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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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W.   WENCESLAU DE MORAES

 

E encontrámos Wenceslau com Camilo Martins de Oliveira e José Tolentino Mendonça… Quioto é uma cidade especial. Aqui sente-se a tradição japonesa, como sinal de um povo antigo, sereno, amável e hospitaleiro. Estamos na antiga cidade imperial, qualidade que perdeu em 1868, depois de ter havido entre os séculos XVII e XIX uma partilha de influência política com a cidade de Edo, hoje Tóquio, até à revolução Meiji. A cidade é marcada pelo rio Kamo e está situada entre três montanhas. No bairro de Gion, conhecemos as narrativas e descrições romanescas, e aí podemos ver o desenho de uma antiga cidade nipónica. Há restaurantes tradicionais, há muito movimento, edifícios baixos e pequenos, em madeira, bem ordenados, assinalados com balões coloridos iluminados. Vêem-se geishas em trajes de função. As ruas são estreitas e limpas, a ordem e a organização imperam. A cada passo, as pessoas saúdam-nos com vénias, ora para nos convidarem a entrar, ora para nos agradecerem se lhes demos primazia no burburinho dos passeios. No Outono, há alegria e jovialidade no ar, mesmo depois de cair a noite. Não há humidade e a temperatura ronda os 12 graus. Ao passar pela zona dos teatros, invocamos o Kabuki e a sua evolução. Apesar de ter sido fundado por mulheres, estas foram banidas sob acusação de prostituição, e há muito que o Kabuki passou a ser representado apenas por homens. Complexas maquilhagens permitem distinguirmos o Kabuki do teatro Noh, as diferenças são profundas, indo do burlesco à erudição. Quando no dia seguinte passamos por Gion, de manhã cedo, a quietude impera, num ambiente doce. O rio Kamo é referido com veneração. As suas águas protegem a cidade e os seus habitantes. Nas margens, passamos pela rua de Pontocho, popularíssima e uma das marcas da cidade. Aqui a referência aos portugueses não se faz esperar. Neste local ficaria um banco de areia e diz a tradição que os nossos compatriotas chamar-lhe-iam ponte. Sempre que se falava dos portugueses os olhos dos nossos interlocutores brilhavam de satisfação. Há um genuíno gosto pelo que somos e pelo facto de termos sido os primeiros europeus a chegar. O sol iluminava a cidade e as montanhas e começámos a perceber a beleza extraordinária do «momiji». As árvores que rodeiam a cidade no Outono têm as folhas vermelhas ou amarelas. Wenceslau de Morais (1854-1929), o escritor português que se apaixonou pelo Japão e cujos textos nos acompanham como ajuda preciosa, disse que «as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido». Sentimos entusiasmo ao ver as grandes massas desta folhagem belíssima. Nessa manhã cristalina, fomos, ao Pavilhão de Prata, o Ginkaku-ji, que literalmente se apagava diante daquela natureza outonal pujante. Depressa percebemos que o importante não era o facto de a prata nunca ter sido colocada para tornar o edifício espetacular. Tudo se passa, afinal, como se apenas faltasse a prata para espelhar a pujança dos jardins, pois o essencial é o movimento das plantas e a ordenação magnífica da natureza.

 

O momiji tudo domina, parecendo dizer que a natureza culta, domada pelo ser humano, é dominada pelas folhas escarlate, como se fossem flores. Deambulamos pelos caminhos do jardim, contamos as suas pedras, deslumbramo-nos com os musgos tratados, com as águas, com os lagos, com os jardins secos, com o saibro riscado ou a terra cuidadosamente penteada a representar ilhas, oceanos e os rios da vida. Seguimos pelo caminho dos filósofos ou via dos mestres. Um canal ladeado de cerejeiras segue sinuoso pelo sopé das Montanhas Orientais e há muita gente que caminha, gozando a natureza, conversando, lendo ou simplesmente indo em direção ao templo zen de Nanzen-ji. A designação recente do percurso deve-se ao filósofo Nishida Kitaro (1870-1945), professor da universidade de Quioto, que tornou este lugar simbólico obrigatório para a compreensão da cultura japonesa.

 

As obras de Wenceslau de Moraes são de extrema importância no plano nível cultural com reflexo do pensamento português no mundo e sobre o mundo. Encontra-se em cada palavra sua o cruzamento de ideias e de História, de imaginário e realidade. Torna-se difícil compreender o que Moraes encontrou numa civilização tão diferente da sua, que fez mudar os seus padrões culturais, sempre com os sentimentos do exílio e da saudade presentes na sua alma e no seu coração, sentimentos tão particulares do seu povo.  Um português que procurou manter um contacto diplomático quer com os seus conterrâneos, quer com os japoneses, mas terminou os seus dias sozinho em Tokushima. Wenceslau de Moraes foi autor de um legado sobre assuntos ligados ao Oriente, em especial ao Japão destacando-se as obras: Traços do Extremo Oriente; Cartas do Japão; O Culto do Chá; A Vida Japonesa; Relance da História do Japão; Serões no Japão e Relance da Alma Japonesa.

 

Em Nanzen-ji sentimos que a lição «sê mestre da tua mente» é um elemento fundamental nesta cultura do conhecimento e da compreensão. A colossal Sanmon à entrada do recinto do templo dá-nos a impressão de que estamos num lugar essencial para a cultura zen. Este portão descomunal não tem um prego, foi erguido no século XVII apenas com encaixes que põem à prova a habilidade e a inteligência humanas. Tudo para consolar as almas dos que morreram num cerco do Castelo de Osaka. Nos aposentos do Abade do Convento deparamos com o célebre “Tigre a beber água”, obra-prima da pintura tradicional japonesa do século XVII da autoria de Tamyu Kano, além de uma intervenção de Kobori Enshu, com seixos e pinheiros num impressionante jardim seco. A verdade é que a relação do tempo e do universo tem uma importância especial. Sentimo-lo no equilíbrio entre a arte e a natureza em Nanzen-ji, nos jardins, nos seixos, nas representações, mas especialmente na cerimónia do chá, no templo de Kodai-ji, nessa tarde. A preparação, a simbologia e os gestos – tudo exige um forte domínio do corpo e da presença, em nome do respeito, da tranquilidade, da pureza e da harmonia. O culto é muito mais do que uma tradição, é um gesto litúrgico, até de influência cristã. Folheamos “O Culto do Chá” de Wenceslau de Moraes: «nos templos famosos em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de mostrar as relíquias e os museus». Aqui os nossos queridos fantasmas estão bem vivos. Convivem connosco. Explicam tudo!

 

 

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EM REBUSCA DO JAPÃO IX

 

   O segundo capítulo de Relance da  Alma Japonesa, de Wencesalau de Moraes, intitula-se A Linguagem e começa assim:

 

   A linguagem é a tradução do pensamento, do sentimento, do indivíduo, como de um povo. O homem, como o povo, fala para manifestar o que ele pensa, o que ele sente. A linguagem de um povo não foi, evidentemente, a invenção de um homem, mas o trabalho de um povo, trabalho constituído lentamente, mui lentamente, e progredindo à medida que os seus conhecimentos se alargavam e que as palavras lhe faltavam para exprimir o pensamento...   ... Estudar a linguagem de um povo é colher de surpresa os elementos mais preciosos para julgar da sua alma, isto é, da sua maneira de ver e de sentir, do seu carácter enfim...

 

   Esta introdução parece-me necessária para melhor entendermos, à luz do próprio autor, o que Moraes afirma nas citações que seguidamente dele faço:

 

   Começamos aqui a adivinhar um conceito da mais alta importância psíquica na mentalidade do nipónico: - a impersonalidade humana, perante os fenómenos da vida; o que quer que seja, que o reduz a simples comparsa de somenos importância, em presença do grandioso drama da natureza criadora.

 

   Na língua japonesa, se excetuarmos um ou dois termos, raramente empregados, que designam a primeira pessoa, pode dizer-se que não há pronomes pessoais. A consequência imediata deste curiosíssimo fenómeno filológico é não haver senão uma palavra para cada modo e tempo de cada verbo. Assim, o presente do indicativo do verbo ver - eu vejo, tu vês, ele vê, nós vemos vós vedes, eles vêem - traduz-se em japonês, em qualquer dos casos, por uma única palavra invariável, miru; do mesmo modo, o pretérito perfeito do indicativo do mesmo verbo - eu vi, tu viste, ele viu, nós vimos, vós vistes, eles viram - traduz-se por uma única palavra invariável, mita; na conjugação dos verbos japoneses não se têm em conta as pessoas.

 

   Wenceslau de Moraes tinha, em autodidata, um conhecimento incipiente da língua japonesa, mas como espírito curioso de tudo, sempre procurava credível informação. Por isso mesmo se instruiu junto de um francês, gramático da língua nipónica, Cyprien Balet, que lhe ensinou o seguinte: «Para a exata compreensão da frase japonesa, a questão do sujeito reclama algumas explicações.  Pode-se considera-lo sob dois aspetos, o gramatical e o lógico. No primeiro caso, diz-se sujeito o que aciona ou experimenta a força da energia expressa pelo verbo, ao qual ele está ligado de modo tão íntimo que qualquer alteração em número, género ou pessoa alterará a forma do verbo. No segundo caso, o sujeito mais não é do que o primeiro termo de uma proposição, sobre o qual se enunciam apreciações diversas, sem haver correlação necessária entre ele e o verbo. Estabelecida claramente esta distinção, pode e deve dizer-se que não há sujeito gramatical em japonês. Na verdade, é notório que a noção de pessoa, isto é, de um ser subsistente e potencial, não existe nessa língua. Rigorosamente decorrente de tal facto, é a impersonalidade absoluta do verbo, o qual apenas exprime um acontecimento, estado ou paixão, sem relação com a pessoa. Daí a afirmação de uma única e invariável forma para cada tempo e cada modo do verbo: só a distinção do género e do número das pessoas, ou, ainda, seu conceito nítido e determinante poderiam ter motivado uma ligação direta ao verbo e envolver neste flexões diversas relacionadas com as variações daquelas. Há quem diga que, no latim e no grego, os verbos têm flexões variadas em cada tempo, embora a pessoa não seja expressa: é verdade, mas nessas línguas a pessoa é subentendida, enquanto que em japonês não existe. Em tais condições, o sujeito em japonês só poderia ser concebido enquanto ser, do qual se afirma ou se nega que tal facto, tal ação ou paixão, tendo lugar, tendo tido lugar, ou devendo ter lugar, são dele, pertencem-lhe. Eis porque, falando logicamente, o sujeito não poderia vir ligado ao verbo se não na forma de genitivo, por uma das pós-posições ga ou no, que servem para indicar posse ou dependência. E tal tem lugar, quer na língua clássica quer na corrente...»  E ao gramático francês continuará recorrendo Wenceslau, para apoio da sua intuição:

 

   «Tomemos a palavra ikimashô, que é o futuro dubitativo do verbo iku, ir. Poderá tal palavra significar, segundo os casos, eu irei, tu irás, ele irá, nós iremos, vós ireis, eles irão... Melhor: ela não significa nada de tudo isso, antes e tão só "haverá provavelmente o facto de ir..." E do mesmo modo para todos os tempos do verbo: não estando a pessoa concebida como ser concreto, subsistente e atuante, mas sendo apenas expressa por qualidades e relações exteriores ao indivíduo, a ação ou paixão contidas no verbo serão necessariamente concebidas como impessoais...»

 

   Mas Moraes irá ainda buscar outro exemplo para que melhor cheguemos à sua ideia, e a partilhemos. Cito o próprio Wenceslau:

 

   Tomemos o presente do indicativo do verbo "chover", chove, verbo português que parece ter sido inventado por um gramático japonês, tão de molde vem ele para explicar uma curiosíssima característica de língua japonesa. Com efeito, ei-lo, no presente do indicativo, como em todos os outros tempos, invariável, impessoal, sem sujeito determinado, exprimindo em si uma ação independente e intransitiva. Se todos os nossos verbos fossem da índole do verbo chover e de mais alguns outros (nevar, trovejar, etc.), teríamos a nossa gramática e a nossa linguagem transformadas numa gramática e numa linguagem impessoais, sem pronomes pessoais  -  por inúteis, sem flexões nos tempos dos verbos, sem sujeito determinado. Mas não sucede assim. Sucede porém assim, exatamente assim, na gramática e na linguagem japonesas, com as suas consequências inevitáveis. A linguagem traduz, como sabemos, a sentimentalidade do povo que a fala. Chegamos assim a concluir o seguinte facto: - a impersonalidade do japonês perante os fenómenos da vida, - isto é, a sua voluntária isenção em participar, como fator ativo, no conjunto das modalidades naturais. Chover, comer, dormir são simplesmente factos ocorridos, cuja ação não se transmite ao indivíduo. Devemos mais concluir que tal impersonalidade representa uma característica da alma nipónica, nascida no seu próprio íntimo...

 

   Da minha experiência de alguns anos no Japão fiquei a pensarsentir, recorrentemente, que são muito íntimos os paradoxos em que se debatem e por que se guiam os espíritos nipónicos, em eternas lutas de Jacó com o Anjo.  Há muito mais do que nos pode dar apenas um relance da alma japonesa. E só o que, brevemente, o presente texto já nos promete, justifica que, passados estes dias que me vão afligindo, eu volte ao esforço de tentar entender melhor essa condição de impersonalidade...   

  

Camilo Martins de Oliveira

EM REBUSCA DO JAPÃO VIII

  

   O japonês tem três palavras para dizer família: ie, kazoku e setai, todas elas exprimindo a ideia de corporação familiar que laços de sangue ou de adoção reúnem à volta de um património. Mas apenas ie significa sozinha a ideia de casa e de continuidade, já que, sendo a designação mais antiga de família, só por si diz casa, e esta é tradicionalmente concebida como, diríamos nós, o solar, isto é, a habitação residencial e radical da família e, em princípio, apenas através desta transmissível.

 

   Hoje em dia, a maioria das famílias japonesas (e não só) já não são como eram, muito menos como se constituíam e perpetuavam, mas a casa onde se mora continua a dizer-se ie, e a memória como culto dos antepassados vai-se mantendo com o obon, essa pausa para regresso à terra dos "maiores" e para muitas celebrações. Wenceslau de Moraes, nos anos 20 do século passado, conta no seu Relance da Alma Japonesa (Sociedade Editora Portugal-Brasil, Lisboa, 1926):

 

   No fim do estio, é a festa dos mortos, particularmente notável em Tokushima [na ilha de Shikoku, onde passou os últimos anos da sua vida], pelas danças especialíssimas que se exibem, ao terminar da festa; então, segundo a doce crendice popular, os espíritos dos mortos descem à terra, em visita ao lar familiar, onde se demoram durante um dia e uma noite; e está-se imaginando com que alvoroço respeitoso e banquetes rituais a família recebe tão distintos visitantes. No fim do outono, ao secar das folhas, jardins, parques, campos e colinas revestem-se de colorações maravilhosas, merecendo especial atenção as árvores momiji [os nossos bordos, da família das acetáceas, érables em francês, maple em inglês, cuja folha surge na bandeira do Canadá, e donde se extrai um xarope muito popular em dejejuns norte-americanos], cuja rama se ruboriza e atinge ardências fantasmagóricas, de aspetos inenarráveis... [De tal espetáculo natural tivemos memorável visão, em Kyoto, do alto do Kyomizudera, em 2010, quando com o CNC Fomos em Busca do Japão].

 

   Armando Martins Janeira (o embaixador Armando Martins) confessou por escrito que considerava Relance da Alma Japonesa o livro menos bom de Wenceslau de Moraes. Com a devida vénia, discordo do nosso embaixador que, aliás, ainda conheci em vida, e com quem longamente conversei. E discordo, explicando-me por palavras retiradas ao seu próprio Wenceslau de Moraes, obra publicada em 1971 na coleção Antologias Universais editora Portugália:

 

   Aos românticos portugueses do começo deste século e também aos de hoje, Wenceslau de Moraes traz os enlevos do exotismo, da cor oriental, do pitoresco por que tem sido exclusivamente apreciado. Porém, o verdadeiro valor de Wenceslau de Moraes não está no seu romantismo exótico, mas no seu realismo baseado sobre a observação minuciosa ao longo de muitos anos, sobre o seu profundo conhecimento do Japão e até sobre o seu populismo. Em todos esses aspetos ele é vivamente moderno e atual - entre todos os escritores que até hoje escreveram sobre o povo japonês não há nenhum que se lhe possa equiparar. Conheço excelentes livros, admiráveis monografias sobre a arte, o teatro, a economia japonesa - assuntos estes em que Wenceslau foi frequentemente bisonho e banal. Não conheço, porem, um só livro sobre o homem japonês, sobre a vida japonesa que os faça viver com tanta compreensão e vivacidade como vivem nos livros de Moraes.

 

   Este, em meu entendimento, olhou para a gente nipónica, seus costumes, suas vidas, suas crenças, sem partidarismos nem preconceitos, mas tão simplesmente com o olhar do coração, o tal que cria beleza e amor precisamente ali onde os vai buscar. Fossem quais fossem as suas limitações culturais ou intelectuais, Moraes viveu no Japão sempre em busca do Japão. Perfeitamente consciente de não ser nipónico, no Império do Sol Nascente quis habitar, quiçá movido pela intuição poética de que transforma-se o amador na coisa amada... E, em sua simplicidade, bem consciente de não ser, ele próprio, um "intelectual".

 

   As citações seguintes são dois trechos do Relance da Alma japonesa, tratando ainda do tema família, que mostram bem a candura inteligente de Wenceslau. O primeiro refere o conceito de impersonalidade no pensamento de Moraes sobre o homem japonês, que analisaremos noutro texto nosso.

 

   O indivíduo é nada, a família é tudo. A família é e foi sempre a unidade de referência, não o indivíduo. Nos velhos tempos. era sobre a família que pesavam todas as responsabilidades, não sobre um dos seus membros. Assim, se um indivíduo cometia um crime, toda a família, solidária perante as justiças do país, era punida. O trabalho manual, exigido pelo Estado e para o Estado, avaliava-se a tantas pessoas por família, cabendo a esta a missão da escolha e mais processos. O mesmo para o serviço de guerra. Umas tantas famílias formavam um grupo perante a justiça; havia um chefe para cada grupo, obrigado a comunicar aos seus superiores na administração pública todas as eventualidades, todas as alterações ocorridas no seu grupo. Os tempos vão modificando os costumes; mas ainda hoje a família tem importância decisiva em muitos casos graves...

 

   ... Vão correndo os anos, vão morrendo os velhos, vão crescendo os filhos. Os rapazes, as raparigas, frequentaram escolas, por certo. Os rapazes, aos vinte e um anos de idade, assentaram praça no exército ou na armada, serviram a pátria, recolheram depois ao lar. Empregaram-se, ganham a vida por qualquer modo. Os rapazes casam muito novos, por costume do país; o filho primogénito, futuro herdeiro, perante a família, de honras e deveres, traz a esposa para casa; os outros vão para fora, criando núcleos de famílias distintas. As raparigas também casam cedo; vão para fora, para as casas dos maridos, transitando de família para família e de deveres familiares para deveres familiares. Se porém acontece não haver filhos varões, nem próprios nem adquiridos por adoção, a filha primogénita traz o marido para casa, adotado como filho da casa e herdeiro do nome da família e dos deveres que a herança lhe atribui.

 

   A instituição da ie foi consagrada na lei japonesa, tendo aliás sido, durante a reforma jurídica trazida pela restauração Meiji, uma das causas do longo atraso na transposição do direito napoleónico para o corpo jurídico nipónico, como já expliquei em texto publicado na passada década. Para seu melhor entendimento, haverá que refletir no princípio japonês da impersonalidade, que tanto interessou Moraes, e cujo respeito paira ainda sobre as vidas, a ética e a literatura nipónicas, como a seu tempo explanarei. Mas as circunstâncias históricas, demográficas, económicas e sociais têm naturalmente evoluído e trazido novos fatores à sua prática consuetudinária e interpretação moral.

 

   Quanto à figura da família e sua instituição, por exemplo, recordo como a crescente presença das mulheres no mercado do trabalho e a divulgação de novos métodos contracetivos lhes trouxeram outra independência. Lembro-me de que, na década de 1990, assisti a muitos omiai ou reuniões (em regra em almoços ou jantares) de arranjo de casamentos, em que já não eram os patriarcas ou paterfamilias a acordar e negociar um matrimónio, mas sim familiares, patrões ou superiores hierárquicos a juntar os potenciais nubentes para que se conhecessem e fizessem a sua escolha. Era engraçado vê-los num restaurante, em muita cerimónia, acontecendo que, após a refeição e conversas introdutórias, os candidatos poderiam retirar-se para um passeio a sós, ao fim do qual comunicariam o seu propósito de continuar, ou não, aquele "negócio".

 

   Casos havia em que, para se livrarem da pressão a que eram submetidos, os "noivos" acediam a contrair matrimónio, mas entre si concordavam no o consumir ou mesmo viverem separadamente logo depois... Mesmo na província, as jovens - sobretudo as que tinham ganho a possibilidade de prosseguir estudos ou outros empregos na cidade - se recusavam a casar, pelo que as famílias chamavam raparigas de outras nações (filipinas, coreanas, tailandesas) para contrair matrimónio com os seus filhos e produzir a indispensável descendência, além do necessário trabalho doméstico...

 

   Nos tempos hodiernos, o saldo fisiológico do Japão é negativo, continuando a reduzir-se e envelhecer a população do Império do Sol Nascente.

  

Camilo Martins de Oliveira

EM REBUSCA DO JAPÃO VII

   

   A metamorfose de L’homme et son désir em La Femme et son Ombre, de que falam textos anteriores desta Rebusca do Japão, é um interessante exemplo de aculturação, que também nos faculta melhor compreensão da capacidade nipónica de se debruçar sobre outras culturas e lhes abrir os frutos que irá "digerindo" na sua própria cultura. Voltaremos a este e outros temas já oportunamente suscitados, bem como a um olhar mais atento sobre o teatro e a dança no Japão, designadamente o teatro Nô. Mas desta feita, falarei sobretudo das relações culturais e linguísticas dos japoneses com povos ocidentais, nomeadamente o português, referindo-me à abertura ao exterior assinalada pela Restauração Meiji - uma espécie de Iluminismo nipónico oitocentista - e anos seguintes.

 

   Os resquícios da língua portuguesa na fala japonesa atravessaram séculos, mas são poucos e quase irrelevantes: vocábulos próprios ao culto católico, cuja origem lusitana se confunde, aliás, com a latina, esta sendo utilizada na liturgia e na doutrina, e outros designando sobretudo produtos, artigos e bens de consumo trazidos pelo comércio português, entre os quais alguns que fizeram moda no sol Nascente. Para além da religião cristã - aliás forçada à clandestinidade - e de hábitos de vestuário e adornos, que ainda hoje vemos representados nos famosos biombos nambam e em inúmeras pinturas japonesas posteriores à expulsão dos portugueses e cristãos, por terem feito moda, pouco ficou como marca da presença portuguesa no século XVI/XVII, muito embora, por exemplo e para lembrança, se possa falar de receitas de higiene e alimentação, de técnicas de pintura ou de cartografia.

 

   Com o confinamento da presença comercial externa na ilha artificial de Deshima (literalmente "ilha de fora"), em Nagasaki, os únicos parceiros autorizados, além duns chineses, passaram a ser holandeses. E em língua holandesa chegavam notícias e algumas obras de índole científica e técnica, pelo que, aquando da Restauração Meiji, houve grande procura de conhecimento desse idioma, mas logo preterida pela aprendizagem do inglês. língua do comodoro americano Perry (que forçara a abertura dos portos nipónicos) e doutra potência comercial, militar e técnica ocidental na Ásia do tempo, o Reino Unido. O francês foi sendo divulgado pelos missionários católicos gauleses, inicialmente vindos das missões na China, mas tornou-se depois utilizado pelos juristas japoneses que pretendiam montar uma versão nipónica do direito napoleónico e ainda nos meios literários e artísticos, em virtude do prestígio de Paris nessas áreas. A ação de Claudel que viemos relatando inscreve-se nessa perspetiva, ainda no primeiro quartel do século XX. 

 

   Em traços largos, o panorama desenha-se com forte influência: britânica em matéria de administração e pertinentes regulamentos (a circulação pela esquerda, por exemplo), de engenharia, indústria e comércio; francesa no pensamento, quer filosófico, quer jurídico, nas artes e letras; alemã nas ciências naturais e médicas, e na organização militar sobretudo. E o inglês vai-se divulgando como língua franca e de comunicação internacional.

 

   A proeminência britânica ou anglosaxónica explica-se, quer pela crescente presença dos EUA no extremo oriente, quer, já antes, pela importância do próprio Império Britânico naquela zona e na Ásia do sul. Em carta do Japão, datada de 8 de Abril de 1902, escreve Wenceslau de Moraes: O que ultimamente mais tem ocupado o espírito deste bom povo é a aliança anglo-japonesa; festas, discursos elogiosos, largos comentários na imprensa, enfim todas manifestações do orgulho nacional, que neste país é supino, excitado pelo magno acontecimento de vir uma prestigiosíssima nação da Europa dar as mãos ao Japão, para em comum cuidarem dos seus mútuos interesses no Extremo-Oriente, tudo isto tem agitado o teatro de multíplices intrigas e cobiças. É, pois, bem justificável o entusiasmo japonês.

 

   Sobre a lucidez do nosso Cônsul em Hyogo (Kobe e Osaka) aqui voltaremos. Também para melhor entendermos a nossa quase insignificante posição no concerto internacional que então se iniciava no Extremo Asiático... Mas deixem-me traduzir-vos hoje um trecho do Tojin Orai, de Fukuzawa Yukichi (1835-1901), introdução ao seu celebrado Manifesto pela Modernidade, afinal a summa das suas obras completas, trabalho fundamental para o pensamento nipónico da Restauração Meiji, porfiado esforço de recolocação do Japão na cena e no concerto internacional. Diz-nos respeito:

 

   O país que se chama Portugal foi outrora bastante próspero, mas tem-se empobrecido cada vez mais nestes últimos anos, o seu exército apenas conta com vinte ou trinta mil homens, apenas possui quatro navios a vapor, e estão pouco desenvolvidos todos os outros equipamentos. Não se compara à Inglaterra ou à França, é um país fraco, mas como sempre conduziu uma política correta e cultiva relações sinceras com os outros países, sem que tal o prejudique, mesmo se, numa relação de forças, quer a França, quer a Inglaterra acabassem com ele, nada disso acontece. No seio da Europa mantém relações e igualdade com os outros países, sem se deixar distanciar, e além disso até possui um território ultramarino chamado Macau no longínquo continente asiático, e também tem um tratado com o Japão, é um país bastante escutado. Quando pensamos na sua situação, podemos imaginar que tão fraco país independente no seio da Europa seria objeto de cobiça de todos os lados, e ficaria em perigo, mas nenhum país respeitador do direito internacional arriscaria tal intervenção. Se algum deles, tomado de loucura, atacasse Portugal, logo outro surgiria para o salvar. Por exemplo: se a França o atacasse, a Inglaterra viria em seu socorro, se a Rússia lhe declarasse guerra, a França enviaria reforços. Assim, ninguém tenta seja o que for e tal país vive em paz já há uns tempos.

 

Camilo Martins de Oliveira