato de banho.
Sendo os ocidentais mais liberais, e sendo todos os usos e costumes adaptados e filtrados consoante o lugar, as pessoas, o contexto situacional e o que é esperado pela sociedade, de igual modo as Maldivas não são exceção. Tendo como religião principal o islamismo, que proíbe vestuário feminino sensual e a venda de bebidas alcoólicas, constata-se que tais interdições não fazem lei para as não nativas, nestas estâncias turísticas construídas em ilhas inabitadas por locais. Os empregados são quase todos homens, na cozinha, restaurantes, bares, arrumação e limpeza de quartos, ruas, caminhos, piscinas. Mulheres laborando, só pontualmente, e não locais, pelo que vi. Por exemplo, de regresso, do resort até um aeroporto local, fomos auxiliados por uma jovem da Bielo-Rússia. Predominando jovens tailandesas no spa, aqui e ali uma ou outra indiana, filipina, ou quejanda. Em ilhas habitadas em permanência as autóctones laboram nos check-in/out de aeroportos, como hospedeiras de avião, etc, de roupa funcional e rosto descoberto. E apesar dos muitos emigrantes a trabalhar nas Maldivas, da Índia, Sri Lanka, Nepal, Bangladsh, em comunhão com trabalhadores locais, incluindo temporariamente estudantes-trabalhadores, são percetíveis alguns olhares arregalados, quando não lascivos, bem como comentários ininteligíveis a ocidentais. Alguns, na sua presunçosa virilidade, são infantilmente ridículos, mesmo que não ofensivos. Proibir sim, mas só para as locais, guardando-as de contágios alheios.
Portugal, para os indígenas com que falei, equivale a Cristiano Ronaldo, prova consumada da globalização e popularidade megalómana do futebol. Só um interlocutor, emigrante nepalês, foi mais longe, revelando ténues conhecimentos das antigas estadias e heranças dos portugueses por aqueles mares e terras. Foi gratificante constatar numa listas seleta de vinhos, num restaurante selecionado, um tinto, um branco e um rosé de Portugal, além dos já clássicos vinho do Porto e da Madeira. Um produto com futuro, a que não é exógeno o facto de estarmos entre os dez maiores exportadores mundiais, com tendência ascendente. Refira-se, ainda, uma seleção diária, em folhas A4, de notícias em português, a par do inglês, francês, castelhano, alemão, italiano, chinês e japonês, atestando a internacionalização e universalidade do nosso idioma. Anote-se reagir-se com simpatia ao nosso país e à nossa nacionalidade.
Como país mais plano do mundo, tendo como capital Malé, pequena cidade incaraterística, tenta atrair investimentos, o que tem conseguido pelos baixos custos de implantação e de mão-de-obra, aliados às suas potencialidades turísticas, levando multinacionais do ramo a aí se instalarem, sendo marcante a diferença entre ilhas de turismo (despovoadas e apropriadas para turistas) e povoadas (por nativos, bem mais pobres e menos apelativas). Apesar do estado natural e sua preservação, descanso e sossego, não poluição e atmosfera pacífica, não vi aproveitamento energético via painéis solares, o que é um desperdício num local onde o sol é companhia permanente.
Para amantes de sol e praias exóticas e de um doce, pessoal e reservado sossego, são as Maldivas potenciadoras de uma experiência inesquecível. E uma atração e mais-valia para os apreciadores e profissionais de mergulho subaquático, dada a visibilidade e temperatura debaixo de água, vida marinha e suas mudanças, os afamados corais, sem omitir o snorkeling, jogos de pesca, lições de desportos aquáticos, entre outros eventos. Por entre mar e terra, paisagens puristas, habitações integradas em belíssimos cenários, muitas delas sedutoramente implantadas sobre o mar.
Pese embora algumas reclamações por ausência de uma certa agitação musical e social para jovens adultos, conjugada com alguma dificuldade em socializarem momentos em grupo, foram um privilégio estas férias em família, no mais pequeno país asiático, reforçado por possíveis em conjunto, mais um ano, tanto mais que, pela evolução natural das coisas, as gerações mais novas tendem a autonomizar-se, voando cada vez mais alto.
Impressões pessoais das Maldivas, em Agosto de 2014 Texto revisto em 01 de Dezembro de 2015 Joaquim Miguel De Morgado Patrício
Miscelânea de ilhas e ilhotas à solta e espalhadas pelo oceano, entre o verde campestre e azul marinho, florestas, parques arborizados, florestais, lagos, cais, canais, dezenas de pontes passeando por águas amenas e limpas, numa urbe amiga do ambiente, discreta, colorida e verde, junto à água. Eis a primeira impressão de Estocolmo, principal centro urbano e capital administrativa, política, cultural, comercial e financeira da Suécia. Conhecida por A Bela Sobre a Água ou A Veneza do Norte, integra 14 ilhas interligadas e circundadas de águas límpidas, oferecendo uma imensa variedade de atividades ao ar livre, desde canoagem, regatas de barcos à vela, passeios em caiaques, pequenas baleeiras à vela, gaivotas, barcos a remos, a vapor, a motor, ferries, de cruzeiro, iates. No Verão, apanha-se sol, nada-se e mergulha-se em locais do centro citadino. Há a pesca da perca, da truta do mar e eperlano, entre outros peixes. Quilómetros de espaços verdes, zonas protegidas e passeios pedonais para lazer e desportos. Tradicionais casas de madeira, típicos chalés (um deles, dos Abba), o primeiro museu ao ar livre do mundo (Skansen), pousadas e hotéis em várias ilhas do arquipélago, são um convite a olhar e ver, ao silêncio, sossego e tranquilidade. Este vanguardismo ambiental, ecológico e de culto da biodiversidade, também se observava pela preferência dada à alta tecnologia e energias limpas. E por um sistema de fiscalização do congestionamento, em que todo o centro da cidade estava dentro da zona do imposto de congestionamento de veículos. Daí ser tida como uma das cidades mais limpas, organizadas e de melhor qualidade de vida. Uma das mais habitáveis e qualificadas mundialmente. Em comunhão e conjugação de esforços com a ausência de poluição do meio ambiente, amor pela natureza e pelos animais. Por maioria de razão ao saber, pela guia local, serem os patos, aos milhares, um símbolo de Estocolmo, que os seus habitantes muito prezam. Só que, à época, iam rareando de dia para dia. Queixas, queixumes, denúncias, reclamações, inquéritos, investigações, policiamentos, alertas e quejandos não resultavam. Diminuíam paulatinamente em quantidade, mas não apareciam mortos, nem doentes. Os remanescentes estavam luzidios e saudáveis. Adensado o mistério, intensifica-se a fiscalização e a vigilância, em especial durante a noite, e eis que, entre o incrédulo e a estupefação, se conclui que eram furtados, cozinhados e confecionados como pato à Pequim em restaurantes chineses, fazendo as delícias das papilas gustativas dos comensais seus amantes, mas à revelia de todas as regras. A reação não se fez esperar: sancionamento dos infratores e encerramento de todos os restaurantes chineses, com a subsequente proibição de novas aberturas (desconheço até quando). Uma punição, ao mesmo tempo uma tentativa de expiação e redenção, de uma cidade tida planetariamente como das mais seguras, em contraste flagrante com a insegurança dos seus patos. Naturalmente, qual fénix renascida, os patos regressaram gradualmente e sem constrangimentos ao seu habitat, para equilíbrio e encanto de Estocolmo!
Era sábado, meio solarengo e cinzento, sem chuva, chuviscos ou aguaceiros, mas ameaçando. Num dos primeiros percursos pedonais, paragem na Rorstrandsgatan, uma cosmopolita rua popular, com cafés, restaurantes, pubs e aprazíveis esplanadas, numa atmosfera colorida de fim de tarde, onde imperava a boa cerveja. No decurso de um passeio noturno, desfiles e concertos de música ao ar livre, com músicas e atrações artísticas de várias latitudes, desde a clássica, ao rock, pop, latino-americana, anglo-saxónica, nórdica, incluindo o samba, com representações essencialmente da América Latina, a rainha da festa, dado que, pelo que vi, havia representações do Brasil, México e Cuba. Milhares de pessoas passeando, vendo, ouvindo, cantando e dançando, numa festa popular de adultos e imensa juventude. Muitos jovens adultos e adolescentes liberais no vestir, no penteado, nas cores, tatuagens, numa exposição pública aberta e descontraída de afetos e tendências sexuais. Num curto intervalo de tempo, vários jovens expelem saliva e escarros para o chão. Outros, incluindo adultos, embriagados e desinibidos pelo álcool, não se inibem de urinar, por vezes sem pudor. O estado eufórico e a massificação não justificam tudo. Como não o justifica ver ruas sujas de beatas de cigarros, pastilhas, papéis, latas, garrafas de vidro e plástico, a desmistificarem o mito do “muito ordenado” e “sempre limpo”. Cada caso é um caso, não se podendo generalizar ao todo, por certo, mas há situações, mesmo que pontuais e mais permissivas, que são mais chamativas onde menos se espera, nomeadamente para quem de visita de países pontuados como menos desenvolvidos. Também numa paragem na cidade de Karlstad, em plena rua, observo em flagrante um homem avinhado. Sempre me constou que os suecos têm a noção do ridículo, pelo que, quando bebem em excesso, são discretos e tentam ocultá-lo na sua privacidade, razão pela qual me surpreenderam tais condutas. Apesar de, nalgumas situações, lhes estar associada uma progressiva e progressista evolução e liberalização de costumes, tendencialmente a imitar pelos países menos avançados. Retive, a este propósito, a naturalidade com que jovens e casais homossexuais se relacionavam, eram aceites pelo cidadão comum e estão integrados na sociedade em geral, sem preconceitos e respeito recíproco. Foi-nos muito recomendado um bar-restaurante, essencialmente gay, onde toda a gente ia para beber e saborear o melhor chocolate de Estocolmo. O que fiz, com a família, num ambiente tolerante e bem frequentado, entre turistas e locais, sem constrangimentos ou qualquer tipo de discriminação pela diferenciação.
Cidade discreta, elegante e contida na sua dignidade e simplicidade, não é de deslumbramentos monumentais, arquitetónicos e artísticos, mas suficientemente chamativa, onde prevalecia uma notória preservação patrimonial, a nível histórico e edifícios em geral. Destaque para o Palácio Real e Render da Guarda, a Velha Catedral, o Parlamento, Palácio de Drottningholm, da Bolsa, Igreja de Riddarholms-Kyrkan (das cerimónias fúnebres reais), o Teatro Real, Nationalmuseum, o Nordiska Museet e o Jardim do Rei. O tempo escasseava, havia que estabelecer prioridades, optando-se pela Stadshuser (Câmara Municipal) e pelo Vasamuseet para visitas mais pormenorizadas. Stadshuset, um dos símbolos cimeiros de Estocolmo, mais austera e sóbria exteriormente, é mais majestosa no interior, pelo seu design. Tem como atrações maiores o Salão Dourado, o Salão Azul e o Salão da Assembleia. O primeiro, revestido com mosaicos de parede de influência bizantina e milhões de fragmentos de folha dourada, tem como tema central a Rainha do Lago Malaren. O segundo, revestido com azulejos manuais, é o salão de banquetes, nele se realizando as festividades anuais do Prémio Nobel, instituído pelo químico e inventor sueco Alfred Nobel. Interroguei-me (e interrogo-me) do porquê de apenas dois lusófonos, até agora, terem sido contemplados (o médico Egas Moniz e o escritor José Saramago, ambos portugueses), com especial ausência do Brasil. Falta de estratégia injustificadamente adiada e cada vez menos justificada? Mera injustiça? Que tem feito e poderia fazer, por exemplo, a CPLP? Fica a questão. A Assembleia, por sua vez, é um belíssimo salão onde se reúnem os vereadores camarários. No topo de uma torre com 106 m de altura, com vista plena sobre a urbe, o símbolo heráldico da Suécia, as três coroas, do século XIV. Já o Museu Vasa, o mais popular da cidade, aberto em 1990, tem como tema a recuperação e restauração da embarcação real de guerra Vasa, após ter naufragado na viagem inaugural, em Agosto de 1628. Impressiona pelo porte majestoso, pela majestosa ornamentação de mais de setecentas figuras esculpidas em alegoria e propaganda ao poder, sendo tido para muitos, à data, como o navio mais poderoso do mundo. Na zona mais antiga da cidade, em Gamla Stan, por entre ruas estreitas que lembram uma cidade medieval, há-as movimentadas para todos os gostos, incluindo pechisbeque, artesanato de qualidade e lembranças raras. O modernismo pode ser apreciado no Centro Cultural e obelisco de vidro em Sergels Torg. Inovador foi frequentar um bar todo em gelo (paredes, teto, chão, balcão, bancadas, mesas, prateleiras, acessórios), para encanto da Primogénita e da Benjamim. Além da curiosidade de ver, exteriormente e de passagem, o que era tido como o teatro mais pequeno do mundo, com 21 lugares. Evocação do dramaturgo August Strindberg, junto da sua última morada, atualmente um museu. Sem esquecer Astrid Lindgren, autora de A Pipi das Meias Altas.
Orientados por uma guia local, expressando-se em bom português, apercebi-me que para além dos emigrantes lusos serem tidos como trabalhadores e bem vistos, sol e praias, fado, futebol, o vinho do Porto e os Madre Deus eram a sinalização mais marcante de Portugal na Suécia. Houve queixas em relação à pouca difusão e incentivo do nosso idioma, a começar pela nossa embaixada. Esta omissão e ausência de estratégia (lusófona, e não apenas lusa), a que acresce a pouca divulgação em língua sueca e inglesa da cultura e ciência lusófona, inclusive via traduções, nomeadamente para a língua da globalização, não será também responsável para a pouca representatividade, até hoje, de lusófonos laureados pelo Nobel?
Foi assim que me confrontei com uma cosmopolita e inclusiva Estocolmo, onde o indígena se encontra e mistura com o emigrante, o turista, o estrangeiro, onde o mito das beldades femininas suecas, tão sacralizado, se confirma moderadamente e sem exageros. Questionei-me do porquê do síndrome de Estocolmo, associado ao assalto ao Kreditbanken, em Agosto de 1973, em que as vítimas defendiam os seus raptores após prisioneiras vários dias, com condutas não colaborantes com a justiça nos processos judiciais, quando já em liberdade. Lembrando o livro e o filme A Bela e o Monstro. Talvez Ingmar Bergman, melhor que ninguém, o pudesse analisar, dada a sua filmografia, tão analítica e introspetiva, perguntando e querendo dar respostas, numa sociedade concomitantemente contida e sigilosa, ao não exteriorizar e esconder, com reserva, reservas mentais, por ser ou poder ser publicamente ridículo. Num país também tido como vanguardista em termos humanos, de progresso e avanços civilizacionais, onde o que agora é tido para muitos como anormal e chocante, acaba por ser, no futuro, assimilado e tido como normal pelos críticos de antanho, aceitando, adaptando e imitando o que anos atrás se censurava. Escândalos associados à vida de divas suecas como Greta Garbo e Ingrid Bergman, foram por muitos absorvidos e tolerados.
Foi o que retive de Estocolmo, capital e máxima representante da Suécia, na sua comedida elegância, simplicidade e vanguardismo.
Impressões pessoais de Estocolmo, em Agosto de 2008 Texto revisto em 02 de Novembro de 2015
Fundada por Pedro, o Grande, em 1703, foi elevada a capital em 1712, deixando de o ser em 1918, após a revolução bolchevique de 1917. Conhecida por “Janela sobre o Ocidente”, uma vez inspirada em ideias e novidades arquitetónicas que o seu fundador assimilou e importou do ocidente europeu, situa-se nas margens do rio Neva, junto ao Golfo da Finlândia, no Mar Báltico, sendo também conhecida por Petersburgo, outrora Petrogrado e Leninegrado. Cidade imperial, mágica, heroica e mártir, é mais celebrada, de momento, como capital cultural e monumental da Rússia, sendo o seu centro histórico património mundial da humanidade. Residência da corte e família imperial, em mais de duzentos anos, foi um dos centros culturais europeus mais aclamados, com habitantes famosos, como Pushkin, Nikolai Gogol, Dostoievsky, Tchaikovsky, Ivan Pavlov, Malevich, Anna Pavlova, Stravinsky, Vaslaw Nijinsky, Anna Akhmatova, Prokofiev e Shostakovich. Atento o historial e currículo, a expetativa era elevada.
Alguns quilómetros percorridos, dão-me uma sensação agradável, de uma metrópole cosmopolita, com dignidade e personalidade. Atravesso a periferia avistando canais, pontes, as águas do Neva e seus afluentes, barcos e táxis aquáticos, por entre edifícios apalaçados, palácios aristocráticos, cúpulas, torres e agulhas erguidas para o céu, com realce para a sumptuosa cúpula dourada da Catedral de Santo Isaac. Na Avenida Nevsky há uma profusão de edifícios e estilos, do barroco ao neoclássico e moderno, numa zona central cosmopolita, de inegável interesse arquitetónico, histórico, comercial, turístico e cultural. Um cartão e sala de visitas da capital imperial da antiga Rússia, como avenida (e rua) mais imortalizada e famosa do país. Instalo-me e sou bem recebido, nesta alegre, histórica e movimentada artéria, com tudo em redor. Com o resto do dia disponível em família, recolho informações sobre um restaurante próximo de qualidade. Considerando que o almoço fora substituído por uma alimentação ligeira, aceitámos a sugestão de um muito bom, tido como acessível para ocidentais. Eis que, aí chegados, nos sentámos em cadeiras almofadadas e de braços de encosto, num restaurante de mesas atoalhadas, decoradas com flores e velas brancas em castiçais de prata. Com revestimentos em mármore e madeiras trabalhadas, entre tons brancos, amarelados e acastanhados, candeeiros florais suspensos pelas paredes, simulando magias, encantos e iluminações noturnas, num cenário encantatório e romântico. Sem pressas, fazendo o culto da contemplação e conversação, apreciámos e saboreámos o menu, por entre surpresas do chefe e da casa. De preço acima da média para a maioria dos russos, foi medianamente acessível para nós, com custos bem superiores se pago em euros no nosso país. Gastronomia e refeições assim são pontuais. Mas compensam e memorizam-se. Ficámos surpreendidos quando atendidos por um empregado, fardado a rigor, que só falava russo, apesar da ementa disponível em inglês, socorrendo-nos ocasionalmente de um colega seu. Vanguardista, ostensivo, de um novo-riquismo algo despropositado, era o revestimento a mármore, em várias cores, da casa de banho masculina, além de molduras com desenhos e gravuras nas paredes, torneiras douradas, enquadramento artístico de um espelho e plasma com desfiles de design e moda.
Dia seguinte, visita obrigatória à Catedral de S. Pedro e S. Paulo, singular obra-prima do barroco, exteriormente um todo de elegância pela harmonia, leveza, combinações, linhas e proporção das formas, encimada por um anjo-catavento, sobre uma agulha dourada de 122 m de altura, cujo interior, riquíssimo, me lembrou igrejas barrocas italianas, atualmente panteão dos czares, para onde recentemente trasladados os restos mortais do último Romanov e família. À saída, numa capela lateral, cânticos ortodoxos num canto devocional de natureza religiosa, louvando o divino. Entre tantos turistas, divulga-se o trabalho e recolhem-se receitas. Seguiu-se a Catedral de Santo Isaac, na era soviética um museu do ateísmo, grandiosa e monumental, imponente e majestosa, no exterior e interior, cuja cúpula, dourada e esplêndida, domina toda a cidade, abundando em obras de arte, desde os ícones de mosaico na iconóstase, ao vitral de Cristo em Majestade, pinturas, colunas de granito vermelho, malaquite, lápis-azuli, minerais e pedras preciosas. Assemelha-se mais, no conjunto, a outras congéneres do ocidente, que à arquitetura ortodoxa. Na praça Santo Isaac, aprecia-se também o monumento a Nicolau I, o palacete neoclássico onde viveu o enciclopedista francês Diderot, a convite de Catarina II, e a atual Câmara Municipal. De tarde, a Igreja do Sangue Derramado, no local onde o czar Alexandre II foi assassinado, em 1881. Já fechada, admirei o exterior. Pelas cúpulas, justaposição de materiais e cores, forma e porte, lembrou-me a Catedral de S. Basílio, em Moscovo, embora menos imponente. Foi chamativo um mercado local, tipo feira, contíguo, de artesanato e recordações. Adquirimos, após regateio, três marcantes e pequenas aguarelas. Procurámos as bonecas matryoshka, inserindo-se umas nas outras, desde as tradicionais e mais clássicas, às de chefes políticos soviéticos, russos, mundiais, de escritores, compositores e futebolistas, entre estes Cristiano Ronaldo. A oferta é contínua, desde caixas Palekh, ovos Fabergé, samovares, objetos da época soviética, lacados, vestuário, postais, livros, caviar, vodka. Quem vende, além de russo, fala inglês, alguns espanhol, outros algum português, francês, italiano. Ouve-se um bom dia, boa tarde, obrigado/a, em face da nossa nacionalidade. Sintoma da maior abertura de São Petersburgo ao exterior, ao invés de Moscovo, mais fechada, mas com mais viajantes, pelo que me disseram. Mais homens de negócios, empresários, industriais e políticos, e não turistas, predominando estes em Petesburgo.
Novo dia, nova visita, ao Palácio Imperial de Pedro, o Grande, em Peterhof, a 30 kms de São Petersburgo, rivalizando com o de Versalhes, com acesso interior pela escadaria principal de Rastrelli. Há uma sucessão de aposentos imperiais, rivalizando entre si, destacando-se a sala do trono, salão de honra e de refeições de gala. Novidade e deslumbramento não tive, pois já visualizara aposentos reais e imperiais parecidos ou superiores. O apogeu do triunfalismo imperial surge com a beleza, imponência e magnificência da Grande Cascata, alimentada por nascentes subterrâneas, composta de 37 esculturas de bronze dourado, 64 fontes e 142 jatos de água saindo de dragões, leões, peixes, tritões, descendo dos terraços até ao canal marinho e mar, tendo como peça modelar uma escultura de bronze dourado de Sansão a dilacerar a garganta de um leão, evocando a vitória da Rússia sobre a Suécia. Há outros motivos de interesse, em que o mais popular é a fonte do guarda-chuva, que improvisa partidas com “chuva” quando alguém se aproxima. No regresso à urbe, o arrefecimento e tempo chuvoso prejudicaram um cruzeiro por canais e rios, com o uso de cobertores e guarda-chuvas na parte aberta do navio. Mas era noite de ópera, no celebérrimo Teatro Mariinsky (Kirov, para os soviéticos). De imprevisto e quase em cima da hora, suprimos obstáculos com ajuda logística da guia local russa. Restava antecipar uma refeição ligeira e familiar, frustrada num snack-restaurante em que a alegada celeridade não se compadecia com a nossa. Aceite, em desespero, a sugestão jovial (da Primogénita e Benjamim) de uma oferta célere, globalizada e adaptada ao consumismo velocista, fomos atendidos e libertos em 20 minutos. Em cena “La Forza Del Destino”, de Verdi, cantada em italiano, um drama de amor contrariado que acaba em tragédia e morte, dado que a força do destino, no seu determinismo, assim quis. Os belíssimos cenários e executantes não desiludiram, a que acresce uma sala emblemática e memorável do mundo das artes, incluindo o ballet. Seguir-se-ia o Hermitage, com três milhões de peças, em vários edifícios, onde pontua o Palácio de Inverno, que foi residência oficial dos czares. Entrada pela monumental escadaria principal, em estilo barroco, obra-prima de Rastrelli, seguindo-se salões, salas, galerias, um pavilhão, as loggias de Rafael e os aposentos do museu, findando com a arte de pintura europeia dos séculos XIX e XX. Retive o notável Pavilhão em ouro e mármore branco, belíssimo em tudo: colunas, teto, chão, candelabros, adornos, mesas, desenhos embutidos, o excecional relógio-pavão de James Cox. As colunas e vãos de malaquite, portas douradas, tetos, cores e parquet a condizer na sala do trono. Após tanto ver, e numa outra visita ao majestoso exemplar do barroco russo do palácio imperial de Tsarkoe Selo, o que mais me seduziu foi a excecional originalidade duma sala totalmente revestida a âmbar. É uma recriação, à base de fotografias, dado que a inicial foi desmontada a mando dos nazis, cujo conteúdo e valor deslocalizarem para lugar incerto. Sem esquecer a Catedral de S. Nicolau, de Nossa Senhora de Kazan, de Santo André, de Smolnny, Mosteiro Alexander Nevsky, Museu Russo, Ponte dos Leões, Egípcia, Anichkov e da Trindade, Almirantado, colunas Rostral, o Cavaleiro de Bronze e o Monumento à Vitória na sua evocação austera e solene aos herois e sobreviventes do cerco de Leninegrado. E a influência das mulheres e czarinas Isabel e Catarina II, misticismo, poderes paranormais e influência de Rasputine na corte russa, notória ocidentalização iniciada pelo fundador que perdura, onde a influência soviética é menos institucional e marcante que em Moscovo. Por confronto com a capital, falaram-me em desemprego, vi pedintes, alguns cidadãos negros. Gratificante haver uma jovem guia russa falando a nossa língua, que interpelei quanto à sua omissão de Ribeiro Sanches e Luísa Todi, frequentadores da corte de Catarina II, aquele como médico da czarina, a segunda como cantora lírica das mais célebres de sempre. Constou-lhe ter havido um médico luso de Catarina, nada sabendo da cantora de Setúbal, prometendo investigar. A guia de Moscovo falara neles, apesar de melhor inseridos em Petersburgo, onde habitaram. Aludidos o vinho da Madeira e ilha do Pico (Açores), já conhecidos e consumidos pelas elites russas no tempo dos czares. E os Madre Deus, conhecidos pela guia, à semelhança da de Moscovo. Pode entender-se que cidades assim deslumbram e esmagam pelo seu excesso, dado que tudo o que é excessivo cansa, embacia e turva os sentidos, a começar pela vista, ofuscando-a ou perturbando-a. Não foi isso que senti, mas sim, no geral, encantamento e fascínio, tocando-me os sentidos. Mas compreendo que exista uma expetativa mais elevada para nos maravilharmos ao conhecemos, de antemão, outros patrimónios arquitetónicos e culturais no mesmo patamar (ou subjetivamente superiores), confrontando o que vimos com o que vemos, ou o inverso. Em Petersburgo sucedeu-me de tudo, numa multiplicidade de sensações que justificam mais que uma visita. Mas não duvido que vale a pena visitar São Petersburgo.
Impressões pessoais de São Petersburgo, em Agosto de 2009 Texto revisto em 5 de Outubro de 2015 Joaquim Miguel De Morgado Patrício
Sendo Moscovo o centro do centripetismo russo, reforçado pela imigração de gentes oriundas de províncias e periferias da Grande Rússia, de emigrantes de países emergentes da anterior União Soviética, não me surpreendeu um notório crescimento económico, aliado aos vastos recursos naturais e investimentos do país, gerando dinheiro que transitava entre uma elite abastada e concentrada na capital administrativa, económica e política da Rússia, como plataforma giratória de novos ricos, os “Novos Russos”. Como centro polarizador de emprego e riqueza, não destoou saber da afluência de pessoas de meios rurais e periféricos, de emigrantes de países vizinhos. Tais emigrantes, fazedores de trabalhos menores que os moscovitas rejeitam, não eram bem vistos, em geral. Os de cultura muçulmana, no essencial, eram tidos como atrasados, conservadores, fundamentalistas e radicais, cultores de costumes que chocam com os da maioria dos russos. Os de países que compunham a União Soviética, eram vistos com ressentimento, traduzido num rancor subsequente a uma mágoa que se guarda de alguém que nos fez mal e que, após a ofensa, tem o desplante de nos procurar para uma vida melhor. Pessoas de etnia africana, não as vi, nem como turistas, homens de negócios ou emigrantes, o que o clima e a distância, por si só, não explicam, sabido que no auge da US, aí se formaram elites africanas. Tive informação, por uma guia local, da ausência, à data, de desemprego em Moscovo, não extensivo a toda a Rússia. Facto a que não seria alheio o custo de vida. Tendo como referência o nível médio russo, nada faria esperar preços tão inflacionados, numa urbe de ostensivos sinais exteriores de riqueza, desde toda a gama de marcas de topo internacional, a um súbito parque automóvel em quantidade e qualidade sobressaindo, aos meus olhos, jipes de alta cilindrada e opulentas limusines. Muita oferta podia ser adquirida a preços mais acessíveis ou iguais noutras urbes europeias, americanas ou similares. Mas existindo oferta, existe procura. De repente vieram-me à memória os afamados megamilionários e multimilionários russos, de enriquecimento súbito, dez por cento da população russa, aproximadamente quinze milhões, de um total de cento e cinquenta milhões, largamente concentrados em Moscovo. Coincidência, ou não, não vi, nem fui assediado por pedintes. Abordados (eu e família) por vendedores ao acaso, isso sim, propondo quinquilharias, pechisbeques, lembranças da era comunista, balbuciando palavras pontuais em português, ao reconhecerem-nos, com guias turísticos no nosso idioma, baixando e apelando ao regateio do preço quando a insistência não vingava. Quando afastados, não estendiam a mão. Orgulho ou resquício de condutas impositivas da US? Talvez mero acaso, dado que São Petersburgo não o confirmou. Que o dinheiro circulava, provavam-no ainda o modo exuberante do vestuário usado no feminino, em locais centrais e de negócios, por vezes apelativamente sensual. Havia em demografia, em toda a Rússia, mais dez milhões de mulheres, o que aliado a uma progressiva liberalidade de costumes e autonomia económica, permitia uma gradual ascensão de mães solteiras, em especial em cidades como Moscovo. Falaram-me num número significativo de raparigas que escolhiam o pai e o marginalizavam sem nada saber da paternidade, cujos bebés eram criados ou ajudados por avós maternas acomodadas, além de alguma ajuda estatal, sempre insuficiente, alterando-se o conceito de família, não sendo o matrimónio um fim em si, nem a filiação seu fundamento. Mesmo que se indicie não ser Moscovo uma urbe representativa de toda a Rússia, pelos contrastes do país, em paralelo com a sua territorialidade, a maior mundialmente, é uma cidade marcante para os moscovitas, russos e o mundo, centro impulsionador de messianismos e utopias, centro de poder de uma potência militar e nuclear, para aqui transferido após a revolução bolchevique, em substituição da imperial e cultural São Petersburgo. A revolução russa fez de Moscovo uma capital nacional, internacional e imperial, tentando construir uma nova sociedade internacionalista e revolucionária, em rutura com o passado e promessas de novos amanhãs, como o revela o contraste entre a arquitetura mais antiga e os edifícios construtivistas, igualitaristas e marcos comunistas do século XX. Entre estes a imponente Universidade Pública de Moscovo, em estilo gótico-estalinista, um mega exemplar da arquitetura pós-revolucionária, também conhecida por “bolo de noiva” ou “bolo de casamento”, cujas torres, na sua gótica verticalidade, a suavizam, não a libertando de um ar pesado. O mesmo quanto ao arranha-céus do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Dois dos exemplos maiores da ex-União Soviética ao tentar rivalizar em monumentalidade, força e poder com o ocidente. Apreciei, não me encantaram, nem deslumbraram. Muito menos edifícios e blocos de apartamentos massificados e todos iguais, austeros e não diferenciados da época comunista-estalinista, habitações dos últimos líderes soviéticos, zona residencial de Estaline (após o suicídio da mulher) e local onde finou. Anote-se um imponente obelisco evocativo da vitória na segunda guerra mundial, no Parque Vitória. Atração turística e símbolo do socialismo é o metropolitano, de estações monumentais, artísticas, funcionais, luxuosas, com candelabros, estátuas, esculturas, nichos, painéis, colunas, frisos, num chamariz faustoso e permanente. Mas o mais profundo da alma e encanto de Moscovo é anterior a Outubro de 1917, onde sobressai a Catedral de São Basílio, ex-libris e imagem emblemática da cidade e toda a Rússia, onde o equilíbrio, harmonia exterior, a elegância e dignidade vertical das suas torres e cúpulas, numa explosão cromática dispersamente equilibrada, por entre cruzes ortodoxas douradas nos cumes, me fez lembrar palácios reais encantados, embora aquém das expetativas o seu interior. No Kremlin, durante séculos símbolo do poder, desde cidadela dos czares, a quartel-general da ex-URSS e atual residência do presidente russo, chegados à praça principal, deparo-me com a Catedral da Anunciação, da Assunção, do Arcanjo, a Igreja dos Doze Apóstolos, da Deposição do Manto, a Torre Sineira de Ivan, o Grande, e o Sino do Czar. As dezenas de cúpulas douradas, coroadas por cruzes em ouro, erguidas para o céu, em prece e na vertical, cativam-me. Esteticamente belas, elegantes e cromaticamente apelativas, são como que substitutos das torres góticas das catedrais e igrejas cristãs do ocidente. Mesmo se singelas e simples na forma, fazem o culto do belo, elegância e diferenciação dos templos ortodoxos. Sobressai, no essencial, como na da Assunção, uma elegante imponência na verticalidade (em altura) e a sobriedade na horizontal (com omissão de espaço para os crentes). A exiguidade de espaço na horizontal tenta ser compensada pela ausência de cadeiras, bancos e instrumentos musicais, pelo que só as elites (czares, patriarcas) tinham direito a estar sentados, e não crentes e povo em geral. Frescos, ícones, pilares, cúpulas, locais de coroações, tronos, túmulos de czares, príncipes, de metropolitas e patriarcas da Igreja Ortodoxa, são sua parte integrante. Em que se ouvem cânticos ortodoxos por solistas profissionais do Conservatório Russo, alguns particularmente belos, raiando o sublime, se a acústica ajudar, às vezes para turistas e obtenção de receitas. Sem esquecer a Armaria do Estado, o museu do Kremlin por excelência, acumulando a principal riqueza de czares e príncipes, numa soberba coleção de peças em ouro, prata, coroas, diamantes, joias, insígnias reais, tronos, vestuário de coroações, ovos de Fabergé, carruagens, armas, armaduras, ofertas de embaixadores, com destaque para o diamante (do amante) Orlov, dado a Catarina, a Grande, que o usava no topo do seu cetro, o diamante do Xá Mirza e um trono incrustado de centenas de diamantes e turquesas. Além da Praça Vermelha, comprida, larga, espaçosa, versátil e de apetências multifuncionais, desde desfiles, manifestações e noivos tradicionalmente vestidos comportando, no seu todo, vários edifícios: o belo exemplar de tijolo vermelho do Museu de História, a muralha do Kremlin, a porta do Salvador, o mausoléu de Lenine, o Gum e a distinta Catedral de São Basílio. A que acresce a renovada Catedral de Cristo O Redentor, de veste alva e majestosa, com as suas cúpulas bolbosas douradas, num interior espaçoso, luminoso e equilibrado, sem excessos, restaurada após a sua destruição por ordem de Estaline. Bem como o valioso Museu Pushkin, um passeio pela rua Arbat, o Arco do Triunfo alusivo à derrota de Napoleão, a Catedral Kazan, a estátua de Pedro o Grande (no rio, comandando um navio), o lago inspirador do “Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky, o Teatro Bolshoy, o miradouro dos Montes Pardal, a que muito mais haveria a somar, nume urbe merecedora de revisitar. Foi surpresa, pela negativa, ser só falado russo pela maioria da população. Foi surpresa, muito positiva, ouvir a guia local num português fluente, de um profissionalismo acima da média, sendo reconfortante ouvir uma lusófila compensada em empregabilidade pela sua garra e gosto em falar o nosso idioma. Amália, Mariza, Cristiano Ronaldo e Mourinho foram nomes lusos que ouvi, no geral, como identificação de Portugal. As douradas e solares praias algarvias viam-se em cartazes turísticos. Em jeito de síntese, resumiu a guia a vida em Moscovo e na Rússia, nestes termos: “Aparência alegre, só na forma. A vida é alegria e dor. Foi-o assim no comunismo, é-o agora, como sempre foi e assim será. - Que fazer?- A vida é assim!” Num misto de saudosismo e nostalgia, fez-me lembrar a “Alma Russa”, de Dostoievsky a Tolstoi, o materialismo dialético, de Lenine, a Estaline e Gorky, num lamento conformado de desencanto e de não confiar que o futuro seja redentor. Que a vida tem sempre alegrias e dores, é uma verdade, em todas as latitudes e longitudes. Que fundamente uma atitude de demissão, dado existir sempre dor, entendo que não. Nada melhor que um exemplo da mesma guia, num passeio noturno, ao referir, junto da Escola Superior de Ballet, que por detrás da aparência angelical e excelência profissional do/a/s bailarino/a/s se ocultam dramas , tragédias pessoais e profissionais, exemplificando-o com condutas de concorrência perversa entre colegas, de total ausência de solidariedade e superego doentio e destrutivo, ao colocarem cobardemente vidros e outros objetos agressivos e cortantes no calçado de potenciais concorrentes, desmotivando-os ou anulando-os. Há casos em que tais métodos são mortíferos, atingindo os seus fins. Noutros, os destinatários não se resignam, indo em frente, prevenindo-os, evitando-os ou superando-os, não alimentando a resignação. Se a vida é sempre alegria e dor, esta pode ser convertida em júbilo, não nos resignando, muito menos por princípio, não dando azo à fatalidade, pois também há esperança, mesmo sonhando com utopias adiadas. Afinal, como diz o poeta: “Eles não sabem que o sonho, é uma constante da vida, tão concreta e definida, como outra coisa qualquer”.
Impressões pessoais de Moscovo, em Julho e Agosto de 2009 Texto revisto em 19 de Agosto de 2015 Joaquim Miguel De Morgado Patrício
Urbe marítima, funcional, ecológica, de águas límpidas e ruas limpas, de percursos pedonais e aquáticos, convidativos à contemplação, ao lazer e desporto. Não monumental, nem massificada, simples, mediana e modesta no seu perfil. Trânsito não caótico, sem atropelos ou confusões, incluindo milhares de bicicletas não poluentes rolando fluentemente em morfologia plana. Não há o culto da ostentação, mas de um pretenso igualitarismo entre os humanos e a natureza, com incentivos às energias renováveis e a tudo o que seja amigo do ambiente. O que é reforçado por quilómetros de passeios pedonais ao longo dos canais de águas serenas e transparentes, por entre esculturas, meros passeantes, corredores de fundo e cultores do exercício físico, num enaltecimento da mente sã em corpo são. Sem deslumbramentos, grandezas ou monumentalidades, não rivalizando com urbes modelares como Nova Iorque, Rio de Janeiro, Paris, Londres, Roma, nem com Lisboa, Barcelona, Budapeste, Viena ou Praga, num patamar superior a Oslo, Dublin e Helsínquia, e em paralelo com Estocolmo. Diferencia-se na gastronomia criativa de topo a nível internacional, num número significativo de restaurantes premiados com estrelas da Michellin e da Restaurant, em que reservas por telefone ou internet obrigam à posse confirmada de cartão de crédito compatível, para pagamento proporcional aos lugares reservados, em caso de ausência. Restauração que atrai todo o ano comensais de elite e turistas de alto poder de compra. Oxalá que uma parte da nossa gastronomia evolua também para um patamar de alto perfil. Potencialidades não faltam. Eis-me na capital da Dinamarca, um país que nos pode servir de referência pela positiva, pelo que dele podemos aproveitar. Pequeno, marítimo, pouco populoso, organizado, funcional, pacífico, ecológico, de patamar superior em nível de vida, educado, letrado, criador e engenhoso, eis o que podemos tentar captar, com as necessárias adaptações ao nosso contexto e realidade. De uma única fronteira terrestre, com a Alemanha, por paralelismo com a nossa, também única, com a Espanha. De caraterísticas essencialmente marítimas, como Portugal, por contraste com a continentalidade alemã e espanhola. Sabendo o que deve ao mar em riqueza e soberania, a pequena Dinamarca só subscreveu o Tratado de Maastricht quando fez nele inserir a proibição a estrangeiros de terem propriedades no seu litoral, assim reforçando a sua individualidade, desde logo face ao poderoso vizinho alemão. Sintomática, a propósito do porquê desta exigência, a resposta de um seu funcionário na União Europeia: “A rica Dinamarca não precisa da salsicha alemã como a Espanha, Portugal e a Grécia”. Portugal tem uma mentalidade imperial, e sempre viveu, para a sustentar, de dependências e fatores exógenos, mas há que saber até onde podemos ir. Há em nós um não aceitar a pequenez territorial que nos limita. Há em nós uma tendência desproporcionada em ter como padrão potências ou países de maior dimensão e poder, mais populosos e mais prósperos, como a França ou Reino Unido, cidades como Paris ou Londres, com Lisboa. Ter como referência países como a Dinamarca, Holanda ou Áustria, entre outros, é desejável, pela sua escala, demografia e bem-estar. A Dinamarca pode servir-nos de exemplo mimético para o que nos beneficie, pois exporta mais do que importa, é organizada e qualificada para, por si, se bastar, sem precisão de se confrontar com países maiores, que apesar de o serem territorialmente e em população são, na maioria, inferiores em bem-estar e desenvolvimento. Não sendo um país solar, foram solares os dias que eu (e família) passei em Copenhaga, três deles, em quatro, primorosamente primaveris, de céu límpido, temperados e sem excesso de calor. O ideal para a época, com milhares de pessoas dispersas pela cidade, em jardins, parques, esplanadas, barcos, à borda de água, canais, com especial incidência no canal Nyhavn, ladeado de casas coloridas e iates atracados, com o início e fim de permanentes passeios aquáticos. Além de outras atrações, como Marmorkirken (Igreja do Mármore), Radmespladsen (Praça do Município), Palácio e Guarda Real, Gefio Springvandet (fonte monumental), Galeria Nacional Dinamarquesa, Parque Tivoli, Casa da Ópera, predomina sempre o elemento marítimo, o culto da água. Como o atesta a singela escultura da Pequena Sereia, marco simbólico de Copenhaga, sentada sobre uma rocha observando nostálgica e pensativa os navios e transeuntes que é, na sua simplicidade e não monumentalidade, um logotipo alegórico da urbe e do país. Não deslumbra, não maravilha, nem é imperdível, mas é chamativa e diferencia-se o suficiente como ícone internacional dinamarquês. Associada à Dinamarca e vizinhos escandinavos (Noruega, Suécia e Finlândia), há uma realidade mitificada e exaltada, de países ricos, de pessoas altas, loiras, emancipadas e liberais, dignas de imitação o que, como em tudo na vida, nem sempre é real. O alto nível de vida, sem desigualdades chocantes, para isso contribuem. Mas há uma beleza mais solar, encantatória e monumental nos países europeus sulistas. Também o contributo civilizacional do sul da Europa em redor do Mediterrâneo, prolongando-o pelo Atlântico e sua universalização, é mais significativo ao longo dos tempos, desde a Grécia Antiga, Império Romano, Descobrimentos de Portugal e Espanha e Renascimento Italiano. Este bem-estar material e social não tem, necessariamente, correspondentes benefícios imateriais, sendo comuns, a todo o ser humano, as mesmas angústias, absurdos e interrogações existenciais. Seres emancipados, cronometrados em termos de trabalho e obrigações conjugais, repartição e distribuição de direitos e deveres, igualdade de género, liberdade liberticida e libertária em alegria e sexualidade, liberdade e responsabilidade, são associações mentais que os europeus do sul associam a estes povos. Tanto desenvolvimento não acarreta, forçosamente, uma saudável alegria de viver. Como o exemplifica a cinematografia do polémico realizador dinamarquês Lars Von Trier, ou o filme A Caça, de Thomas Vinterberg. Culpa e castigo, pecado e punição, luto, desespero, depressão, angústia, ansiedade, medos, obsessões, vazio existencial, são temas universais dominantes. É insuficiente o Ter para ser feliz. Também é necessário o Ser. Dinamarca que também associo ao descobridor e explorador Vitus Bering, ao escritor e contista Hans Christian Andersen, ao filósofo Kierkegaard, a Niels Henrik Bobr (prémio Nobel da Física), ao arquiteto Jorn Utzon (da ópera de Sidney), cineastas como Carl Dreyer e Nikolaj Arcel. Não silenciando a mundializada companhia de brinquedos Lego e a estrela internacional do design Arne Jacobsen, sem omitir Kay Bojesen e Hans Bolling. O bom gosto, alto perfil e funcionalidade, aliados a uma estética atraente, são caraterísticas reconhecidas ao design, fonte importante de rendimento para o país, o que constatei em Copenhaga. Referências a Portugal, além da bandeira na nossa embaixada, vi-as numa lista de vinhos num restaurante, onde a novidade era a sua proveniência algarvia. Refira-se, pela negativa, a omissão do nosso idioma dos passeios turísticos de autocarro e de barco, marcando presença o inglês, alemão, francês, castelhano, italiano, polaco, sueco, russo, japonês e chinês, apesar de mais falada e universalizada que a maioria das línguas disponíveis. A ausência de estratégia, portuguesa e lusófona, é gritante…A nível linguístico deveríamos ser um exemplo, dada a universalidade do português, o idioma mais falado do hemisfério sul, o terceiro mais falado do ocidente e o quinto ou sexto mundialmente, por confronto com a estrita localização do dinamarquês, não disseminado intercontinentalmente, não obstante os seus genes vikings. Mas não há bela sem senão, mesmo na imagem de marca da Dinamarca… Já deitado, leve, levemente, sons musicais sucessivos infiltram-se, via almofada, nos meus ouvidos, impedindo que adormeça. Levanto-me na direção do som e vejo uma discoteca dançante sob dança colorida de holofotes e luzes frenéticas, da outra margem do canal. Dirijo-me à receção. Era madrugada de sábado. Exponho a situação. Estranham. O que me obriga a encaminhá-los para a visão e audição da poluição sonora, em mais sonoro flagrante delito, na esplanada exterior. Entre desculpas de que o hotel não prevê nem controla tais eventos, que o espaço só é usado pontualmente, denunciei e reclamei da situação, por maioria de razão e menos expectável num país que se tem como muito civilizado e amante exemplar do meio ambiente. Regressado ao quarto, com tampões doados para os ouvidos, a música diminuiu gradualmente. Antes pedi para falar com alguém da gerência, de manhã, reclamando uma compensação. O que foi feito, com renovadas desculpas e uma atenção nas despesas, o que tive de relembrar, sob pena de esquecimento, aquando do pagamento final. Apercebi-me, por outro interlocutor, que a discoteca tinha sido reservada por congressistas do hotel, por sugestão deste, para uma festa de despedida. Manifestei o meu espanto. Contra-sensos na capital do pequeno e rico reino da Dinamarca.
Impressões de viagem a Copenhaga, Dinamarca, em Abril de 2014 Texto original revisto em 13 de Julho de 2015 Joaquim Miguel De Morgado Patrício
Dezenas de ruas, na horizontal e na vertical, frequentadas por milhares de pessoas, num espaço limitado e massificado. Centenas de estabelecimentos altamente concentrados, lado a lado, em ruas exíguas, medianamente largas, poucas vezes generosas. Hotéis, bares, restaurantes, lojas comerciais de todo o género, sem esquecer os caraterísticos pubs irlandeses. Onde há um pub há conversa e o culto da bebida, aí reinando o whisky e a cerveja. Onde os pubs imperam há música, cantos, danças, gritos, alegria, que o álcool fomenta e desinibe. Têm o seu lado positivo, pela beleza artística de alguns e pela força centrípeta que emanam e proporcionam em convívio. Um deles, mundialmente conhecido, qual ícone irlandês, o Temple Bar, é fotografado, filmado, procurado e propagandeado até à exaustão, por nacionais e turistas. Com a negatividade daí decorrente: massificação e banalização no serviço, onde nem sempre é possível entrar ou estar, dada a confusão em acotovelamentos, atropelos e vozaria. Carteiristas também os há. Urge ter cautela. Há noites em que passear ou conviver por ali, pode ser uma festa. De preferência em grupo, com um amigo, uma companhia, para “beber um copo”. Irlandeses embriagados, durante a noite, em especial ao fim de semana, são parte integrante da paisagem humana. Muitos fora de si, necessitando de ajuda, aqui e ali interpelados pela polícia. Nas ruas pedonais, há quem cante, dance ou toque música. Quem seja chamativo com acrobacias, malabarismos ou ilusionismos. Aqui e acolá, por entre adolescentes e jovens raparigas quase adultas, de saias curtíssimas e saltos descomunais, tropeçando e exibindo-se num chamariz constante. Dia e noite, dezenas de mendigos de todas as faixas etárias, irlandeses e emigrantes. Uns, de boa aparência, indiciavam uma vida anterior com dignidade, que a atual crise irlandesa puniu. Eis a impressão que retive do centro de Dublin, num espaço pequeno, apertado, compacto e consumista, onde tudo flui e se dispersa, num vai e vem permanente de milhares de transeuntes e dezenas de vias públicas apologistas do consumismo. Com o consequente arrastamento de todos os grupos sociais, desde os mais bem-sucedidos e endinheirados, aos mais vulneráveis, incluindo desempregados e mendigos. Sem negligenciar músicos, passeantes, emigrantes e turistas. Em termos gerais, uma urbe de média dimensão, não monumental, nem exuberante, sem deslumbramentos ou ostentação, nem de gratas belezas para exaltar. Agradável, pacata, pacífica, avessa a correrias, dada a sua leveza e mediania. Com um rio, o Liffey, pouco apelativo. Falta-lhe grandeza, mesmo que discreta, um golpe de asa que a conduza a outros voos. As ruas, avenidas, igrejas, imóveis em geral, na sua pequenez e modéstia, dão-lhe uma vivência mais familiar e intimista, menor dispersão e potencialidades de maior entreajuda. Seria expectável contar com mais, num aglomerado citadino cosmopolita diferenciado pelos pubs, colorido das tradicionais portas georgianas, a que acresce, como capital representativa da Irlanda, um meritório historial de nomes consagrados mundialmente. Vultos como Jonathan Swift, Edmund Burke, Oscar Wilde, Bernard Shaw, William Butler Yeats, James Joyce, Patrick Kavanagh, Samuel Becket, entre outros, merecem memórias mais consentâneas com a projeção que fazem da pátria. Por que não homenagens mais ousadas e vanguardistas, embelezando e dignificando em arquitetura e largueza de vistas o principal centro urbano irlandês? Por que não uma mestria mais arrojada e digna perpetuando os seus notáveis mais valorativamente para a posteridade? Por que não um turismo cultural e paisagístico mais qualitativo, sem esquecer a mais valia que daí adviria para a identidade e universalidade irlandesa? Mesmo os testemunhos do seu passado histórico, na sua contida dignidade, não suscitam diferenciações exclamativas de admiração e encantamento, desde a Christ Church Cathedral e St`s Patrick Cathedral, ao Dublin Castle e Trinity College. Há um culto pelo simples e discreto, pelo funcional, sem alaridos e deslumbramentos, nem megalomanias, a que não será alheio um passado não imperial e de ex-colónia inglesa, ao invés de nós, fundadores e perseguidores de impérios, de mentalidade imperial e de ricos, mesmo quando pobres. Quanto ao presente, é imperdoável não falar na agradável surpresa da visita à Guiness Storehouse. A exposição sobre esta cerveja, um símbolo internacional de marca, que acrescenta valor à marca Irlanda, é um máximo. Distribuída por sete pisos, criativos em novas tecnologias, com conseguido impacto formativo e visual, é exemplo a reter. Não só em termos de sedução, mas também de receitas. Excluídas, desde logo, urbes emblemáticas como Nova Iorque, Paris, Londres ou Roma, Dublin não rivaliza com outras suas congéneres capitais europeias, como Lisboa, Praga, Viena ou Budapeste, de igual modo em países de pequena ou média dimensão territorial ou populacional. Não rivaliza nem ultrapassa Estocolmo. Supera, para mim, e nesta perspetiva, Helsínquia. Rivaliza com Oslo. Apesar das suas particularidades, e cada caso ser um caso, aproxima-se mais de urbes metropolitanas não capitais, como o Porto. Por sua vez, os irlandeses são prestáveis e simpáticos. Dos povos nórdicos, pelo que conheço, os mais parecidos com os do sul da Europa. Mais alegres e prestativos que os ingleses. A comida é melhor que a incarateristicamente usual alimentação inglesa. Há quem veja grande semelhança entre Portugal e a Irlanda. Fosse a Irlanda solar e de bom clima, em vez de chuvosa e fria, substituísse a cerveja pelo vinho, aí teríamos um novo Portugal e o inverso. Trata-se de uma caricatura, de um exagero, com o seu quê de real, ressalvadas as distâncias. Têm como património comum o mar, porque ambos países marítimos, a que acresce a insularidade irlandesa. A língua de Camões, Pessoa e Machado de Assis foi-me audível, várias vezes, de turistas e emigrantes portugueses e brasileiros, essencialmente via Brasil. Mas não a vi escrita, nem a ouvi falada, em avisos e informações de autocarros turísticos e na visita que fiz à National Gallery de Dublin. Em alemão, francês, inglês, italiano, castelhano, japonês, por vezes em holandês e sueco, isso sim. Mas não em português… Dia 12 de Agosto de 2013, na National Gallery, tentaram disponibilizar-me um áudio-expositivo em castelhano, dada a ausência no meu idioma. Tentando supri-la com uma educada e satisfeita observação: “Sir, please, but we have spanish”. Lamentando a omissão, optei pelo inglês. Expus as minhas razões, compreendidas pela minha interlocutora, que se mostrou recetiva a que as expusesse por escrito, o que fiz em inglês. Sendo o português um dos idiomas mais falados, com perspetivas crescentes de internacionalização, à frente do alemão, francês, italiano, holandês, sueco, japonês, russo, polaco, entre outros, manifestei o desejo que ocupasse o lugar que merece, por direito próprio. No dia anterior, no início da visita à Guiness Storehouse, foi o castelhano a língua sugerida, num opcional roteiro em grupo, por falta de guias de português. Agradecendo, eu e demais família recusámos, argumentando que a omissão do nosso idioma não era suprida por outro, por muito respeito que nos merecesse. A termos que optar, ser-nos-ia mais compreensível o inglês. Fizemos a visita familiarmente com o benefício de nos ter sido facultado na bilheteira um mapa em versão portuguesa do percurso, que também existia na Christ Church Cathedral e St`s Patrick Cathrdral. A Nando e o café Costa surgem como marcas e nomes nacionais globalizados de emigrantes lusos de sucesso. Progressos graduais que não justificam a indiferença geral de emigrantes e turistas lusófonos quanto à língua comum. Senão mesmo de um complexo de inferioridade (o que assim aparenta ser, pelo menos no que toca à maioria dos portugueses). Curiosa a tentativa de renascimento do gaélico, notória no aeroporto. Embora não seja pelo idioma, mas sim pelo catolicismo, que a República da Irlanda, vista do exterior, mais se particulariza, por confronto com o restante norte europeu. Em particular em relação ao vizinho Reino Unido, de que foi colónia. O que não inviabilizou a adoção e aproveitamento do inglês como língua de projeção global por excelência. Com notórios benefícios para o anterior tigre celta, não obstante a crise que vive. De Dublin memorizo ainda um impressivo Caravaggio (Prisão de Cristo) e um retrato de mulher, de Goya, na National Gallery. Ou O`Connell Street, principal eixo de trânsito norte-sul, tido como a grande avenida, conquanto com largueza na largura e enfezada no comprimento. A que acresce um tempo muito marginal em chuva, aprazível para a ilha, tornando a estadia mais confortável, afastando os receios não confirmados, neste contexto, de que na Irlanda chove todos os dias. Enfim, duas opções são plausíveis quanto a um eventual regresso. Uma é não regressar, ficando Dublin em arquivo, dado outras urbes serem mais encantatórias, excitantes e vanguardistas, com novidades e atrações permanentes para ver, rever e voltar, às quais se regressa sempre. A alternativa é regressar, saboreando Dublin sem pressas, ao sabor do momento, tirando partido do já conhecido, a conhecer ou a rever, sem falta de tempo, nem tempo perdido. Sem encantamentos exaltantes nem deslumbramentos exclamativos, eis Dublin no seu modesto esplendor. Impressões pessoais de Dublin em Agosto de 2013 Texto original revisto em 29 de Junho de 2015 Joaquim Miguel De Morgado Patrício