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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

AS QUATRO NOITES DE UM SONHADOR

 

 

Os meus amigos João David Nunes e Guilherme d’Oliveira Martins, com infinita gentileza, convidaram-me a vir aqui, a este espaço do Centro Nacional de Cultura, tomar um café ou beber um copo, de quinze em quinze dias. E disseram-me que se eu quisesse podia trazer memórias do sótão.

Começo com este texto, que é, afinal ,a minha primeira memória do CNC, antes de eu poder saber ou adivinhar que outras viriam.

 

 

Foi em 1973, em Lis­boa, onde vim estu­dar Direito, catorze anos depois de ter sido adop­tado por uma África que já só exis­tia em Hollywood e nas nos­sas ton­tas e amo­ro­sas cabe­ças colo­ni­ais.

 

Na mar­ce­lista noite de Lis­boa, que já era menos claus­tro­fó­bica do que polí­tica e cho­ro­na­mente se anda para aí a dizer, éra­mos dois rapa­zes e duas rapa­ri­gas e queríamos ouvir Zeca Afonso. Ele ia can­tar no Cen­tro Naci­o­nal de Cul­tura, ao lado do Tea­tro São Luiz, na afa­mada Rua Antó­nio Maria Car­doso, ou seja, nas barbas da PIDE.

 

A noite e a rua vestiam-se de jeans, mui­tos cabe­los com­pri­dos, toda a gente com per­nas e olhos cheios de bicho-carpinteiro. Cheirou-me que depressa íamos ter reco­lher obrigatório, mas estávamos ali de peito cheio e feito.

 

E chega a notícia: o Zeca não cantaria. Repa­rem, não é bem a mesma coisa que dar uma veneta a Keith Jarrett e ele sair do palco. Usava-se então a pala­vra “proi­bido”, termo que teria caído em desuso, não fosse a sal­ví­fica inter­ven­ção de algum escol femi­nista e, agora, do louro Trump. Zeca foi proi­bido de cantar.

 

Houve uma convulsão e per­cebi que a Antó­nio Maria Car­doso era estreita, uma entrada e uma saída, sem outro recuo estra­té­gico. Digo isto, por­que a peque­nina mul­ti­dão se agi­tou, sol­tando os bichos-carpinteiros num bruaá que se ouviu no vizi­nho São Car­los. Faça­nhuda, mas orga­ni­za­dís­sima, a polí­cia de cho­que vinha, do São Luiz para o Chiado, num irre­pre­en­sí­vel geo­me­trismo, lim­pando a rua a viseira e cas­se­tete, o que, apesar de serem só nove horas, sig­ni­fi­cava cace­tada de meia-noite nas filo­só­fi­cas cabe­ças e macios cos­ta­dos que esti­ves­sem à mão de semear – e se nós éra­mos trigo limpo.

 

Havia, está claro, uma expli­ca­ção razoá­vel: não só era proi­bido o Zeca can­tar, era também proi­bido ouvi-lo. Num ápice, eu e o meu amigo enten­de­mos pro­te­ger as nos­sas meló­ma­nas e ino­cen­tes ami­gas: ele, ousado, à frente, elas no meio, eu a fechar a coluna: “leave no man behind”, muito menos uma miúda. Fize­mos meia-volta para o Chi­ado: sairíamos por onde tínha­mos entrado. E não é que o atra­sado men­tal do capi­tão que coman­dava os caceteiros tinha pen­sado a mesma coisa?! A limpa entrada da Antó­nio Maria Car­doso era, agora, uma far­pa­dís­sima saída. Nós, cân­di­dos filhos da madru­gada, tive­mos então o pen­sa­mento que se tem quando, de tão aper­ta­dís­simo, não cabe onde sabem um fei­jão: “Mas que filhos da puta!”

 

Por­tanto, eles malha­vam pela frente e por trás. Pequena manada de bison­tes man­sos, avan­çá­mos. No caso do nosso escasso pelo­tão em fuga, a máquina ini­miga portou-se pouco cavalheirescamente. Pelo berro que o meu amigo deu, pela súbita con­trac­ção que converteu o meu vigo­roso físico numa magra agulha, os cho­ques do Mal­tês falha­ram as bas­to­na­das. Pas­sá­mos ile­sos. Mas os bru­tos, olhar cego ao género, politicamente correctos avant la lettre, não é que acer­ta­ram em cheio nos deli­ca­dos pes­co­ços das nos­sas ami­gas? Para nossa viril ver­go­nha, foi sobre o corpinho delas que se abateu a violência da longa noite. Em noi­tes de vam­pi­ros, nenhum pes­coço se salva.

 

Cer­vi­cais em ai-ai, omo­pla­tas em ui-ui, fomos ao cinema buscar o que a vida nos tirara. À meia-noite, no falecido Apolo 70, desfil­a­vam as silhu­e­tas que Robert Bres­son, jan­se­nista fran­cês, arrancou às pági­nas rus­sas de Dos­toi­evski. A escura noite em que não ouvi o Zeca, foi a branca noite em que vi as “Qua­tro Noi­tes de um Sonhador”.

 

Manuel S. Fonseca