Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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As formas básicas de poder social que podem operar à escala da família ou a tipos de ampliação de domínio político, apregoam amiúde as virtudes das suas opções de estar, num pregão coletivo de uma verdade que está sempre deles mais próxima, apesar de nunca afirmarem expressamente tal assunção de vizinhança
O modo como cada um desenvolve o seu eixo de poder social, gera uma espécie de sistema de irrigação das ideias, em jeito de torniquete, e em torno de uma ordem que muito tem de administrativa, supervisionando tudo o que lhes pode interessar com o juízo único e convicto, de que será mau se lhes escapar alguma avocação.
Na medida em que o pregão das virtudes se pode passar a fazer por silêncios tácitos ou preposições q.b., ou até expresso pela boa educação e pelo prumo da mesma, bastando que se aparente, ou deveras se creia ser inquilino pela via mais confortável, dos princípios pela maioria aceites como aprazíveis e logo as concordâncias aos centros de poder se estabelecem em paz à falta de melhor.
Esta postura é outra das que mais expõe a aceitação do pregão das virtudes.
Ao aprofundarmos esta questão, verificamos que a mesma combinação de características se encontra no mesmo perfil de gentes, não se questionando por que razão tem de ser assim para que tudo funcione, e sendo que deste modo, o que funciona, é o decorativo debate sobre a desigualdade nas sociedades, admitindo, expressamente ou não, que tudo o que é altamente problemático sempre se manterá.
Então, uma resposta possível ao pregão das virtudes é o de o confrontar com a similitude do poder, que paga ao barbeiro para cortar o cabelo ao escravo, ainda que depois o alimente.
Este o compromisso ou a imagem de um dinheiro de terrível equivalência, sendo que a ambos há que romper.
1. Não me parece que a virtude tenha hoje grande cotação. O que actualmente parece ser mais valorizado tem a ver com o ter, o prazer e o poder, a qualquer preço. Daí que, quando se está minimamente atento, se veja o que se vê — apenas exemplos: a calamidade da corrupção; o estado da Justiça; bancos a afundar-se e os contribuintes a pagar; por mais apoios que cheguem da Europa, milhões, mais milhões, mais milhares de milhões, parece que caem num abismo sem fundo e o que é facto é que continuamos sempre na cauda (onde estão a organização e o investimento inteligente?); a irresponsabilidade pelos erros cometidos: alguém conhece alguém que se assuma como responsável (capaz de responder, que é isso que quer dizer responsável) por um erro ou mesmo um crime?...
Degraçadamente, a virtude ou uma pessoa virtuosa, de virtudes, parecem hoje associadas a beatice e menoridade. Mas isso não é de modo nenhum correcto, mesmo de um ponto de vista meramente etimológico. De facto, virtude — do latim vir, virtute —, é, como pode ler-se no Dicionário de Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, “o conjunto das qualidades que dão valor ao Homem, moral e fisicamente; carácter distinto do Homem, mérito essencial, valor característico, virtude, qualidades morais; qualidades viris, vigor moral, energia, coragem, valentia; a virtude, a perfeição moral.”
Virtude é uma força ou energia que actuam, potência activa, capacidade ou poder de agir. Mas, entenda-se, para evitar equívocos: esse poder é um poder específico, isto é, a qualidade própria de um ser: por exemplo, se o bom remédio é aquele que cura bem, bom veneno é aquele que mata bem. Através do exemplo do veneno, percebe-se que, como explica o filósofo André Comte-Sponville no seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, uma obra com assinalável êxito editorial, inclusivamente na tradução portuguesa, virtude é poder, e o poder basta à virtude: pedimos a alguém que nos desculpe pela nossa ausência, pois, em virtude de uma doença, não pudemos comparecer, e também é claro que uma faca excelente, nas mãos de uma pessoa má, continua excelente; mas não faz excelente a pessoa nem a moral. Porquê? A virtude de uma pessoa é o que a realiza humanamente, é o poder que afirma a sua qualidade própria, isto é, a sua humanidade, como dizia Montaigne: “Nada existe de tão belo e legítimo como ser Homem bem e devidamente”. A virtude é a capacidade para agir segundo a exigência de humanidade: “é o que também chamamos as virtudes morais, pelas quais uma pessoa parece mais humana ou dotada de mais qualidades”, a ponto de, sem elas, ser qualificada de inumana. Numa palavra, praticar a virtude é estar de acordo com a humanidade em nós e dignificá-la.
No sentido mais estrito, as virtudes são as potências activas propriamente humanas, que precisam de ser exercitadas para se tornarem um hábito operacional que as capacite para a acção recta e perfeita, ajustada às exigências mais profundas da natureza humana e tornando o Homem bom pura e simplesmente. As virtudes enquanto inclinação adquirida para o bem ou hábitos operativos bons formam como que uma segunda natureza no Homem, e vão ao encontro da definiçãio clássica proposta por Aristóteles: “Virtude é aquilo que torna bom aquele que a possui e torna boas as suas obras”.
Remando contra a corrente — repito: quem é que se atreve hoje a falar da virtude e em virtudes? —, A. Comte-Sponville viaja por dezoito virtudes: a polidez, a fidelidadade, a prudência, a temperança, a coragem, a justiça, a generosidade, a compaixão, a misericórdia, a gratidão, a humildade, a simplicidade, a tolerância, a pureza, a doçura, a boa-fé, o humor, o amor. Ah, que falta fazem elas todas! Como espinosista consequente, A. Comte-Sponville não fala da esperança — não dizia Espinosa que a esperança, por ser carência (ainda não se tem o que se espera), é inquietação, ignorância e impotência?
O cume da virtude é o amor, porque aí se manifesta a força máxima da alegria de ser e do ser. Claro que, se se ficasse no eros, não se superaria o perigo da armadilha permanente e consequente tristeza que reside na identificação de sexo e amor — por isso, a castidade também é uma virtude, na medida em que o abuso da sexualidade é condenável. Há eros, mas há também a philia (amizade), que se define por três substantivos: benevolência, beneficência e, sobretudo, confidência, e agapê (o amor para lá do eros e da philia, amor universal e desinteressado, que ama os próprios inimigos). Deus é Amor, pois é a identidade da Vontade infinita e do Bem infinito. Que alegria maior para o Homem do que estar de acordo com o ser, querer que exista tudo quanto existe, regozijar-se com a existência de tudo quanto é, fruir a sua bondade? Não constitui uma bênção ouvir alguém dizer: “Sou feliz porque existes, é bom que existas”? O que seria a minha vida sem ti? Em última análise, a fé cristã em Deus baseia-se na experiência de que, em última análise, é Ele que justifica a nossa existência: valemos para Ele, Ele reconhece-nos, dá-nos valor.
Que outra coisa é o amor senão esta bênção, esta alegria? Embora exigentes, a virtude e as virtudes não são um fardo e um constrangimento. Pelo contrário, quando se pensa adequadamente, vê-se claramente que são qualidades, valores morais vividos e encarnados, cujo fruto é a alegria, o contrário da tristeza. Como escreveu Espinosa, a virtude só pode ser força de espírito e, assim, sempre alegre!
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 26 JUNHO 2021