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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


“Cities have become dumping grounds for globally begotten problems.”
(Bauman 2003, 19)


No texto “City of Fears, City of Hope”, Zygmunt Bauman escreve que se vive hoje em permanente estado de revolução. O modo de vida urbano define-se através de uma constante mudança condensada e acelerada. 


Para Bauman, a cidade é, por isso, sinónimo de contínua transformação. Na sua opinião é também o lugar, por excelência, onde estranhos se encontram. 


A cidade vive da diferença e da complexidade. Os estranhos permanecem próximos uns dos outros e interagem (às vezes uma vida inteira) sem deixar de serem estranhos. Bauman explica que a densidade de ocupação do espaço resulta na concentração de problemas, necessidades, oportunidades e desafios, que uma pessoa só consegue entender se viver numa cidade. A constante necessidade de enfrentar problemas e fazer perguntas apresenta-se como o grande desafio urbano e pode assim elevar a inventividade da existência a níveis sem precedentes. (Bauman 2003, 6)


A vida na cidade, inevitavelmente, chama para si recém-chegados ou estranhos. Para Bauman, são os recém-chegados que trazem um novo olhar sobre as coisas e que desenvolvem novas formas de resolver problemas. Para aqueles que acabam de chegar tudo parece bizarro, nada é normal, nem dado como certo. Deste modo, para os enraizados e bem estabelecidos, os estranhos podem representar o desconhecido e a ameaça - são muitas vezes, vistos como os inimigos lógicos que põem em causa a tranquilidade e o orgulho local. Mas, uma cidade sem estranhos é um lugar sem vida. Bauman afirma que uma cidade será mais exuberante, pródiga e abundante, quanto mais os seus modos e os seus meios forem desafiados e questionados.


A cidade vive sempre de tensões e de equilíbrios constantes. A flutuabilidade intrínseca, a criatividade inerente, a proximidade, a densidade e a incerteza permanente da vida urbana, surge exatamente do relacionamento sempre incompleto e em constante agitação entre os vários espaços, organizações e indivíduos.


“Through their modern history cities have been the sites in which the settlement between contradictory interests, ambitions and forces was intermittently fought, negotiated, undermined, broken, revoked, re-fought, re-negotiated, challenged, found and lost, buried and ressurected.” (Bauman 2003, 14)


É verdade que são as forças contraditórias, as incompatibilidades mútuas e as tendências que se contradizem, que dão forma a uma cidade. Porém, segundo Bauman, o mundo atual está dividido entre o poder global e a pessoa local. O ser global está constantemente ligado a uma vasta rede de troca, de mensagens e de experiências privilegiadas e extraterritoriais que abrangem o mundo inteiro. O ser local depende do lugar onde mora, está ligado a uma rede segmentada e limitado à sua identidade (muitas vezes segregada) como garantia de defesa dos seus interesses. 


A imagem, que emerge desta descrição de Bauman, é a de dois mundos de vida segregados e separados, em que um domina o outro. Apenas o ser local é territorialmente circunscrito e a sua existência pode ser compreendida numa rede de noções ortodoxas geográficas, mundanas e realistas. Aqueles que vivem no mundo global não precisam necessariamente de pertencer a um lugar e a fluidez da sua presença desliga os seus interesses e as suas preocupações dos problemas de qualquer cidade. Por isso, para Bauman, o estado da liquidez da modernidade mede-se pelo aumento do intervalo que separa estes dois mundos. E no mundo globalizado atual as ações concretas parecem ser só locais: “Only in ‘local matters’ our action or inaction may ‘make a difference’; as for other, admittedly ‘supra-local’ affairs - there is (or so we are repeatedly told by our political lerdes and all other ‘people in the know’) ‘no alternative’.” (Bauman 2003, 18-19)


Sendo assim, na opinião Bauman, as cidades de hoje são os depósitos dos problemas gerados na escala mundial e infelizmente são as pessoas locais de qualquer cidade que têm a tarefa impossível de encontrar as soluções para todas as contradições globais existentes.


Ana Ruepp

PRELÚDIO A UMA DECLARAÇÃO DE DEVERES

 

Em 1943, ano em que viria a morrer, Simone Weil, então em Londres com a France Libre, escrevia o "Prelúdio à Declaração dos deveres para com o ser humano", que Albert Camus publicaria em 1949, na Paris do pós-guerra, quando dirigia, na Gallimard, a coleção "Espoir", pondo-lhe o título de "L´Enracinement": "O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. Uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem por raiz a sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do porvir. Participação natural, quer dizer, trazida automaticamente pelo lugar, o nascimento, a profissão, o meio humano. Cada ser humano precisa de ter muitas raízes. Precisa de receber a quase totalidade da sua vida moral, intelectual, espiritual por intermédio dos meios de que naturalmente faz parte". É a este meio multiradical que chamo cultura: duma pessoa, duma sociedade, duma civilização. Já aqui o disse, que a consciência da nossa identidade própria, e o reconhecimento do outro e da diferença são condições necessárias do diálogo. O Estado, disse Bourdieu, lapidarmente, "é uma ideia"... Quiçá uma ideia abstrata e jacobina - já o afirmaram - que se institucionalizou e se tornou no centro soberano da atribuição de direitos e deveres, regalias e punições. O seu aparelho institucional vai tentando apropriar-se do sentimento patriótico para cimentar a sua hegemonia, com que pretende substituir a fidelidade à Pátria (que é uma qualidade do amor) - e a tradição que nos faz descobrir, no passado comum, as raízes da nossa comunhão presente - pela obediência às orientações e imposições dos interesses presentes. Na sombra da conspiração do Estado está sempre - aliado, manipulador, cúmplice, especulador ou simples eminência parda - o Dinheiro. Tal como o Estado, escreve ainda Simone Weil, "o Dinheiro destrói raízes em qualquer lado onde penetre, substituindo todas as motivações pelo desejo de ganhar". Ou, citando de memória Adriano Moreira, "substitui-se o valor pelo preço". Antes de recordar Zygmunt Bauman, numa reflexão sobre o que convencionalmente se vem chamando "crise de valores", esclareço que, ao referir-me à descoberta das raízes da nossa comunhão presente no passado comum, não penso em "purezas" étnicas, nem em qualquer "superioridade" de raça ou de valores. Penso sim, como já disse, na "nossa vida antes de nós", numa história de encontros e desencontros, que nos moldou uma identidade forte, cuja consciência nos faculta o poder de nos abrirmos ao mundo. O desenvolvimento atual da historiografia, a globalização da investigação histórica, ajudam-nos a aprofundar, a enraizar, a nossa identidade, a redescobri-la no contexto das outras e no olhar dos outros sobre nós. Esta consciência de que existimos em relação com o que fomos e com os outros é necessária como contraponto à tendência hodierna que Zygmunt Bauman chama "a privatização da vida em geral". Tenho refletido sobre o apagamento das fronteiras entre a intimidade e a publicidade, designadamente na chamada "comunicação (?) social": o despudor, o descaramento com que se atiram para o pasto das massas, quer episódios dolorosos das vidas, quer comportamentos que, decentes ou indecentes, só podem ser humanamente compreendidos pelos próprios intervenientes ou, quando muito, na solidariedade das comunidades a que pertencem. Chegamos assim ao ponto de, a partir da vida das pessoas, com o que necessariamente tem de prazenteiro e doloroso, de feio e de bonito, se fabricarem produtos de consumo mediático. Na sociedade de consumo, também as pessoas são objetos, são estimadas pelo preço, não pelo valor. Assim compreendi, finalmente, que a razão porque se consome a privacidade dos outros transformada em artigo para venda, é a necessidade de iludir a solidão a que conduz a privatização geral da vida: porque se rejeita o enraizamento na solidariedade, a responsabilidade pelo outro, sem a qual nenhuma relação humanamente digna é possível. A redução da pessoa ao indivíduo, da moral ao "chacun governa-se" é diametralmente oposta à moral que Lévinas tão bem define como "existir para o outro". Na nossa cultura, diz-se mandamento novo: amai-vos uns aos outros... Recorro a uma citação de Bauman: "Isolados dos que estão ao seu lado. Privatizados. Compartilhando o espaço, mas não os pensamentos ou os sentimentos - e agudamente conscientes de que, com toda a probabilidade, tampouco partilharão o mesmo destino. Esta consciência não alimenta necessariamente ressentimento ou ódio, mas traduz indiferença e reserva. ´Não quero envolver-me´, diz-se, para calar emoções que nascem ou asfixiar no ovo qualquer relação humana, íntima e profunda, do género ´para o melhor e o pior, até que a morte nos separe´. Estão na moda fechaduras, cadeados e alarmes cada vez mais engenhosos. Não em virtude da sua utilização prática, eficaz ou conjetural, mas pelo seu simbolismo, pois servem para delimitar a fronteira do eremitério onde não queremos que nos incomodem e significar a decisão de que ´Por mim, o que está lá fora bem pode ser um deserto."  Este encerramento de si, o receio dos outros, o medo do compromisso resultam de uma incerteza crónica, dum andar em perdição pela floresta sempre mutante das novidades noticiosas e publicitárias que nos bombardeiam. Assim se vai perdendo a densidade interior, a consistência dos valores e das crenças, a esperança no futuro ou na eternidade, tudo se reduz ao desejo imediato. À durabilidade vem sucedendo a precaridade. O Estado tentacular e controlador, a "comunicação social" e a publicidade, condicionantes da opinião, do gosto, da cultura em que vivemos, a grande indústria e distribuição, impondo sistematicamente produtos e "gadgets" sempre novos e, desde logo, já obsoletos... Onde e como poderemos ser livres e como poderá a nossa consciência respirar? Tudo parece cada vez mais precário: o emprego e as relações humanas em geral, a conjugalidade e o amor, os valores mobiliários e imobiliários, a arte que se faz e desfaz em função de um espaço ou de uma ocasião, a segurança social, as dietas de emagrecimento, as receitas para um coração saudável, sei lá, as modas todas, pois que em modas nos movemos... Não podemos, todavia, voltar ao passado, não é possível encarar o futuro, nem o presente, com saudosismos. Será pela atenção aos sinais do tempo - alarmes - que teremos de despertar a consciência para o tempo e procurar o modo. Para não cairmos no barranco de cegos.

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 31.08.12 neste blogue.

A VIDA DOS LIVROS

De 25 a 31 de março de 2019

 

 

«Retrotopia» de Zygmunt Bauman (Premier Parallèle, 2019) acaba de sair em Paris e constitui como que um testamento do grande pensador que lançou a noção de “sociedade líquida”, para significar o mundo contemporâneo instável, atomizado e imediatista…

 

 

ELOS FRÁGEIS E PASSAGEIROS
Ao assistirmos ao enfraquecimento dos elos sociais, da coesão social e da regulação, presenciamos uma guerra anónima de todos contra todos, na qual prevalece o medo, a desconfiança e a indiferença. Se fomos formados como indivíduos competitivos, na sociedade, na escola, no trabalho, partimos do pressuposto que podemos ser autossuficientes e somos levados, mais tarde ou mais cedo, a perceber a nossa impotência perante a complexidade dos desafios que nos são lançados. Estamos perante a hipervalorização da singularidade e a tentação de negarmos a relação com os outros e com a diferença. E Bauman, nesta obra derradeira, lembra que “o que ainda designamos como ‘progresso’, por inércia, evoca emoções que estão nos antípodas das que Kant, que inventou o conceito, considerava”. A maior parte das vezes, falar de progresso significa o medo de uma catástrofe iminente. E o pensador recorda o célebre texto de Walter Benjamin sobre o “Angelus Novus” de Paul Klee: “A face do Anjo da História está voltada para o passado. Onde nós percebíamos uma cadeia de eventos, ele vê uma catástrofe única que continua empilhando destroços e atirando-os para diante dos seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos, e tornar inteiro o que foi esmagado. Mas uma tempestade está soprando do paraíso; o anjo ficou preso em suas asas com tal violência que não pode mais fechá-las. Essa tempestade empurra-o irresistivelmente para o futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto os escombros crescem, diante dele, rumo ao céu. A tempestade é o que chamamos progresso.” E pergunta-se: quantas ocupações e empregos irão desaparecer, como iremos sobreviver? Até que ponto os robôs não ocuparão os espaços da humanidade? Enquanto as utopias, como a de Thomas Morus, procuravam no futuro uma sociedade melhor, uma retrotopia busca o bem-estar individual centrado numa visão retrospetiva. E o certo é que as sociedades de hoje tendem a organizar-se, em primeiro lugar, contra o que as ameaça, designadamente os migrantes e os imigrados – para defender a sua política e a sua cultura local, como tem salientado Michael Walzer. E assim nasce a ideia perigosa de construir um pequeno Estado, limpo de todos os estrangeiros e todas as diferenças, baseado numa utopia às avessas, num passado de pureza, que nunca existiu, supostamente protegido de qualquer importuna proximidade de quem chega e é diferente. Estamos perante o efeito de uma desigualdade desregulada, que se agrava. Quem se sente ameaçado procura reforçar o seu conforto. E há um certo regresso ao tribalismo, que leva ao paradoxo dos muros que se elevam, enquanto as fronteiras tendem a desaparecer. A proteção e a compaixão, mais do que o ódio e a divisão, reportam-se aos mais próximos, enquanto os outros devem ficar à distância. A proteção social deveria assim ser reservada aos nossos, mais do que aos outros. No fundo, uma visão protecionista parece prevalecer - por exemplo, quem chega de fora não tem lugar, ocupa não-lugares.

 

UM LUGAR “SEM LUGAR”…
“O mundo que é o nosso não lhes reserva qualquer lugar, mas eles ocupam provisoriamente o coração dos nossos bairros”. Encontrar-se perante essas pessoas “sem-lugar” significa tomar contacto direto com realidades inesperadas, de efeitos secundários indesejáveis. Um lugar que era conhecido, torna-se inesperadamente desconhecido, e daí a tentação de fechar as fronteiras desse território antigo, para recuperar a situação anteriormente conhecida, ignorando que são as novas circunstâncias responsáveis pela situação agora vivida. Trata-se de procurar viver a ilusão de manter distante uma realidade que existe e que não podemos ignorar. Entretanto as desigualdades agravam-se. Na viragem para o atual século, o valor acrescentado gerado pelo crescimento económico reverteu basicamente para os mais ricos, enquanto a restante população viu a riqueza escapar-se-lhe – o que se agravou com a crise financeira de 2007-2008. Os números são esclarecedores e preocupantes: a metade da população mundial com menos rendimentos (3,5 mil milhões de pessoas) detém apenas 1% da riqueza mundial total, ou seja, exatamente o mesmo que é detido pelas 85 pessoas mais ricas do planeta… Z. Bauman fala-nos de dois tipos de injustiças sentidas pelas populações: as habituais, há muito consideradas e de algum modo aceites; e as novas, cuja proporção aumentou significativamente, as quais sendo porventura de injustiça inferior às outras, assumem um carácter mais chocante pela novidade, podendo dar lugar à revolta… De facto, na Idade Média não foram as injustiças mais chocantes, como o não pagamento de remuneração, que levaram à rebelião dos servos, mas o facto de os terra-tenentes terem exigido mais do que anteriormente. Assim, o momento presente, suscita preocupações e perplexidades que poderão gerar tensões sociais com consequências imprevisíveis.

 

COMO ENCARAR A REALIDADE PRESENTE?
O autor de “Retrotopia” refere, assim, uma consciência cosmopolítica, que abre as portas à união e à cooperação. Em vez da procura de um inimigo ou da divisão entre “nós e eles”, o desafio do nosso tempo consiste em conceber, pela primeira vez na história da humanidade uma ideia que não se apoie na lógica da separação. Nós habitantes humanos da terra vivemos uma situação perfeitamente clara, na qual somos obrigados a optar entre duas alternativas – a cooperação à escala planetária ou as valas comuns… Como a sociedade líquida, a retrotopia não representa, porém, solução para o futuro. Olhem-se os problemas mais graves com que nos debatemos: a defesa do primado da lei; os fenómenos migratórios; a qualidade da democracia; a cultura da paz; o combate ao aquecimento global; a proteção do meio ambiente; o desenvolvimento sustentável; a cooperação contra a pobreza; a equidade intergeracional; a ciber-segurança; a evolução do mundo digital e a preservação da diversidade cultural – eis o que se impõe, em lugar de planos rígidos ou soluções baseadas na inércia, uma estratégia baseada, em instituições que favoreçam a representação, a participação e a mediação centradas numa cidadania livre, responsável e ativa. Trata-se, no fundo, de fortalecer os elos da sociedade, a coesão social e a regulação, a sustentabilidade e a justiça, superando a guerra anónima de todos contra todos, privilegiando o respeito mútuo, a confiança e a responsabilidade. Mais que “indivíduos competitivos” precisamos de cidadãos ativos, na sociedade, na escola, no trabalho, não autossuficientes, mas solidários e cooperativos, capazes de ligar o mérito e a justiça, a atenção e o cuidado, a experiência e o exemplo, a aprendizagem, o conhecimento e a sabedoria, a clareza e a complexidade. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CUIDAR MESMO DO PATRIMÓNIO!

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Diário de Agosto * Número 20

 

Zygmunt Bauman, ao contrapor os exemplos do caçador e do jardineiro, põe a tónica na ligação necessária entre conhecimento e sabedoria. O caso do semeador ou do jardineiro, de facto, é muito fecundo. Falamos da essência da criação pela cultura. Muitas têm sido as iniciativas deste Ano Europeu do Património Cultural. E todos somos chamados a assumir a capacidade de garantirmos que quando recebemos o património material, natural ou contruído, e imaterial, bem como a criação contemporânea, estes devem ser preservados, protegidos, beneficiados e transmitidos nas melhores condições às gerações futuras. Não esqueçamos a etimologia que liga patres e múnus – o serviço do que recebemos de nossos pais. Eis porque o conceito de património cultural é dinâmico. A atenção e o cuidado têm de estar bem presentes, em especial quando tratamos do património onde quer que se encontre, na esfera pública ou privada, civil ou religiosa. Não deixar ao abandono esse património, significa protegê-lo – e essa proteção leva a cumprir algumas regras muito simples, mas essenciais:

(a) antes do mais, ter os bens com valor patrimonial em segurança;

(b) não deixar tais bens sem vigilância, sobretudo quando houver presença de público;

(c) só entregar a conservação e o restauro a especialistas com provas dadas;

(d) recusar intervenções de amadores ou de meras boas intenções;

(e) no caso de dúvida sobre o que fazer, consultar especialistas;

(f) sempre que há um bem ou uma peça em perigo deve ser guardada até que haja condições para ser restaurada nas melhores condições;

(g) realizar inventários rigorosos, que permitam conhecer o que existe e as suas características fundamentais;

(h) realizar fotografias e ter uma identificação precisa do que existe.

 

 

Lembremo-nos que uma medida tão simples como o fecho dos templos ou edifícios históricos quando não há um vigilante presente, permitiu uma redução drástica dos furtos, assaltos ou degradação de bens patrimoniais. Do mesmo modo, o projeto SOS Azulejo, que obteve o Grande Prémio da Europa Nostra também permitiu, graças a medidas de prevenção, uma proteção efetiva de conjuntos com valor histórico e artístico.

 

Muitas vezes, mais importante do que mobilizar ou reclamar vultuosos meios financeiros, torna-se essencial cumprir procedimentos simples que evitam perdas irreparáveis. Usar tintas ou colas desadequadas, utilizar materiais não aconselháveis, recorrer ao cimento armado sobre pedra, não usar dos mesmos materiais originalmente utilizados, – tudo isso pode ter como consequência a destruição irremediável de bens patrimoniais que duraram vários séculos e que mercê de uma intervenção errada são destruídos. É mais importante ter um inventário estudado e atualizado do que tentar fazer pseudo-restauros por amadores com consequências irreparáveis. Paralelamente, é importante dar a conhecer o património existente, através de ações pedagógicas com escolas ou associações da sociedade civil. Segundo o Euro-barómetro, publicado a propósito do Ano Europeu, os portugueses salientam-se pela positiva no reconhecimento da importância e do valor do património, mas também pela negativa ao terem sido dos menos classificados quanto a visitas a museus ou a ações concretas em prol do património cultural.

 

Lembremos a poesia de Afonso Lopes Vieira, sobre um jardineiro…

 

«Não há jardineiro assim, 
Não há hortelão melhor 
Para uma horta ou jardim, 
Para os tratar com amor. 

É o guarda das flores belas, 
da horta mais do pomar; 
e enquanto brilham estrelas, 
lá anda ele a rondar... 

Que faz ele? Anda a caçar 
os bichos destruidores 
que adoecem o pomar 
e fazem tristes as flores. 

Por isso, ficam zangadas 
as flores, se se faz mal 
a quem as traz tão guardadas 
com o seu cuidado leal. 

E ele guarda as flores belas, 
a horta mais o pomar; 
brilham no céu as estrelas, 
e ele ronda, a trabalhar... 

E ao pobre sapo, que é cheio 
de amor pela terra amiga, 
dizem-lhe que é feio 
e há quem o mate e persiga 

Mas as flores ficam zangadas, 
choram, e dizem por fim: 
- «Então ele traz-nos guardadas, 
e depois pagam-lhe assim?» 

E vendo, à noite, passar 
o sapo cheio de medo, 
as flores, para o consolar, 
chamam-lhe lindo, em segredo...»

 

E esta, hein?

 

   Agostinho de Morais

 

 

 

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A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture

 

 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS


   De 16 a 22 de janeiro de 2017

 

«Confiança e Medo na Cidade» de Zygmunt Bauman (Relógio d’Água, 2006) reúne um conjunto de conferências do sociólogo polaco recentemente falecido em Leeds (Inglaterra), onde se colocam os problemas mais prementes das sociedades contemporâneas, em especial no tocante à fragmentação social e à resistência às diferenças.

 

UM PENSADOR CRÍTICO
Nascido em Poznan em 1925 Bauman foi profundamente marcado pela história europeia do século XX. Quando a Polónia foi invadida pelas tropas nazis fugiu com a família, de origem judaica, para a União Soviética. Alistou-se na divisão polaca do Exército Vermelho, sendo condecorado em 1945. Depois da guerra regressou a Varsóvia, onde se casou com a futura escritora Janina Lewinson, sobrevivente do ghetto de Varsóvia, falecida em 2009. Militou no Partido Comunista e estudou profundamente a obra de Karl Marx, numa perspetiva aberta e crítica. A sua obra caracteriza-se, porém, pelo ecletismo e pela recusa de qualquer ortodoxia. O antissemitismo manifestado nas perseguições de 1968 por ocasião dos protestos de estudantes e intelectuais levaram-no a abandonar a Polónia, partindo para Telavive, onde viveu até 1972, momento em que partiu para Inglaterra, para exercer funções docentes na Universidade de Leeds. A guerra, as purgas e o exílio influenciaram a sua vida e o seu pensamento inconformista e heterodoxo. Foi o conceito de «modernidade líquida» que o celebrizou, do mesmo modo que em 1989 o seu «Modernity and Holocaust» teve uma grande divulgação. Aí considerou que o programa de extermínio levado a cabo pelo regime nazi foi um acontecimento ligado à modernidade, vista nas suas dimensões técnico-científica e político-ideológica. Para o sociólogo polaco, vivemos uma época que se caracteriza pela fluidez, pela precariedade, pela transitoriedade, pelo imediatismo e por aquilo que não se deixa apreender. A essa realidade chamou «sociedade líquida». Desde o domínio económico ao plano afetivo, vivemos essa tendência para a liquidez – de certo modo como Gianni Vattimo fala do “pensamento débil”. Como afirmou Fernando Vallespin há pouco: trata-se de uma «organização social em que nada permanece, em que tudo é fugaz, incompleto, indefinido, onde, com efeito, tudo o que é sólido se desvanece no ar» (El Pais, 10.1.2017). Daí uma séria preocupação com a perda da dimensão ética pública. Falta um sentido de missão coletiva, que esteve associado à modernidade. O poder deixou a esfera política e fugiu do controlo democrático. Os direitos económicos escaparam ao Estado Social. Os direitos políticos foram dominados pela teologia do mercado. Os direitos sociais foram enfraquecidos e reduzidos pelo individualismo fragmentário. Os cidadãos viram-se desprotegidos num mundo que não dá segurança, sofrendo a precariedade, que cria um novo proletariado, ainda que sem consciência de classe.

 

UM MUNDO INSEGURO
«O mal já não reside só nas guerras ou nas ideologias totalitárias (recorda ainda Vallespin), assenta também na indiferença ante o sofrimento dos demais, como na questão dos refugiados, ou nas “orgias verbais de ódio anónimo (…)” que encontramos na internet.» Bauman preocupou-se, por isso, com o consumismo, a imigração, a globalização e o fim das ideologias. É certo que na comunidade dos sociólogos muitos viram-no com desconfiança, no entanto compreendeu como poucos o que se estava a passar nas sociedades ocidentais, com os indignados em Espanha, o “Occupy Wall Street” em Nova Iorque e com os movimentos antiglobalização… Mas se se interessou pelas experiências, também criticou as suas debilidades e incongruências – dizendo que era mais fácil reunir um protesto do que construir propostas concretas. Contudo, se havia mal-estar importava dar-lhe resposta. O tempo confirmaria, aliás, essas preocupações – em especial perante o Brexit e a eleição de Donald Trump. Daí a crítica ao «ativismo de sofá», de quem julga possível mudar o mundo com um estalar de dedos ou das redes sociais, já que não se estabelece um verdadeiro diálogo entre pessoas e grupos de diferentes, limitando-se a funcionar em circuito fechado. Se alguns o consideraram pós-moderno, Bauman recusou o epíteto, porque falta perspetiva histórica para considerar terminada a modernidade. E apesar de analisar a pós-modernidade, dizia não se integrar nessa corrente, acrescentando, com o seu humor fino: afinal, um ornitólogo não precisa de ser um pássaro… Quanto muito vivemos uma versão privatizada da modernidade, «o fim da era do compromisso mútuo», segundo a lógica privada do interesse de cada um. Daí a crise da democracia, que deixou de pensar como se fazia na Ágora grega – onde se discutiam os interesses privados transformando-os em assuntos públicos, criando, a partir do interesse público, direitos e obrigações individuais. O símbolo da sociedade contemporânea deixou, assim, de ser o lar ou a casa (ethos e oikos) para se tornar o hotel, passageiro e incaracterístico. E a crise dos refugiados obriga, no fundo, à compreensão da ansiedade existente, contra a vergonha das valas e dos muros. Estava em causa a preocupação fundamental de Bauman – com a recusa do outro e com o medo relativamente ao diferente.

 

SOB O SIGNO DO MEDO
Em «Confiança e Medo na Cidade», Z. Bauman lembra que os medos modernos tiveram origem na redução do controlo do poder político sobre o poder económico, em especial com a desregulamentação dos mercados e a dissolução da solidariedade. Assim, a exclusão deixa de ser remediável, para aparecer como definitiva. E há uma polarização que leva os cidadãos da primeira fila a serem privilegiados e a reforçarem a sua importância e os que estão na outra ponta do espetro a perderem capacidade de agir e de satisfazerem as suas necessidades económicas. Os primeiros não estão ligados ao lugar onde moram, enquanto os segundos estão fora dos circuitos relevantes e condenados a permanecer no mesmo lugar. «Os poderes reais que criam as condições nas quais todos nós atuamos flutuam no espaço global, enquanto as instituições políticas permanecem de certo modo em terra, são locais». E as pessoas desarmadas perante a lógica global tendem a fechar-se sobre si mesmas – tornando-se as cidades espelho das contradições da globalização. Ghettos de ricos coexistem com ghettos de pobres, sem que haja fatores que os façam comunicar. Assim nasce o sentimento de medo do desconhecido ou do estrangeiro. A necessidade de segurança influencia a organização dos espaços e as construções – impondo uma lógica fundada na vigilância e na distância. O medo e a recusa do outro geram o medo de misturar-se (mixofobia) – mas há um desafio exigente para favorecer a mixofilia,. E Bauman é claro ao dizer-nos que «a fusão que uma compreensão recíproca exige só poderá resultar de uma experiência compartilhada e certamente não se pode pensar em compartilhar uma experiência sem partilhar um espaço». Eis por que razão o grande desafio das sociedades contemporâneas seja recuperar a dimensão comunitária do espaço público, como modo de aprender a arte de uma coexistência segura, pacífica e amigável.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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CRÓNICA DA CULTURA – O INÍCIO…

 

E quase gritava o convidado da conferência a que assisti há alguns (poucos) anos:

Quem não está no Facebook não existe! Definitivamente ainda não começou a ser nada neste novo mundo onde todos nós nos conhecemos para felicidade nossa. Evoluir é isto. O Twitter também faz parte intrínseca e indispensável do nosso percurso.

(e por aí adiante, continuou)

 

Ora bem. Eu não estou no Twitter, nem no Facebook; nem penso que se estivesse em ambos ou num só, estaria ergo sum. Sei que há quem entenda poder julgar-me pelo que acabo de dizer, contudo eu não os julgo, nem mudo nada por assim ser, nem me atormento por esse facto.

 

Vivem-se tempos – fora e dentro do Twitter, do Facebook ou de outras “novidades” similares -  em que a maioria diz uma coisa e seu contrário, e, nem mesmo assim, tudo junto, exprime uma minúscula ideia que seja. Cada vez mais, tudo se consome logo ali, na tagarelice que muito leva a que se vote por opiniões expressas por outro, tendo chegado a este outro por vias de um éter com força de ordem e ADN desconhecido.

 

E esta realidade leva-me a pensar na privacidade; num universo oposto ao Big Brother. Uma privacidade enquanto “local” onde se gera um raciocínio tranquilo, pesando pós e contras, oposto à chamada sociedade liquida sem pontos de referência e na qual o projeto é fazer-se ver.

 

Deixou de existir a ideia -  que entendemos necessária - de que exista uma construção higiénica do pensar. Nela haverá sempre rebelião, transgressão, equilíbrio, inocência primordial, enfim tudo o que caracteriza a circunstância humana e que é meio de gerar uma possibilidade.

 

Li em Zygmunt Bauman, que nos tempos atuais, as relações entre os indivíduos são cada vez menos frequentes e menos duradouras. O amor é mero acumular de experiências e o sentido da união foi empalado pela insegurança e vai surgindo a «sociedade confessional» como sendo a que que promove a exposição pública dos espiões e dos espiados, conduzindo a que todos se identifiquem por uma soma, que, resultará num número que faz parte do conhecimento inútil, recordando aqui Jean François Revel. Esta a sociedade que afinal o conferencista que ouvi, entendia por quase-perfeita.

 

É assim, a vírgula passou a adenda e o ponto de interrogação perdeu a razão de oxigenar. As acrobacias são miméticas e o meu rio, esse, no seu modo, insiste e vai até ao mar conhecer o seu início.

 

Teresa Bracinha Vieira

Janeiro 2017