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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


161. O MELHOR E O PIOR NAS ARTES E NA VIDA


“É muito libertadora a facilidade, sempre que ouvimos a música de Wagner, com que nos esquecemos da maldade do compositor. A razão é simples: a música é muito boa. Deve haver uma escala de correspondências morais entre os defeitos humanos de um artista e as qualidades artísticas das coisas que criou. Se foi - ou é - muito má pessoa, as obras de arte têm de ser muito boas. Wagner tinha muitos defeitos para compensar, mas compensou-os.


Também há artistas que são humanamente muito bons, mas que artisticamente são infernalmente maus. Talvez sejam bonzinhos por serem tão maus. Nisso, parecem-se com os bons artistas que acham graça serem mauzinhos como as cobras.


Talvez a maldade tenha uma tabela de preços: quanto maior, mais se tem de pagar em obras de arte”
(Miguel Esteves Cardoso, A Tabela de equivalências, Público, 22.01.24).     


Eis um exemplo de um bom compositor e de um mau cidadão. Do que há de melhor na música, a maior de todas as artes, para muitos, e o que há de pior na sua vida, conhecida pelo seu anti-semitismo, prosseguido por descendentes (o que não significa que, o que com acutilância, ironia e perspicácia é citado, seja adequadamente extensivo e científica e diretamente proporcional à maioria dos criadores).     


A História está cheia de pecados e vícios privados, tantas vezes horrendos e ocultos, de homens e mulheres das letras, ciências e artes em geral que foram e são pessoas canonizadas e consagradas pela sua obra, mas desaconselháveis, maus exemplos ou desprezíveis em função de uma moral pública e legal vigente, em convivência com sórdidas histórias de família.


Pergunta-se: pode o autor ser menos avaliado do que as ideias que defende enquanto indivíduo, pessoa singular ou cidadão comum, separando a obra do seu criador?


Considerando que uma obra vale e deve valer por si, ao arrepio das opções pessoais do seu autor, do politicamente correto ou das políticas que a divulgam ou promovem, sempre entendemos que pode e deve separar-se o valor intrínseco da obra do seu criador, quando falamos de criação artística, por exemplo.   


O que não exclui ser legítimo saber o essencial da biografia dos criadores, alguns tidos por génios ao pretenderem ajudar a regenerar, revolucionar e alterar a natureza humana, o que nos leva a concluir que o mundo não pode ser apenas modificado e remodelado pela força do intelecto, das ideologias, ideias e conceitos, havendo que averiguar e examinar de perto a vida das pessoas, in casu, dos autores das coisas criadas.


Sem esquecer que a arte é um espaço de liberdade onde tudo é possível, onde podemos colocar o que há de melhor e pior em nós à revelia do sistema, em que esse melhor e pior é parte de quem somos como seres humanos evoluíveis, defectíveis e perfectíveis.


09.02.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


136. AGARRAR A VIDA, ANTES QUE ESCAPE…


Notícia recente refere um casal canadiano a dar a volta ao mundo, há um ano, com os quatro filhos, antes que três deles percam a visão.   


Em 2019, diagnosticou-se que três, dos quatro irmãos, sofriam de uma condição genética degenerativa, com perda progressiva da visão, sendo os pais aconselhados, por um especialista, para encherem os filhos de memórias visuais antes que ceguem, via fotografias, livros de imagens, vídeos, levando-os a pensar em grande: fazer uma viagem à volta do mundo, durante um ano, proporcionando-lhes a experiência de uma vida enquanto pudessem ver.       


Embora regularmente viajantes, esta viagem tornou-se uma necessidade vital, pelo que viajaram à volta do globo em 365 dias, mostrando-lhes o máximo e melhor, para ficarem com uma memória visual rica em diversidade, intensidade e emoção. 


Em vez de verem, por exemplo, um elefante num livro, por que não ao vivo, preenchendo a sua memória visual com as mais belas imagens?     


Por lugares exóticos e longínquos, a viagem começou na Namíbia, onde viram elefantes, girafas e zebras, seguindo-se a Zâmbia, a Turquia, a Mongólia, a Indonésia, o Nepal e outros lugares.


Esta antecipação real da viagem, arquivada e transferida para uma permanente memória visual, compensadora e redentora da perda, pode ter um efeito revigorante futuro, ao evocá-la na memória, pois há vivências testemunhadas na natureza que nos acompanham pela vida e, sempre que vindas à consciência, podem ser uma fonte de alívio e de combate às dificuldades do presente, por maioria de razão, presume-se, para em quem persiste a ameaça de ficar invisual. Ainda que se inquira o porquê deste sofrimento, dado nos parecer sem sentido tal cegueira, por nos ser inacessível a que lógica obedece o universo.   


Embora expectável que ceguem até à meia idade, resta a esperança de que a ciência, um dia, encontre a cura, agarrando a vida, antes que escape, através do êxtase e fascínio de   memórias da vida real transferidas e armazenadas no memorial estritamente visual e, pelo menos, antes da chegada da senhora dona morte.


07.04.2023
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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   Fotografia: Torre de Belém / Copyright: © 2016 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

 

135.   VIVER, VIVENDO A “NOSSA INTEMPORALIDADE”

“Enquanto vivo esta vida, como poderia suportar deixá-la?
Tenho ainda, sinto, tanto para fazer. Sinto sempre que vivi tão pouco. Isto deixa-me pensativo, mas não triste, e foi destes pensamentos que surgiu Ikiru”
.

Palavras do cineasta e realizador japonês Akira Kurosava, sobre o seu filme “Viver - Ikiru”, uma reflexão sobre a vida, a existência humana e o seu sentido, tendo como protagonista um funcionário público, em fim de carreira, vivendo de modo vazio e burocrata o seu trabalho, numa secretária de papéis e canetas, cujo serviço, no decurso de décadas, é de mera rotina, até ao dia em lhe é diagnosticado um cancro do estômago, alterando-lhe a perspetiva da sua vivência.

Baseado nesta película, surge o mais recente “Viver - Living”, realizado pelo britânico Oliver Hermanus, sobre um funcionário que abraça e vive em pleno a burocracia, imerso em papelada no escritório surgindo, entretanto, uma doença fatal que o move a fazer uma retrospetiva do seu viver, tentando alcançar a satisfação e chegar à redenção nos poucos meses que lhe restam.

Começa a “viver” numa entrega aos prazeres fáceis, que o levam a uma autodestruição e a descartá-los como solução, acabando por ter uma revelação ao decidir deixar um legado para as gerações vindouras: a construção de um parque público para crianças, valendo-se do seu percurso profissional e saber acumulado, ultrapassando burocracias de que fez o culto e o enterravam no seu labor diário, dotado de uma energia vitalizante que o compensou, ajudando-o a compreender o significado da vida.

A mensagem geral de “Viver” universaliza-se agarrando a vida e dando-lhe um sentido, antes que fuja, porque insuficiente ter um bom emprego e rendimento, uma família feliz e filhos que dão continuidade ao nome, o que não recompensou, na velhice, o intérprete principal, já viúvo, voando o filho para a sua própria vida, ficando sozinho e piorando, sentindo-se irrealizado pessoalmente.

Não chega acumularmos trabalho, riqueza e títulos, há que encontrar um equilíbrio entre o mero viver e deixar algum legado, a “nossa intemporalidade” transposta para a “intemporalidade da condição humana”, com a convicção de nada ser mais destruidor de vidas humanas que a ideia fanática de sermos perfeitos, “magníficos” e “sublimes” a fixarmo-nos numa única coisa, em “sabermos” apenas uma coisa muito importante (como o “ouriço”), dado sermos imperfeitos e mais fãs da diversidade e dos valores mais prezados da nossa existência, vários e nem sempre compatíveis, “sabendo” muitas coisas (como a “raposa”).

Somos imperfeitos, e também perfectíveis.  

 

31.03.21
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


122. (IN)TERMINÁVEL MOVIMENTO ENTRE VIDA, MORTE E NATUREZA


Schopenhauer defendia que os pensamentos humanos pouco podem contra a força da natureza. O ser humano crê ser o seu centro, do mundo e do universo, o que faz com que a ideia de morte, que é certa e não muito distante, não o perturbe, vivendo como se o pudesse fazer eternamente, como se fosse imortal.     

Acrescenta, porém, que à natureza não interessa o indivíduo em si, mas a(s) espécie(s), pelo que investe primordialmente na sua conservação através de uma pujante produção de sementes ou por uma generosa fecundidade. 

Assim, no momento em que pensamos na morte, deixamos de ser as pessoas individualizadas e autónomas que éramos e identificamo-nos, a partir daí, como um dos elementos de uma espécie, tornando-nos imortais, dado que uma espécie nunca morre e vive para sempre.   

Filtrando este pensar, é como dizer que o ser humano labuta, labuta sem parar, e a matéria, o tempo e a vida movem-se em perene movimento e nada perdura, muito embora o que chega e vem depois não seja diferente do que já findou.   

Morremos, os nossos descendentes continuam e são os sucessores das consequências e resultados do nosso trabalho, dos nossos ganhos e erros. Há um infindável movimento de ciclo, em que humanos, animais e coisas nascem e morrem, dia após dia, ano após ano, século após século e assim sucessivamente, sem se chegar a um resultado permanente, numa ininterrupção que transita de geração em geração, morrendo uns e vivendo outros, sobrevivendo a espécie.         

Só que há os fabricantes do terror absoluto, em que o poder nuclear pode destruir todas as espécies, incluindo a nossa e a própria natureza, em que o tido como adquirido e interminável movimento entre vida, morte e natureza pode ser transitório e terminável, sem vencedores nem vencidos.  

 

21.10.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A FORÇA DO ATO CRIADOR

Jacques Tati e a vanguarda do século XX.jpg

 

Jacques Tati e a vanguarda do século XX.

Como foi visto na semana passada, os filmes de Jacques Tati abrem os nossos olhos para o potencial cómico da realidade quotidiana. 

No livro ‘PlayTime. Jacques Tati and Comedic Modernism.’ (2020), Malcolm Turvey escreve que a ambição principal de Tati é a de nos ensinar, durante a duração de um filme, a perceber a própria vida, com mais alegria e poesia (e não importa o ambiente em que se vive) - porque se estivermos atentos o suficiente, estas podem ser encontradas em toda parte, a qualquer hora. 

Por isso, para Turvey, Jacques Tati partilhava interesses com grande parte da vanguarda do início do século XX, cujo objectivo era o de organizar uma nova aproximação à vida com base na arte. Tal como os dadaístas, surrealistas e outros grupos da vanguarda, Tati anseava por transformar a própria vida quotidiana, ao questionar a racionalidade do quotidiano burguês. Turvey argumenta que a pretensão vanguardista de Tati é a de superar o abismo entre a arte e a vida. Tati impregna e tenta curar o mundo e a vida, com comédia, para além da sala de cinema. 

“Deskilling, defined as the ‘persistent effort to eliminate artisanal competence and other forms of manual virtuosity from the horizon of both artistic production and aesthetic evaluation’, has been a major strategy in twentieth-century modernism, exemplefied, for example, by Marcel Duchamp’s usage of ordinary, found objects such as a urinal or bicycle wheel (readymades) as art works, or the Cubists’ incorporation of newspaper cuttings into their collages.” (Malcolm Turvey, 2020, p.100)

Tati faz assim desaparecer o comediante profissional. E tal como Duchamp e os cubistas ao usarem objectos do dia a dia, Tati usa incidentes cómicos, não intencionais, para (re)direccionar a atenção do espectador para o potencial cómico que existe já no mundo real à sua volta. 

Com Tati, aprendemos que a vida não é perfeita, imaculada e estruturadamente encenada. Tati cria os seus filmes de maneira a que todos os personagens sejam únicos e autênticos, mesmo quando se situam numa sociedade inautêntica, hostil e mecânica. 

Tati defende o verdadeiro indivíduo que não se automatiza, que hesita, que se engana, que continua livre e que aproveita todos os momentos para introduzir outras dimensões à vida através das imperfeições que o rodeiam constantemente. 

Tal como John Cage, Tati desejava que o verdadeiro espectáculo se iniciasse assim que os espactadores abandonasssem a sala de cinema, porque agora sim se encontram renovados e com um novo olhar sobre as coisas, os sons, os outros e o mundo.

“What I like is to observe the people because I do feel that in life, if you do watch all around, you begin to see the little everyday things in life that are unique in themselves (...) And what I have been trying with Hulot is to show that the things that happen to Hulot are the things that can happen to everybody. Not just to invent a gag for the audience - to be a good gagman - but to just show that this character, even waiting for an autobus, something unique and funny can happen to him.” (Malcolm Turvey, 2020, p.101)

 

Ana Ruepp

 

O ACASO NÃO COMANDA A VIDA…

 

CNC _ O ACASO NÃO COMANDA A VIDA.jpg

 

“A Borboleta Monarca faz durante a vida uma única viagem em sentido inverso do feito pela geração anterior, sem aprendizagem. Seria tal possível por acaso?

 

Publicamos a apresentação do Livro “Beyond Darwin”, de Miguel Ribeiro, ocorrida na última sexta-feira, no Centro Nacional de Cultura.

 

Edgar Morin tem ocupado uma parte importante do seu tempo na sensibilização para a importância da complexidade. Não é possível o desenvolvimento humano sem a força estimulante da aprendizagem e sem a recusa das explicações simplistas. Por isso, entende que uma atitude pessoal baseada na autonomia e na responsabilidade exige: prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; aprendizagem duma identidade planetária considerando a humanidade como comunidade de destino; exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva.

 

A obra de Miguel Ribeiro, que ora se apresenta, “Para Além de Darwin, a Hipótese do Programa” corresponde, no essencial, a estas preocupações. Tenho acompanhado com muito interesse este caminho reflexivo e disponho-me a falar da obra, apesar da sua dificuldade, em homenagem ao seu autor – e em nome de uma exigência humana, que é a de termos de entender os limites, refletindo sobre eles. Ao ler as páginas deste livro, começando na entrevista imaginária, e prosseguindo nas quatro partes: Uma Alternativa a Darwin, Universo, A Prova do Genoma, e Segundo o Prisma do Programa – senti-me muitas vezes transposto para antigas leituras de Teillhard de Chardin, em nome de uma audaciosa abertura de horizontes, já que as grandes interrogações sobre o mundo e a vida estão sempre dominadas por um véu de incerteza que não podemos nem devemos ignorar. E lembrando-me dos universos romanescos, devo recordar que esta obra tem o seu quê de extraordinário policial ou de um conto misterioso de Jorge Luís Borges. O autor me perdoará, mas senti-me em dados momentos na biblioteca de “O Nome da Rosa” de Umberto Eco, em busca dos segredos do universo, mas também nos estranhos labirintos em que as paredes se tornam desertos e em que o fio de Ariadne de Teseu parece tornar-se inútil.  

 

Há uma pergunta fundamental de que temos de partir para compreender esta obra de Miguel Ribeiro: Por que razão o acaso é incapaz de gerar complexidade? De facto, o primeiro obstáculo ao aparecimento do nosso universo pelo acaso é o conjunto de leis e constantes, que designamos como “coincidências cósmicas”. Para lidar com a questão destas coincidências, a teoria mais comummente aceite é que existem múltiplos ou infinitos universos. Ora tanto o darwinismo como a explicação da origem de tudo através de um programa correspondem à mesma lógica no que diz respeito à emergência e à evolução do universo e da vida. E tentemos explicar: se o acaso é incapaz de gerar complexidade, um programa torna-se indispensável para explicar o universo e a vida. Um programa, para Miguel Ribeiro, não é sinónimo de um Deus criador, mas um conceito indispensável para definir um sistema de informação que explica de onde vimos, como tudo começou e para onde vamos.

 

Para falar desse programa, temos de partir do segundo princípio da termodinâmica, segundo o qual a evolução de um sistema isolado (como o universo) tende para uma desorganização progressiva. Conhecemos o exemplo clássico do copo que se parte, mas não pode reconstruir-se espontaneamente. Afinal, sem um programa, a única tendência possível depois do Big Bang, seria a homogeneidade total, e nunca uma dinâmica evolutiva, tal como encontramos no cosmos. Para o autor, sem programa, a história do universo só seria compreensível na lógica termodinâmica se contada por ordem cronologicamente inversa, ou seja, desde o nosso universo complexo até às partículas que se seguiram ao Big Bang.

 

Importa, assim, considerar os conhecimentos das várias ciências que concorrem entre si para explicar o universo: a biologia, a química, a física ou a filosofia. O universo é, assim, uma máquina de movimento perpétuo, que segue “uma evolução para a complexidade por uma teia de eventos obedecendo ao princípio da causalidade”. Lavoisier tem razão: nada se perde, nada se cria, tudo se transforma… Deste modo se explica o universo como se fosse um computador ou uma máquina do tempo. Estamos não só perante a história do universo, mas também diante da explicação das leis, das constantes e das equações matemáticas com que lidamos, não como uma cadeia de acasos, mas como parâmetros de um software.

 

No diálogo do autor com Darwin, importa ainda perguntar sobre a seleção natural. Será a luta pela vida um elemento crucial? No entanto, para Miguel Ribeiro a seleção natural não explica a evolução da vida. Longe de um papel criativo temos apenas uma resposta natural. Há uma cadeia evolutiva, mas o que importa para o autor é contestar a ideia do acaso na origem do universo. É essa a base desta investigação e das intuições que comporta. Centremo-nos, por isso, na origem da vida. Para o autor: “a perspetiva dominante é a de que uma vez que a ciência consiga explicar o aparecimento espontâneo de estruturas/moléculas tão complexas como a membrana celular, os ácidos nucleicos e os aminoácidos, na presença de energia, a emergência da vida estaria essencialmente explicada”. Mas há muito mais a considerar – para haver uma linha de produção a funcionar é preciso que haja uma estratégia, um objetivo, uma direção, um caminho. A fábrica não se move espontaneamente. Também uma bactéria, uma planta ou um mamífero pressupõem um programa…

 

A analogia entre computador e universo torna-se importante nesta reflexão. E Miguel Ribeiro dá-nos uma metáfora: num jogo de computador, temos um diagrama: a corrente elétrica que alimenta o computador é um fluxo de eletrões, convertidos pelo programa em padrões de zeros e uns, transformados na projeção audiovisual no monitor. Do mesmo modo, o programa do universo converte objetos quânticos em padrões de átomos que o cérebro dos seres vivos transforma em perceção. Ora nem a projeção no monitor nem a nossa perceção revelam o verdadeiro substrato, a razão de ser – respetivamente padrões de zeros e uns e padrões de átomos e radiação. Tudo isso está antes…

 

Assim, deixando de lado as explicações religiosas e da ciência normal de Kuhn, descobrimos uma nova fronteira: a da organização do computador, defendida, entre outros, por Seth Lloyd e Nick Bostrom. Mas para abraçar coerentemente o universo como se fosse um computador, é necessário renunciar à premissa de mutação aleatória que obriga a aceitar o primado do acaso, na linha de Cournot. E eis o ponto nodal da obra e do pensamento do autor, numa tentativa de mostrar que a complexidade é incompatível com o acaso e propor um modelo do surgimento e evolução da vida consistente com o universo visto como caminho de informação. Não, não o acaso que comanda a vida…

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

57. DA SEGURANÇA NA VIDA À LIBERDADE NA ARTE

 

Há valores essenciais que permanecem sempre os mesmos. 
Sejam éticos, morais, consuetudinários ou jurídicos, permanecem semelhantes no decorrer dos séculos.   
São exemplos o não matar, não roubar, não agredir, não violar, não causar sofrimento.
Consoante a época e o seu contexto, assumem hierarquias diferentes, significados sociais variáveis e novas prioridades. 
Desde o teocentrismo ao antropocentrismo, do século das luzes aos tempos hedonistas e utilitaristas, incluindo a era atual, dominada pela felicidade e pelos direitos subjetivos, tais valores subsistiram continuamente, fazendo parte do sistema e sendo aceites como politicamente e socialmente corretos. 
Mesmo que as normas vigentes sejam minimais, plebiscitadas e não sacrificiais, e não maximalistas e sacralizadas, estamos longe de um hipotético grau zero de valores e de uma total libertação da teoria da culpa. 
Houve e há sempre um núcleo estável e seguro de valores geralmente aceites, a que podemos adicionar a honestidade, a proibição da crueldade e da violência em geral. 
São parte integrante da nossa vida em segurança, da seguridade na nossa vida. Integrando o sistema como maioritariamente aceites, não há alternativa. 
Ganhou o sistema, o politicamente e socialmente correto nas nossas vidas.
Menos na arte.
Porque a arte é um espaço onde tudo é possível em liberdade. 
Nela podemos colocar o melhor e o pior de nós.
É a arte pela arte em liberdade pela liberdade. 
Mesmo quando não se ganha ao sistema, ao status quo, ganha-se em espaço de liberdade, de criatividade, inventividade e no ir mais além. 
Mesmo se impactante e chocante, isso não significa que quem a quer usufruir não a racionalize e interprete com sentido crítico, sabendo distinguir entre a ficção e a realidade, entre a fantasia ou ilusão do onde tudo vale e é possível e o tido como correto e em segurança no dia a dia das nossas vidas.     

 

26.06.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


53. A VIDA É MACROSCÓPICA

Macroscópico é sinónimo de megascópico. 
E antónimo de microscópico.
A visão do mundo microscópico é fazível com microscópios. 
A visão do mundo macroscópico é feita a olho nu ou por telescópios.
O microscópio amplia imagens de coisas muito diminutas ou reduzidas. 
O megascópio projeta sobre a tela a imagem aumentada do objeto.
O telescópio amplia imagens de objetos situados a grandes distâncias no universo.
A visão humana comporta a microscópica e a macroscópica.
Os corpos visualizados a olho nu integram a visão macroscópica.
O olhómetro é o seu instrumento de medição natural.
Esta visão física e material das coisas adapta-se a outras valências da vida humana.
Em filosofia uma visão macroscópica refere-se a uma conceção ampla ou abrangente.
O mesmo sucede quando se tem uma mundividência macroscópica da vida.
O planeta em que vivemos é diminuto, a brevidade da vida humana um bem escasso.
O melhor remédio é uma perceção larga da vida e do seu lugar no universo.
Trabalho, família, afeição, amor, amizade, esforço, espírito de sacrifício, são parte dessa visão macroscópica, como a alimentação, saúde, habitação, mas não chegam. 
Há também os interesses ou prazeres exteriores ou interligados ao labor diário, que não exigem prontas decisões, não absorvendo as faculdades exaustas por um dia de trabalho.
A incapacidade de ter interesse por tudo aquilo que não tenha uma importância prática na vida, causa um gosto de não viver. 
O insistir obsessivo no êxito de competição, no sentimento de triunfo em que só é devido respeito ao vencedor, no êxito pelo êxito, no dinheiro pelo dinheiro, no consumir impulsivo, tem um preço se exclusivo ou excessivo, pode causar aborrecimento e tédio, se incapaz de utilizar de modo construtivo e inteligente os momentos de lazer.
A vida é curta e não nos permite ter acesso e interesse por tudo, mas é fundamental que haja sempre interesses, essenciais e subsidiários, adequados e proporcionais, para a preencher, e quanto menos à mercê do destino melhor, dado que, perdendo-se um, o ideal é o recurso imediato a outro. 
Mesmo que se compare o cérebro humano a um computador, que se vai degradando com o tempo até não funcionar, em paralelo com a curva descendente da existência de cada um até à morte, esse mesmo cérebro, à medida que se aproxima do fim, afeiçoa-se e aprecia cada vez mais, tantas vezes, a beleza do mundo e as coisas belas da vida, como a música de Bach, de Wagner ou de Chopin, uma pintura, uma leitura, ou o silêncio.
Porque a vida é mais abrangente e larga que o microscópio. 
É macroscópica.

 

29.05.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

DIOGO FREITAS DO AMARAL (1941-2019)

freitas do amaral.jpg

 

“I've lived a life that's full
I've traveled each and every highway
But more, much more than this
I did it my way”
Vivi uma vida cheia
Viajei por todas as auto-estradas
Mas mais, mais do que isso
Fi-lo à minha maneira

 

     e omitiu de propósito

And now, the end is near
And so i face the final curtain
Agora, que o fim está perto
E que enfrento a cortina final

 

Não o fez por esquecimento - escreveu-se -  mas, certamente, para evitar a exposição pública de constrangimentos da plateia de amigos que assistia ao lançamento do seu último livro no Centro Cultural de Belém.

As feiras de outras vaidades deixou pelo caminho na hora certa. A poesia, soube-o a tempo, foi a virtude reencontrada.

É necessário, digo, o respeito pela cedência da força face à doçura. Por aí o reencontro com a delicadeza em que se faz saber a nós mesmos que o domínio do nosso sentir só se faz no sentido íntimo do outro. É o único progresso que nos humaniza porquanto por aí se partilham as solidões e as poeiras da vida.

O amor como todos os sentires, abre fendas, e a ideia de um recomeço implica sempre a sua transformação numa associação, enfim, será quando um género de fraternidade das armas da política, da economia, da justiça, dos estatutos, dos compromissos, da pobreza, fica desamparado pois dele em nós, não se exigiu o suficiente e chegou a nossa partida!

Já não é possível recomeçar-se mesmo que se recusem falhas, fazê-lo teria sido o segredo maior da coragem, a adesão da inteligência à verdade. Diria mesmo que para a abordagem da razão, talvez nem uma alma de criança baste; tudo é embrionário no fim. Sentiremos então que encontraremos tudo pelo deslumbramento das fronteiras que afinal se não traçam?

Se assim for, o amor venceu a morte e esta é doravante oferecida numa participação eterna na vida.

Se assim for, não há justiças compensadoras noutros locais que não aqui. A paz no mundo tem este preço, bem-haja quem teve no coração uma moral que soube o quanto a equidade respeita a dignidade humana e se funda numa sociedade livre.

 

   Teresa Bracinha Vieira

 

CRÓNICA DA CULTURA

 

A VIDA, O SEU TERMO, O SONHO, A NÃO ESPERANÇA: EIS A SUA MATÉRIA

 

A desproporção de forças infetantes que se reproduzem sucessivamente, a grande praga que dizima os seres, que carcome as rochas, os ares, as águas e vaza os lixos na vida, refugo letal onde se adormece um sono, assim a Absurdidade comunica os seus poderes termiteiros e mercantis, somatórios ávidos do ter.

 

A profundidade a que todos, de um modo ou de outro, permitimos que no mundo se venceria pela força do que constrange e obnubila, permitiu que os domínios interditos de quem mata a espessura da vida fosse contada, e mesmo exposta, sem que uma multidão em número e vontade excedesse a soma das forças de todos os que fizeram chegar o mundo ao nível do lixo como desígnio.

 

Todavia as silenciosas contas bancárias dos responsáveis pelo suposto não saber dos atos criminosos que provocaram e provocam, elevam os rendimentos ao limite superior do possível e reduzem ao mínimo qualquer custo de manutenção do esconder dos seus atos, agindo como inimputáveis pois a máquina construída os protegerá passo a passo.

 

A terra continua a ser devastada pela violência dos monstros que alcatroam mandos de morte com a finalidade de que, à superfície, o cenário tenha brilho e atraia aparências de vidas que não denunciam o simulacro do que lhes é dado viver já que no imediato nem o reconhecem como tal.

 

Na fotografia, este menino dorme e desconhece que também lhe simularam o céu sob o qual adormeceu.

 

Sonhará este menino com o abrir de uma caixa própria, uma caixa de algo que lhe é muito precioso e o embala até a encontrar vazia e do sonho acordará num sem número de pesadelos reais?

 

Desconheço as contabilidades que se fazem neste pseudo mundo que troca capital por lixo e no qual adormecem crianças em nojentos colchões que boiam nas lixeiras, lixeiras criadas pelos manipuladores dos fátuos fogos que obscurecem até o futuro das luzes das estrelas.

 

Promove-se a guerra de todos contra todos: assim Hobbes, assim o emaranhamento das corrupções, teia de submissões articuladas no plexo do lixo.

 

Teresa Bracinha Vieira