Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O programa “Visita Guiada” da RTP-2 de Paula Moura Pinheiro regressou, partindo, em boa hora, até à Ilha de Santiago, à Cidade Velha da Ribeira Grande em Cabo Verde. Liga-me uma relação de especial afeto a esta cidade. Acompanhei com muito gosto e entusiasmo a sua classificação pela UNESCO como património da humanidade em junho de 2009 e não esqueço o empenhamento pessoal do Presidente Pedro Pires, o entusiasmo de Mário Soares, que depôs formalmente a favor dessa classificação, do mesmo modo que a defesa dessa causa pelo antigo Diretor-Geral da UNESCO Federico Mayor. Lembro ainda o papel ativo desempenhado pela Embaixadora Graça Andresen Guimarães, então representante de Portugal na Praia, bem como o incansável papel desempenhado pelo grande amigo Conselheiro José Carlos Delgado, meu antigo aluno, então na presidência do Tribunal de Contas de Cabo Verde. E desejo que as duas “visitas guiadas” agora apresentadas sejam oportunidade para aprofundar a qualidade patrimonial da Cidade Velha.
Os testemunhos do arqueólogo André Teixeira e do meu amigo António Correia e Silva fizeram luz sobre a importância fundamental da Ribeira Grande como placa giratória das navegações do Atlântico, o último grande oceano a ser conhecido pela humanidade. E a Cidade Velha foi a primeira fundada por europeus ao sul do Saara, dois anos após a morte do Infante D. Henrique (1462), a quem tinha sido atribuído por D. Duarte o senhorio da ilha. A abundância de água e as facilidades para a agricultura na foz da Ribeira Grande foram determinantes na escolha do lugar para centro do povoamento, servindo depois de apoio às rotas marítimas, no abastecimento de água e de frescos e na possibilidade de se efetuarem reparações dos navios. O conjunto monumental da Cidade Velha envolve o altaneiro Forte de S. Filipe, base do sistema defensivo da cidade; a ruína da Sé Catedral construída, sob as ordens de Frei Francisco Cruz, terceiro bispo de Cabo Verde, entre 1556 e 1700, mas com vida curta, já que foi destruída pelo ataque do corsário francês Jacques Cassard; as ruínas da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída depois da chegada dos primeiros colonos e ainda a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, do século XV, onde pregou o Padre António Vieira em 1652, que se admirou com a qualidade artística encontrada.
Apesar de ter deixado de ser capital em 1769 em benefício da Praia, nota-se ainda na Cidade a estrutura da urbe antiga – com o Largo do Pelourinho, ponto de encontro de quarteirões irregulares, mas também base de um tecido urbano de desenho claro nas Ruas da Banana e da Carreira, abrindo para os bairros de S. Pedro e S. Brás, com as ruas da Horta Velha e Direita da Cidade. A feitoria de Santiago foi até à fixação em S. Domingos do Cacheu na Costa da Guiné em fins do século XVIII a feitoria portuguesa de África, sendo escala das navegações do Atlântico, porto de abastecimento alimentar e da navegação, reexportador das mercadorias africanas com destino à Península Ibérica e às Índias de Castela. Daí a presença de mercadores andaluzes ao lado dos portugueses, numa partilha ibérica. A evolução cultural e económica é de um grande interesse, pela constituição de uma sociedade com uma rica marca própria, evidenciada na evolução da língua portuguesa e dos crioulos, sendo levados a crer que os africanos se serviram do português, embora o tenham adaptado a uma estrutura gramatical próxima das suas línguas de origem. O híbrido cultural que encontramos tem, assim, uma configuração múltipla, não só fruto do encontro entre o branco e o escravo, mas também de africanos de diferentes origens (balantas, fulas, mandingas, bijagós), marcados pela procura de uma identidade própria. Temas apaixonantes.
«Peregrinações em Lisboa» de Norberto de Araújo são um clássico que ainda hoje deve ser consultado, para melhor conhecermos a cidade de Lisboa e os seus extraordinários segredos históricos. Invocamo-lo a propósito do recente programa «Visita Guiada» (RTP2) de Paula Moura Pinheiro sobre as igrejas do Chiado…
PEREGRINAÇÃO INESGOTÁVEL No caso da “Visita Guiada” há sempre um ambicioso guião e do muito que há para falar fica sempre muito por dizer. Eis por que razão, devemos agir como fizeram peregrinadores da cidade como Júlio de Castilho ou Norberto de Araújo – dando pistas para que o “dileto viajante” possa por si não só fazer a caminhada necessária, mas também descobrir o fio da meada numa extensão sempre incerta e inesperada. Quando a Paula Moura Pinheiro me desafiou a fazer o percurso das igrejas do Chiado para a RTP2, acertámos que esse seria o pretexto para podermos tentar entender o que foi acontecendo no mítico lugar das Portas de Santa Catarina, muralha fernandina abaixo (da rua da Misericórdia ao Alecrim) ao longo do tempo, e sobretudo sob o efeito do Terramoto de 1755, que arrasou o Carmo e a Trindade e tudo que os circundava. Um programa de televisão, com tempo limitado, exige um enorme esforço – que os telespectadores podem sempre achar excessivo ou minguado, mas que corresponde ao que a grelha exige. Porquê uma concentração tão grande de templos naquele local? Eis uma pergunta que apenas pode ser respondida se percebermos que estamos no que era a fronteira da cidade de Lisboa na segunda metade do século XIV. A muralha protegia e levava a uma grande concentração populacional intramuros. Só mais tarde a cidade se abriria, para além do postigo de S. Roque, para o Bairro Alto, na Vila Nova de Andrade, lembrando os ecos do grande sismo de 1531 e a antiga herança de Mestre Guedelha, proprietário da herdade de Santa Catarina… E se as recentes obras do Largo de Camões trouxeram à luz do dia as fundações e os baixos do Palácio dos Marqueses de Marialva, a verdade é que essa era já uma edificação do século XVII… A porta de Santa Catarina situava-se onde hoje é o Largo das Duas Igrejas, tendo frente-a-frente o Loreto e a Encarnação – sendo o termo da Rua Larga, que hoje toma o justo nome de Garrett, e vinha da Pedreira (hoje Armazéns do Chiado), onde Frei Bartolomeu de Quental fundaria o Convento Oratoriano do Espírito Santo. E, para abreviar razões, lembre-se que em 1384 aqui assentou arraiais D. Juan de Castela, casado com D. Beatriz, filha de D. Fernando, ainda criança, no cerco de Lisboa, levantado quando a jovem apresentou sinais de peste… Nesse tempo, havia, fora de portas, campo de cultivo também usado pela pastorícia.
ENCOMENDA PRODIGIOSA Mas voltemos um pouco atrás, ao início da “visita guiada”, a S. Roque, no “adro da peste”, onde se ergueu uma pequena ermida em 1506, por ocasião de uma epidemia, pedindo graças ao santo protetor da enfermidade. A Irmandade que persiste com a missão de realizar as obras de misericórdia materiais e espirituais reúne hoje três antigas Irmandades – a da Misericórdia (fundada por D. Leonor em 1498), a de S. Roque e a dos Carpinteiros de Machado. Aí se instalaria a casa professa da Companhia de Jesus, começando a erguer-se o templo em 1555. Em 1573, as paredes estavam de pé, mas a cobertura suscitou dificuldades, sendo a complexa solução em madeira da Prússia encontrada por Filipo Terzi, já depois de 1580. O templo é ricamente adornado com excelentes obras de arte e objeto de generosidades régias, em especial de D. João V, merecendo destaque a magnífica Capela de S. João Batista – uma autêntica preciosidade encomendada em 1742 aos artistas italianos Nicola Salvi, e Luigi Vanvitelli. Jörg Garms é claríssimo sobre a obra: “forse… la capella piú rica mais construita… Un scrigno di straordinaria eleganza e unita”. A mais rica jamais construída. É a “encomenda prodigiosa”, na riqueza, na escala, na harmonia do programa (como disse António Filipe Pimentel). E não podemos esquecer a coordenação de João Frederico Ludovice, o ourives-arquiteto alemão que marcou decisivamente a rica coerência joanina. A obra foi organizada em Roma como um autêntico puzzle, sagrada em Santo António dos Portugueses (1744) e inaugurada quando D. João V já tinha morrido (1751). Sousa Viterbo refere esta joia inesquecível como um “gozo inefável para os sentidos”. “Monumento que anuncia já o neoclassicismo” – dirá o Professor J.A. França. Foi necessário procurar em toda a Itália os minerais e o esmalte aqui presentes, os medalhões são de mármore de Carrara, as oito colunas de estilo coríntio de lápis-lazuli, e encontramos ainda alabastro, jaspe, ametistas e tudo o mais. As obras de arte fundamentais são três preciosos quadros em mosaico, com pedrinhas de mil tonalidades – Batismo de Cristo, Anunciação e Pentecostes (de Moretti sobre cartões de Massuci). Não fora a riqueza artística, quase com ironia, Norberto de Araújo falava de um autêntico museu de geologia e mineralogia...
DE S. ROQUE A SANTA CATARINA S. Roque tem quinze capelas construídas em épocas diferentes, todas a merecer visita cuidada. No altar-mor alternam sete quadros conforme as épocas litúricas e encontramos imagens de santos da Companhia: Santo Inácio, S. Francisco de Borja, S. Luís de Gonzaga. E não podemos, sem uma ponta de emoção, deixar de recordar o belo poema de Sophia de Mello Breyner, “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”: “Nunca mais amarei quem não possa viver / Sempre…”. Lembrança indelével de S. Francisco de Borja. No corredor para a sacristia está a sepultura de Simão Rodrigues de Azevedo, que introduziu a Companhia em Portugal, e na sacristia deparamo-nos com imagens da vida de S. Francisco Xavier, da autoria provável de André Reinoso. E não podemos esquecer que, entre mil relíquias, aqui se encontra sepultado Francisco Suárez (1648-1717), o pensador célebre, com influência decisiva na renovação do pensamento político, filosófico e jurídico. O terramoto de 1755 atingiu o templo de S. Roque, sobretudo a fachada, mas não comprometeu o essencial do seu recheio. Por isso podemos usufruir de todo este esplendor…
Nas portas de Santa Catarina recordámos a necessidade de abrir a cerca fernandina para permitir a passagem do sumptuoso cortejo do casamento de D. João V com D. Maria Ana de Áustria (1708). E lembramos José-Augusto França a dizer que se a capital de Portugal é Lisboa, o Chiado é a capital de Lisboa. A crónica lisboeta não dispensava os janotas da Havanesa, do Marrare, do Grémio Literário. Luísa encontra o Conselheiro Acácio e escapa-se para a igreja dos Mártires. Garrett, Herculano, Camilo, Eça de Queiroz, Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro (seu irmão) todos por aqui passam. Um dia chamaram azul a Cesário Verde, que devolveu o piropo, chamando troca-tintas ao triste jocoso. A cidade cosmopolita leva a rica comunidade italiana a adquirir o Loreto, mudando o orago de Santo António para Nossa Senhora. E a Encarnação tornou-se filha do Loreto, num longo processo que exigiu a demolição de parte da velha muralha. Mas foi o terramoto com efeito violento nesta área, que obrigou a alterações significativas. A Basílica dos Mártires, a recordar os cristãos caídos na reconquista, cujo sino é o da aldeia de Fernando Pessoa, é um esmerado resultado do projeto de Reinaldo Manuel, com a célebre invocação de D. Afonso Henriques de Pedro Alexandrino de Carvalho. E a Igreja do Santíssimo Sacramento, em terrenos dos condes de Valadares, também com traçado de Reinaldo Manuel e pinturas do mesmo Pedro Alexandrino, é uma bela surpresa, equilibrada, recolhida, rica de espiritualidade… Peregrinar pelo Chiado é, de facto, visitar a face aberta da nossa cultura!