Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Será que a mesma rotina e o ritual repetitivo do trabalho diário nos fazem felizes, fazendo perfeitos os nossos dias?
Dependendo a felicidade essencialmente de condições interiores e, em parte, de condições exteriores, pode dizer-se que, em princípio, todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer as suas necessidades deveriam ser felizes, ter dias perfeitos, não sendo essa a regra. Porquê?
Em “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, filme japonês de um realizador alemão, há uma tentativa de resposta, através do elogio às coisas simples e repetitivas da vida, em harmonia com a natureza e a sociedade, num estilo de despojamento monástico, feito de silêncios, contemplação, em interação com a poesia, que nos interpela e exige disponibilidade a quem vê.
Eis os dias perfeitos do inesperado protagonista Hirayama: acordar matinalmente com os primeiros raios solares, barbear-se, vestir-se, tratar das plantas, pegar algumas moedas, comprar um café gelado de máquina, conduzir a carrinha da sua ronda diária, ouvir música enquanto conduz, limpar minuciosamente as mais tecnológicas casas de banho de Tóquio, almoçar uma sandes no mesmo banco do jardim, fotografar árvores com a mesma máquina portátil, tomar banho nas mesmas casas de banho públicas, jantar no mesmo restaurante de bairro, ler antes de dormir, deitar-se e acordar de novo, repetindo-se os mesmos locais, movimentos e o gosto pela leitura, música, fotografia e andar de bicicleta.
Trata-se de um homem de rotinas que sorri, de poucas falas, sem família, de uma rotina austera, metódica e organizada, desempenhando a função com dedicação e profissionalismo, que educadamente se afasta e espera se alguém quer usar os sanitários, que ouve música num leitor de cassetes, faz culto do analógico, não frequenta redes sociais, mantendo-se afastado (em termos pessoais, mas não profissionais) da tecnologia digital.
O acordar, levantar, higienização pessoal, vestir, pequeno almoço, sair de casa, trabalho, almoçar, regresso ao lar, jantar, dormir, acordar e levantar de novo, sucessiva e repetitivamente, são os dias perfeitos, universais e transversais a todos nós, no nosso dia a dia costumeiro, obrigatório, evasivo, que nos transcende e em que há a consciência do dever cumprido, pois uma vida sem uma permanente solenidade de ritual legal não serve, sendo mais um favor (e não um absurdo) a pretensa condenação que Sísifo recebeu em nossa representação, salvando-nos do vazio, por mais ilógico que nos pareça.
E há a força e o poder da música, com banda sonora e canções de Lou Reed (Perfect Day, inspiração do título da película), Patti Smith, Van Morrison, Kinks, Otis Reding, Nina Simone. E uma icónica interpretação, em japonês, num restaurante nipónico, da admirável The House of Rising Sun, dos Animals. Presume-se não ser mero acaso que um dos pontos culminantes do filme seja A Casa do Sol Nascente no Império do SolNascente. A que acresce a leitura de obras de Faulkner e Patricia Highsmith, visitas a uma livraria que vende livros usados, revelando-nos um homem curioso, culto e sensível, que tem como bênção ou tábua de salvação a cultura, que o ajuda a superar uma solidão existencial, austera e radical na sua simplicidade.
Todo este mundo, feito de pequenos mundos, em que o máximo de satisfação é feito de prazeres simples, é quebrado pelo aparecimento de familiares, nomeadamente uma irmã, que o confronta com quão desprezível é trabalhar num emprego desprezado socialmente, quando poderia viver melhor.
O que nos interpela sobre o que são os nossos dias felizes, perfeitos, a felicidade, a beleza, o espiritual, saber ouvir o silêncio, numa sociedade que se orienta em prol da estética, do consumismo, do culto do excesso, do hedonismo e da imagem, ao invés de um equilíbrio voluntário de autossatisfação e de desejável felicidade, numa simbiose de simplicidade e profundidade, aceitando antecipadamente a rotina como parte inevitável e integrante de todos nós, de todos os dias perfeitos, por mais imperfeitos e finitos que sejam.
Se assumimos que a maioria das nossas vidas é rotina necessária e consentida, uma sacralização humanista do nosso quotidiano, há que aceitá-la como imprescindível para os nossos dias perfeitos, mesmo que por natureza sejam e sejamos imperfeitos.
Alice and the Cities e o percurso de uma descoberta, numa paisagem infinita.
No filme Alice and the Cities (1974), de Wim Wenders assiste-se à vontade de regressar a uma plenitude que se perdeu e que se deseja recuperar.
No livro Wim Wenders de Iñigo Marzabal lê-se que a estadia de Philip nos Estados Unidos, é impulsionada por um olhar nostálgico, por um olhar que sente falta, por um olhar que substitui e que já não consegue ver.
No filme, a América representa o mito e o sonho que se vai desvanecendo. Os espaços por onde Philip vai passando anunciam instabilidade, permuta, transição, constante mudança, solidão. Antecipam partidas. São a negação do lugar, são vazios de sentido. Philip converte-se aos poucos num estranho para si mesmo e é a busca e a esperança de se encontrar de novo que ainda estimula o seu caminho. Philip deseja encontrar provas da sua existência. Por isso, tira polaroids sem parar.
As polaroids são bocados reais do mundo que está diante dos seus olhos. As polaroids provam que Philip está efetivamente ali, naquele lugar e não noutro. As polaroids contêm a verdade da sua experiência particular e são o resultado concreto da sua existência física. São as testemunhas mais diretas da sua viagem. São a captação de um momento original e irrepetível que jamais sucederá. São os documentos instantâneos que demonstram que Philip esteve ali, presenciou e foi testemunha de algo. As polaroids confirmam, revelam e possibilitam estender, prolongar e partilhar a sua viagem.
Mas a imagem imóvel das polaroids provocam uma frustrante inquietude em Philip, por nunca mostrarem exatamente o que se vê, por nunca superarem a realidade. As polaroids são cortes na sequência ininterrupta de uma paisagem. São fechamentos demasiado compreensíveis. São fragmentos de um infinito com autonomia espacial própria: “Un fragmento de lo infinito no supone sino el acto del recorte en estado puro, pues la materia celeste, por su irrelevancia composicional, se resiste a la formalización.” (Marzabal 1998, 84)
A realidade da viagem pela América nunca transmite o fundamento, a causa, o motivo da sua vida. O viajante, na verdade, procura por uma nova capacidade de ver. Como não consegue a sua existência torna-se uma eterna busca de si mesmo, um eterno girar em círculo.
É Alice que vai transformar Philip e vai permitir revelar a sua subjetividade perdida. Alice passa a ser o seu guia, para ir ao encontro do princípio, do lugar que o faça sentir-se em casa e em entendimento com aquilo que o rodeia. Por esse motivo, o regresso à Alemanha significa, talvez a possibilidade de voltar ao acontecimento original, à coerência que não precisa de ser explicada, à prova real de que se está vivo. Significa, através de Alice, um resgate da capacidade de ver.
Na Alemanha, os espaços por onde os dois vão passando também são igualmente impessoais, anónimos e vazios. Philip segue sentindo-se um estranho no seu próprio país. O que vai ser modificado não é o objeto do olhar, mas a forma que o próprio olhar adota. A viagem pela Alemanha é mais espontânea e imprevisível, mas concretiza uma importante busca e contrasta com os percursos preestabelecidos e premeditados da América. segundo Marzabal agora sim Philip tem um objetivo bem definido que é o de devolver Alice ao seu lugar, a sua casa.
Quando se volta ao lugar de origem o confronto com a mudança é inevitável. A alteração do olhar construído fora, faz do lugar da memória um lugar também desconhecido e inóspito. Porém, Philip consegue voltar a entender o que é relevante, através da perspetiva amplificadora da Alice. É Alice e a sua infantilidade que colocam Philip diante dos problemas que mais interessam à sobrevivência. A espontânea vitalidade, a permanente vontade de brincar e a insaciável curiosidade de Alice permitem Philip confrontar-se com a sua própria existência e a sair de si mesmo. Alice consegue aos poucos libertar Philip das interrupções que perturbam o seu olhar, pois é ela que dá forma ao confronto direto, atento e desprendido sobre as coisas reais, sobre o espaço e sobre o tempo.
Sendo assim, o filme de Wim Wenders capta o percurso de uma descoberta, numa paisagem infinita. O constante movimento de Philip fragmentado na América, finalmente se funde num lugar. A estranheza transforma-se em abertura inevitavelmente incompreensível. E é visão direta e libertadora de Alice sobre o real, que abre espaço para que Philip se redefina.
Em Lisbon Story o olhar e a existência desejam unir-se.
“Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”, Álvaro de Campos, Ode Triunfal.
Em Lisbon Story (Wim Wenders, 1994) a evasão no espaço sugerida por Fernando Pessoa é descrita pela atitude da personagem de Friedrich que se tornou ninguém perante a cidade. Captar a cidade somente através da lente tornou-se uma prisão para Friedrich. O caminhar e o olhar desejam estar em uníssono. E no filme, também o som resgata a verdadeira existência das coisas.
“Todos os dias a Matéria me maltrata (…) Busco-me e não me encontro. (…) O meu amor ao ornamental é sem dúvida porque sinto nele qualquer coisa de idêntico à substância da minha alma.”, Fernando Pessoa em “Livro do Desassossego” (Pessoa 134-142)
Os objetos e as imagens que fazemos desses objetos constroem-nos. A experiência de sentir confirma a nossa existência. O posicionamento das coisas no mundo ajuda a determinar os nossos limites físicos - nós nunca nos chegamos verdadeiramente a ver de fora. O mundo que nos rodeia é o nosso espelho, é uma ajuda para a descoberta do sentido da nossa existência - mesmo que não saibamos quem somos o espaço que nos rodeia com o tempo nos dirá.
“Sou nada... Sou uma ficção... Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?” Álvaro de Campos, Ali não havia eletricidade
Capturar uma cidade através de um filme, segundo Wim Wenders só é possível através de uma narrativa que tente estabelecer uma ordem e uma possível estrutura. A história traz sempre uma ilusão, porque afirma uma espécie de coerência e significado aparente à circunstância indeterminada que nos rodeia.
“Stories give people the feeling that there is meaning, that there is ultimately an order lurking behind the incredible confusion of appearances and phenomena that surrounds them.”, Wim Wenders In The Cinema of Wim Wenders: The Celluloid Highway (Graf 2002, 2)
É impossível conter o espaço todo de uma cidade numa película, mas o cinema pode ajudar a resgatar a existência das coisas que estão à frente dos nossos olhos. Para Wim Wenders, o cinema ao ajudar a ver de novo pode tornar-se então numa experiência poética única - as imagens filmadas podem até contribuir para a formação e fixação da identidade de uma pessoa.
Em Lisbon Story, a personagem de Friedrich explora o indeterminado e impreciso espaço de uma cidade. Friedrich deseja simplesmente pertencer ao que existe, porque diante da cidade talvez consiga entender aquilo que é verdadeiramente. A experiência de decifrar o espaço da cidade através dos sentidos pode levar paradoxalmente à perda de si mesmo. Existe o desejo do mundo e da pessoa humana se transformarem num só.
“E às vezes, em pleno meio da rua - inobservado, afinal - paro, hesito, procuro como que uma súbita nova dimensão, uma porta para o interior do espaço, para o outro lado do espaço, onde sem demora fuja da minha consciência dos outros, da minha intuição demasiado objetivada da realidade das vivas almas alheias.”, Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (Pessoa 2014, 134)
A vida de Friedrich paira sobre a cidade e casa impede-o de ser. O olhar e a existência desejam unir-se, porque a vida também pertence às coisas. Friedrich caminha pelas ruas da cidade e tenta captar e colecionar imagens que nunca foram vistas, imagens puras, que conservam a realidade tal como é - imagens que não vendem nem histórias nem coisas, imagens que não estão contaminadas por um determinado olhar. Friedrich acredita que se não for vista, a imagem e o objeto poderão permanecer para sempre juntos. Mas, ao longo de Lisbon Story, apercebemo-nos que afinal a criação das imagens têm de ser feita sempre com um determinado olhar, porque é através da sensibilidade única e singular de cada um de nós que se criam imagens que realmente são indispensáveis e que criam para sempre ressonâncias.
“No magno dia até os sons são claros (…) Quisera, como os sons, viver das coisas Mas não ser delas…”, Ricardo Reis