Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Zhao Tingyang avisa-nos de que Tianxiá é uma redefinição da política, um tratamento do mundo como sujeito político. A China é uma narrativa, enquanto que o Tianxiá é uma teoria. Vamos então ao seu Tianxia - tout sous un mêma ciel (Les Éditions du Cerf, Paris, 2018), de que já te falei, ler o que o filósofo chinês - que alguns pretendem ser um ideólogo do nacionalismo chinês na atualidade - nos diz de um conceito trimilenário que ele hoje retoma. Traduzo:

 

   A mundialização, no seu turbilhão, arrasta tudo e por todos os lados, e nada doravante existe fora desse fenómeno. Menos prezar este novo contexto político tornaria difícil uma pertinaz definição dos problemas do mundo contemporâneo. Na verdade, não é só a questão política que se transforma, mas também a maneira de existir do mundo, que deixa pressagiar um mundo do futuro a necessitar de uma ordem de ser que lhe corresponda, a saber, uma ordem que realize a sua inclusão: chamo-lhe o sistema Tianxiá. É certo que o Tianxiá é um conceito nascido na China antiga, mas não é específico da China: os problemas a que se atém ultrapassam a China, são problemas universais que envolvem o mundo. O termo Tianxiá designa um mundo que possui a sua própria mundialidade. Também podemos interpretá-lo como um processo de formação dinâmica que se refere então à mundialização do mundo. O sistema Tianxiá da dinastia dos Zhou na China (1046-256 a.C.) desapareceu há muito, mas o conceito de Tianxiá que esta nos legou tornou-se em fonte de inspiração para imaginarmos o futuro do mundo. Ninguém conhece o porvir, mas não podemos calar-nos acerca dele, e uma ordem mundial cuja intenção fosse a bondade universal mereceria ainda mais a nossa imaginação.

 

   Vês assim, Princesa, como retomo a tentação de cair em utopia - ou em utopias de que te falei em carta recente - por me parecer ainda que a invenção dum mundo novo se fará apenas pelo propósito da descoberta de uma nova cultura da paz. E revejo-me -  lembra-te do que então te escrevi - no Zhao Tingyang que diz: Os conceitos políticos internacionais definidos pelos Estados Nações, os imperialismos e as rivalidades pela hegemonia vão perdendo a sua pertinência face à realidade da mundialização. Se esta não tiver retrocesso, os poderes supremos definidos pelos Estados Nações, tal como os jogos de política internacional que deles decorrem, pertencerão ao passado, enquanto que os novos poderes de redes mundializadas pós contemporâneas e uma política autenticamente mundial constituirão o futuro.

 

   [Hoje mesmo, domingo 13 de maio, assisti pela TV à missa celebrada pelo cardeal chinês, bispo emérito de Hong Kong (há por aí cada vez mais eméritos, caramba!), que, adolescente ainda, foi de Cantão para o seminário de Macau, quando a sua família se refugiava na colónia britânica de Hong Kong, nesse pós guerra perdida pelos japoneses e retomada pelo confronto entre nacionalistas e comunistas chineses. Trágico mas real. Também assisti na véspera à procissão das velas, uma maré de peregrinos acesos por dentro e por fora, vivos de uma fé que não se cansa de lhes dar esperança, e me comove no íntimo de mim porque não sei que mais fazer para que assim seja. Comungo com eles nessa estranha força que jorra dentro de nós e nos diz a certeza de um dia encontrarmos a utopia.  E lá me lembrei de outras notícias, mais ou menos fresquíssimas, que nos dizem o susto europeu (sobretudo francês e alemão) com as ameaçadoras sanções da américa trumpista a empresas europeias com interesses praticados no Irão, sublinham os bombardeamentos israelitas a posições iranianas, bem como o pronto sim-sim e aplauso de Netanyahou à vitória da sua bandeira na Eurovisão e à possibilidade de, em 2019, o dito festival se realizar em Jerusalém! Tudo já combinado, "pacífico" e animador, como poderás imaginar. Perigoso, a tal ponto, que já se fala da eventualidade do secretário de estado Pompeo servir de mediador entre a agressividade de Bolton/Trump na questão iraniana e a moderação diplomática do secretário da defesa Jim Mattis. Seria uma boa obra, mas penso agora nos palestinos, cristãos e muçulmanos, vítimas dos "nazis" israelitas. Este parêntese serve para te mostrar como as boas intenções religiosas nem sempre vencem o maligno, nem Nossa Senhora de Fátima, em 1917, conseguiu que a guerra terminasse imediatamente, como tampouco evitou o massacre de milhares de portugueses em La Lys. Isto é: impõe-se despertar as consciências humanas para a ação redentora. Era menino e ensinaram-me: Aide toi et le Ciel t´aidera!]

 

   A grande dúvida estará entre se a inteligência e a vontade dos humanos saberão levar avante um olhar limpo e novo e o gosto de construir em comunhão a terra, até hoje de nenhures (a Utopia), onde todos convivamos... ou se a pertinácia do preconceito e da soberba continuará a fechar-nos, uns aos outros, os olhos e o coração. Dirás, Princesa de mim, que eu sou um lírico - responder-te-ei "Sim, Senhora, gosto de sonhar para esquecer". Mas, voltando ao Tianxiá, devo acrescentar que tal conceito é como Janus, tem duas faces, ou poderá tê-las conforme o pensarsentir que se propuser realizá-lo: ou visando converter os povos todos à disciplina anunciada pelo "dono" do mesmo; ou acreditando que será possível despertar em todas as gentes uma consciência militante da construção partilhada da paz. Interrogando-me sobre a China hodierna, recorro ao meu velho amigo João de Deus Ramos, primeiro diplomata português na China, após o reatamento de relações diplomáticas, tendo aberto, em 1979, a Embaixada de Portugal em Beijing, estudioso das coisas do Oriente, sobretudo sínico, e que também esteve colocado no Japão, uma década e meia antes da minha prolongada missão por lá. É frequente, hoje ainda e depois de 65 anos de amizade, conversarmos sobre aquelas experiências. E tive o gosto de reconhecer o labor da sua obra no fomento do Instituto Confúcio da Universidade do Minho, quando, em 2014, um jovem intelectual e empresário portuense, cujo estágio, no Japão e na Coreia, acompanhei, o Pedro A. Vieira, me ofereceu um exemplar de A Herança de Confúcio - Dez ensaios sobre a China, publicado em novembro de 2013 por aquele instituto, e reunindo, com organização da doutora Sun Lam (natural de Beijing, licenciada pela Jinan de Cantão, doutorada pela Universidade do Minho!),  a colaboração de dez autores, entre os quais os meus amigos de que te falo acima. É consolador ver que, em Portugal, também se iniciam estudos sínicos. Mas não irei agora respigar o texto do embaixador João de Deus sobre o relacionamento da China com o exterior. Antes irei buscar ao texto do doutor Luís Cabral, uma Introdução à Filosofia Clássica Chinesa, um esclarecedor esquema que lhe foi sugerido por João de Deus Ramos, e que Luís Cabral assim apresenta:

 

   Passando ao conceito de Tian, que correntemente se poderá traduzir por "Céu", terá porventura na estrutura mental e de pensamento chinês muito mais uma conotação ética e política do que propriamente religiosa. Para uma melhor compreensão do que dizemos, propomos a seguinte narrativa. Pelo século XI a.C., a dinastia Shang foi derrubada pelos Zhou, tendo estes sentido a obrigação ou necessidade de conceber uma teoria filosófica e teológica que justificasse a tomada e o exercício do poder.

 

   A visualização desta filosofia política, filosofia que porventura estará ainda bem presente na mentalidade dos chineses e chinesas modernos, governantes ou governados, poderá melhor esclarecer a importância do conceito, em articulação com outros caracteres conforme o esquema que segue:

 

                                                                                  tian

                                                                   xià           zi          ming

 

em que tian, o Céu (numa tradução simplista, já referimos) teria o direito de oferecer (ou retirar, em caso de má administração) o tianming, ou Mandato Celestial, para que tianzi, o Filho do Céu (Imperador ou Partido Comunista) administre tudo quanto existe, tianxiá, tudo debaixo do Céu, ou seja, a China. É com este esquema elementar que a China foi fazendo a sua história, dinastia sobre dinastia. Não é isto figura de retórica. Sempre que tianxiá está em muito más condições e tianzi é demasiado mau administrador, tian manifesta-se (catástrofes naturais, cheias e fomes, pragas, terramotos, revoluções, etc.) retirando-lhe o tianming. E a dinastia necessariamente muda.

 

   Este esquema de João de Deus (quase uma cartilha maternal da língua sínica) entender-se-ia bem melhor se eu soubesse traçar aqui, nesta carta, os pertinentes caracteres chineses: o tian que diz Céu, o ming que diz mandato ou missão, o zi que diz menino ou filho, o xiá que diz debaixo de... Mas, tal como está, também dá para perceber que tudo se refere ao Céu. No nosso Ocidente, ao que parece hoje em dia, a medida de todas as coisas é o dinheiro. O que, evidentemente, e apesar de não pensarmos nisso, vai afastando qualquer referência estratégica do plano e da prática política do Ocidente. Pois que é bem verdade que o objetivo dinheiro logo torna a atenção e o comportamento numa busca de oportunidades de enriquecimento (e quanto mais imediato, tanto melhor), com esquecimento da prossecução a prazo de valores constitutivos de humanidade: ordem e progresso, justiça e paz. A ideia de riqueza, finalmente, comanda a política. Não aludo apenas à corrupção, nem sequer à cumplicidade do poder político com o financeiro, ao ponto de tranquilamente se aceitar o viático da porta giratória. Refiro-me à propagada idealização do êxito (a que chamam "sucesso", isto é, "acontecido") medido por critérios quantitativos de PIB, lucros, dividendos, salários, e respetivo crescimento...ou de custo, dívida, défice, e respetiva diminuição. Nas relações internacionais, tudo se vai medindo por balanças comerciais e de pagamentos, por compensações e mercados rentáveis, a venda de armamento, por exemplo, não conhecendo, de facto, qualquer limite ético, e todos os bens ditos estratégicos sendo transacionados em função do pagamento ou como armas de chantagem. A cena internacional é também eleita para palco da exibição de megalomanias - de propaganda nacional, partidária ou pessoal (sobretudo para diversão das atenções internas) - ou simples encenação de recados, ameaças ou provocações. Viste, Princesa de mim, a comédia da inauguração da embaixada dos EUA em Jerusalém? Até deu lugar a discursos incendiados de dois pregadores, pastores "evangélicos" apoiantes de Trump e das posições hegemónicas de Israel (de que já te falei numa carta onde também referia o vice-presidente Pence) - um dos quais, aliás, leva no currículo (paradoxalmente?) umas diatribes clamando que os judeus que não se converterem vão para o inferno -  ... E, mais ainda, da presidencial filha Ivanka e seu marido, Jared Kushner, falando em nome dos EUA e em representação do seu presidente, assim violando a lei americana, que é, e bem, muito rigorosa em matéria de nepotismos e tentações imperiais! Talvez por isto, ou pelo disparate da própria declaração, apagou o registo oficial americano uma frase proferida pelo genro do presidente, no decurso da cerimónia e da violência israelita em Gaza: as we have seen from the protests of last month and today, those provoking violence are part of the problem and not part of the solution...  Tal espetáculo, a que assistia um Netanyahou babado, representava-se a menos de 50km do horror da repressão de manifestantes na faixa de Gaza, que reclamam o regresso à pátria e aos direitos que os sionistas violentamente continuam a roubar-lhes. Nesta perspectiva, e para um Kushner também, os palestinos são só problema, a excluir de qualquer solução...

 

    Já percebeste, Princesa que todos estes acontecimentos têm perturbado a tranquilidade da distância que habitualmente ponho entre o meu pensarsentir, com a decorrente escrita, e a agitação barulhenta de um mundo sempre confuso - e hoje cada vez mais, porque ao alvoroço noticiado se somam comentários exaltados, quase sempre facciosos e pouco, ou desonestamente, refletidos. Assim, eu também me afastei da pedagógica, e proveitosa, consideração da sabedoria, e utopia, do Tianxiá. Mas lá voltarei, consciente de que não há bela sem senão, e de que tudo é o que é - ou o que se formula - e a sua circunstância. E lembrado de ditos de Ji Zhe, professor no francês INALCO (Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais), numa resenha à 1ªedição chinesa do livro de Zhao Tinyang, publicada, em 2008, na revista La Vie des idées. Citando um filósofo de Beijing, Zhou Lian, Ji Zhe observa que Zhao põe em dúvida o individualismo metodológico que domina a filosofia ocidental e procura justificar o Estado a partir dos indivíduos considerados como seres atomizados, racionais e egoístas... daí concluindo que o seu conceito de Tianxiá seria uma poderosa alavanca do nacionalismo chinês. Já neste ano da graça de 2018, Ji Zhe ressurge mais crítico ainda: Tianxiá é um conceito ético poderoso que, no pensamento tradicional chinês, se inscreve num espaço universal e imaginário, e se distingue claramente do Estado. Tianxiá até permite criticar o atual poder chinês. Ora Zhao Tingyang critica o Ocidente e as relações internacionais, mas não a China. Permite, pois, uma aliança objetiva entre o mundo académico e o mundo político que pode ser perigosa.

 

   Vai longa esta carta, deixo para futuras o regresso ao tema. Mas desde já te lembro, Princesa de mim, que Ji Zhe vive e trabalha em Paris; Zhao Tingyang em Beijing. O nosso habitat condiciona-nos. E quiçá Zhao tenha de encontrar outros modos de tratar a China. Para terminar, deixo-te um trecho da parte II do seu livro, que trata de O Ser e o Devir da China, que traduzo:

 

   A China tem origens e uma composição complexas e mutáveis, e todavia transforma-se sem se afastar das suas origens. Zhang Guangzhi qualificava a civilização chinesa de «forma contínua». A razão da existência contínua da China explica-se pelo facto da China ser, em si mesma, uma maneira de crescer.

 

Camilo Maria

  

Camilo Martins de Oliveira