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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR


Cinema - subjetividade e transcendência


"Objectivity would be to record what’s going on in the street and even then you wouldn’t see everything.", Agnès Varda, 1962 (Kline 2014, 5)


Em Le Celluloïd et Le Marbre (1965) de Éric Rohmer, o pintor Victor Vasarely afirma que toda a ação que leva à entropia e que caminha para a não informação, pertence à desordem, e tudo o que é construtivo em método e em objetivo pertence à ordem. Por isso, na sua opinião, pode ordenar-se a desordem da natureza no cinema e assim propor uma obra de arte totalmente válida e perfeitamente organizada. Vasarely acredita que o cinema é assim uma organização do real que consegue juntar valores extremamente distintos - valores plásticos, cénicos, sonoros, mas também musicais, cinéticos e rítmicos. O cinema é uma obra totalmente aberta sobre o mundo.


Já o escultor César Baldaccini explica que a cultura não se espalha só através dos livros, mas também através das imagens e o cinema permite em grande medida que isso seja possível. Para este escultor, o cinema é deste modo, um meio, é um instrumento que permite materializar uma forma de olhar, de selecionar, de reinventar e de mostrar o que não é visível para muitos. O cinema é muito real, e diz respeito à vida do dia a dia e por isso pertence a todos.


De facto, no texto Architecture d’ Apocalypse (1955) Éric Rohmer escreve que o cinema constrói a sua ficção com o real. Na sua opinião, o cineasta é assim um demiurgo, é alguém que encontra um princípio que ordena elementos preexistentes. O cinema é assim uma espécie de criação que acontece em segundo grau - acontece não através do contacto primeiro com a matéria (como acontece com o pintor). Para Rohmer o cineasta tem em mãos uma tarefa paradoxal, que é a de construir a maior verdade através do mais poderoso efeito da mentira.


Agnès Varda em entrevista a Pierre Uytterhoeven, Agnès Varda from 5 to 7 (1962), também explica que a pura objetividade não existe em cinema: “Objectivity would consist in a series of general uncontrolled shots without any editing” (Kline 2014, 5). Objetividade em cinema implica sempre uma forma específica de subjetividade.


Joaquim Sapinho em entrevista a Paula Moura Pinheiro (Câmara Clara, RTP2, 11.11.2012) afirma que ao fazer cinema a realidade sobrepõe-se sempre à imaginação - é o espaço e as evidências do espaço que criam uma história. O cineasta é a testemunha do que já está construído. A natureza é a mediadora entre o ser humano e o divino. A natureza é a própria manifestação divina. Para Sapinho, o filme é um trabalho realmente documental. É a articulação de documentos da realidade no sentido de criar perspetivas e ângulos sobre aquilo que se está a testemunhar, de modo a serem reveladores de uma perturbação e de uma perplexidade. O principal problema do cinema está em filmar aquilo que não se vê, o interior de algo não se pode filmar diretamente. Sapinho diz que ao cinema interessa só filmar o invisível. E a realidade é uma manifestação absoluta do invisível, é a única coisa que se sabe acerca do que não aparece m. Por isso o transcendente não está no nada, no silêncio, no vazio, no puro e no limpo mas sim em tudo, no cheio, no barulho, no movimento constante, em toda a vida concreta. Aquilo que aparece, aquilo que se manifesta e se vê é já o transcendente. O ato de filmar é uma constatação dessa transcendência. A câmara é o meio por excelência que permite aceder ao invisível. Mas o mais paradoxal é que a câmara vê exatamente o que se está a ver, é um ato aparentemente inútil, a não ser que seja usada para constatar o que existe, para fazer sentir que esta vida é a única vida que há e que esta vida é tudo.

 

Ana Ruepp