AS QUATRO NOITES DE UM SONHADOR
Os meus amigos João David Nunes e Guilherme d’Oliveira Martins, com infinita gentileza, convidaram-me a vir aqui, a este espaço do Centro Nacional de Cultura, tomar um café ou beber um copo, de quinze em quinze dias. E disseram-me que se eu quisesse podia trazer memórias do sótão.
Começo com este texto, que é, afinal ,a minha primeira memória do CNC, antes de eu poder saber ou adivinhar que outras viriam.
Foi em 1973, em Lisboa, onde vim estudar Direito, catorze anos depois de ter sido adoptado por uma África que já só existia em Hollywood e nas nossas tontas e amorosas cabeças coloniais.
Na marcelista noite de Lisboa, que já era menos claustrofóbica do que política e choronamente se anda para aí a dizer, éramos dois rapazes e duas raparigas e queríamos ouvir Zeca Afonso. Ele ia cantar no Centro Nacional de Cultura, ao lado do Teatro São Luiz, na afamada Rua António Maria Cardoso, ou seja, nas barbas da PIDE.
A noite e a rua vestiam-se de jeans, muitos cabelos compridos, toda a gente com pernas e olhos cheios de bicho-carpinteiro. Cheirou-me que depressa íamos ter recolher obrigatório, mas estávamos ali de peito cheio e feito.
E chega a notícia: o Zeca não cantaria. Reparem, não é bem a mesma coisa que dar uma veneta a Keith Jarrett e ele sair do palco. Usava-se então a palavra “proibido”, termo que teria caído em desuso, não fosse a salvífica intervenção de algum escol feminista e, agora, do louro Trump. Zeca foi proibido de cantar.
Houve uma convulsão e percebi que a António Maria Cardoso era estreita, uma entrada e uma saída, sem outro recuo estratégico. Digo isto, porque a pequenina multidão se agitou, soltando os bichos-carpinteiros num bruaá que se ouviu no vizinho São Carlos. Façanhuda, mas organizadíssima, a polícia de choque vinha, do São Luiz para o Chiado, num irrepreensível geometrismo, limpando a rua a viseira e cassetete, o que, apesar de serem só nove horas, significava cacetada de meia-noite nas filosóficas cabeças e macios costados que estivessem à mão de semear – e se nós éramos trigo limpo.
Havia, está claro, uma explicação razoável: não só era proibido o Zeca cantar, era também proibido ouvi-lo. Num ápice, eu e o meu amigo entendemos proteger as nossas melómanas e inocentes amigas: ele, ousado, à frente, elas no meio, eu a fechar a coluna: “leave no man behind”, muito menos uma miúda. Fizemos meia-volta para o Chiado: sairíamos por onde tínhamos entrado. E não é que o atrasado mental do capitão que comandava os caceteiros tinha pensado a mesma coisa?! A limpa entrada da António Maria Cardoso era, agora, uma farpadíssima saída. Nós, cândidos filhos da madrugada, tivemos então o pensamento que se tem quando, de tão apertadíssimo, não cabe onde sabem um feijão: “Mas que filhos da puta!”
Portanto, eles malhavam pela frente e por trás. Pequena manada de bisontes mansos, avançámos. No caso do nosso escasso pelotão em fuga, a máquina inimiga portou-se pouco cavalheirescamente. Pelo berro que o meu amigo deu, pela súbita contracção que converteu o meu vigoroso físico numa magra agulha, os choques do Maltês falharam as bastonadas. Passámos ilesos. Mas os brutos, olhar cego ao género, politicamente correctos avant la lettre, não é que acertaram em cheio nos delicados pescoços das nossas amigas? Para nossa viril vergonha, foi sobre o corpinho delas que se abateu a violência da longa noite. Em noites de vampiros, nenhum pescoço se salva.
Cervicais em ai-ai, omoplatas em ui-ui, fomos ao cinema buscar o que a vida nos tirara. À meia-noite, no falecido Apolo 70, desfilavam as silhuetas que Robert Bresson, jansenista francês, arrancou às páginas russas de Dostoievski. A escura noite em que não ouvi o Zeca, foi a branca noite em que vi as “Quatro Noites de um Sonhador”.
Manuel S. Fonseca