Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

TRANSFIGURANDO-NOS REVIVEMOS…

 

Minha Princesa de mim:

 

O sexteto para cordas Verklärte Nacht (Noite Transfigurada) inspira-se num poema de Richard Dehmel, poeta alemão que Arnold Schoenberg muito admirava. Curiosamente, Dehmel era detestado por Stefan Georg  -   o poeta da letra cantada no quarteto nº 2 do mesmo Schoenberg  de que já te falei  -  não só por divergências estéticas,literárias ou poéticas, mas por lhe ter roubado a namorada, Ida Coblenz, que viria a ser Frau Dehmel... Aliás,essa traição ou decepção feminina atiraria Stefan George, sempre muito influenciado por Nietszche, para um círculo de gente com tendências misóginas e ditatoriais. A última obra de George  -  que também foi um poeta inovador e sofrido  - intitulou-se Das Neue Reich, e foi publicada em 1928... Na Noite Transfigurada, a poesia transpira da música das cordas, não repete as palavras de Dehmel. Mas é tão comovente  - e tão atual  - o movimento das almas que transfiguram e iluminam a noite, que não resisto a traduzir para ti, neste papel de carta onde não posso gravar o som da música, a letra oculta: 

 

      Dois seres humanos vagueiam pelo bosque nu e frio;

      acompanha-os a lua,para ela olham.

      Corre a lua por sobre os carvalhos altos,

      nenhuma nuvem perturba a luz do céu,

      em que se recortam negras copas.

      Uma voz de  mulher se faz ouvir:

     "Trago em mim um filho que não é teu,

      a teu lado pecadora caminho.

      Contra ti cometi uma grave falta.

      Já não esperava felicidade alguma

      e ardia no desejo de um sentido dado à minha vida,

      pelas alegrias e deveres da maternidade;

      por isso ousei e fremente deixei

      que um estrangeiro abraçasse o meu corpo

      e me fizesse prenha.

      Mas eis que agora se desforra a vida,

      agora que te encontrei."

      São titubeantes os seus passos,

      caminha e olha a lua que os acompanha

      e uma luz inunda o seu olhar sombrio.

      Diz-lhe a voz do homem:

      "Não seja a criança que concebes

      fardo que te pese na alma.

      Olha,vê como claramente brilha o universo!

      À nossa volta reina o seu esplendor radioso,

      comigo flutuas sobre o mar frio,

      mas singular calor estremece e passa 

      de ti para mim, de mim para ti.

      Por ele se transfigura a criança estranha,

      para mim e por mim a trarás ao mundo.

      Por ti o esplendor me penetrou

      e de mim mesmo fizeste uma criança."

      Enlaça-lhe as ancas poderosas,

      num beijo se confundem os suspiros...

      Dois seres humanos caminham pela alta,clara noite.

 

Para o compositor do sexteto, este não pretende contar factos, antes quer representar a natureza e exprimir sentimentos humanos. Schoenberg escolheu um poema de Richard Dehmel que lhe parecia traduzir bem uma atmosfera naturalista e erótica, mas finalmente mística, característica da obra aonde o foi buscar: Weib und Welt (Mulher e Mundo), publicada em 1896, três anos antes da composição do sexteto. Veio-me à memória, ao ouvir hoje esta peça do Schoenberg,um quadro de Walter Leistikow, agora no Museu de Berlim, mas que fora rejeitado, em 1898, pela Grosser Berliner Kunstausstellung, levando assim um grupo de artistas berlinenses a fundarem uma Secession. O mesmo já sucedera em Munique, acontecera em Viena. A viragem do sec.XIX para o XX foi um tempo de oscilações e evoluções do pensamento filosófico e político, das éticas e das estéticas, que as artes plásticas, a música e a literatura europeias muito reflectiram. Nessa pintura de que me lembrei, Noite no Schlachtensee, senti a atmosfera da Noite Transfigurada: sobre o lago de Schlachten, a lua cheia inunda de luz o ar e a água, e em redor recorta e transfigura as árvores do bosque. Atrevo-me a sugerir que o quadro, o poema e o sexteto traduzem a inspiração de um naturalismo expressionista. O Japão desse tempo vive a chamada Restauração Meiji. Esta não foi pacífica, deu alguma luta. Mas penso que,mais do que a derrocada final do shogunato Tokugawa  -  que disciplinara e geria um sistema feudal, o tal que a restauração do poder imperial transformou numa nobreza de corte, à qual foram, aliás, atribuídos títulos à europeia  -  se abriu então claramente a porta a um debate sobre valores estruturantes que incluíam, nos planos político, social, económico e familiar, tal como no sentido ético e estético, ideias vindas de fora. Já conversámos sobre isso, e sabemos que, depois do encerramento do Japão ao exterior, em meados do século XVII, por receio do proselitismo cristão  -  sentido como veículo de conquista pela monarquia espanhola  -  e falhadas as tentativas de comércio internacional pela rota de Manila, que substituiria a Nau do Trato de Macau  - apenas uns raros chineses e os holandeses autorizados em Deshima  -  ilhéu artificial na costa de Nagasaki, para onde, antes, tinham sido confinados os portugueses  - foram assegurando as trocas com o exterior. Mas é verdade que, sobretudo a partir de 1720, quando foi abolida a proibição de entrada de livros e obras estrangeiros, desde que não fossem propaganda cristã, a informação científica e artística vinda da Europa foi encontrando eco e seguidores no arquipélago do Sol Nascente. O limitadíssimo estabelecimento holandês de Deshima foi,apesar de tudo, uma porta de entrada,não só para cientistas como von Siebold,mas para produtos que não eram só mercadorias comerciais, mas obras de arte,ciência e técnica europeias. Já nos finais do sec.XVIII, artistas como Shiba Kokan consideravam que a pintura ocidental era superior à chinesa e japonesa, pelo realismo e parecença das suas representações. Recordo, aliás, uma pintura de Shiba Kokan sobre seda, representando tanoeiros: quando a vi, logo me lembrei de um Brueghel... Mais tarde, Maruyama Okyo (1733-95) dará um passo em frente, ao defender que se não se esboçar a coisa real em primeira mão para então a tornar numa pintura nova, aquilo que se fez não merecerá o nome de pintura.O realismo figurativo ocidental é, assim, de certo modo incorporado na tradição mais fantasista da arte sino-nipónica. Por essa simbiose se abrem novos caminhos às artes, cuja execução deixa de obedecer exclusivamente a preceitos de repetição, reprodução ou continuação das obras, estilos e escolas anteriores, para vir a considerar as vias do estranho e do inesperado. Mas, se a influência ocidental se fez sentir nos conceitos estéticos e nas técnicas, também, como o demonstra o grupo Tenshin, surge, na era Meiji, uma fortíssima corrente de evolução da arte japonesa com raízes na sua própria tradição. Assim se alargará na diversidade o riquíssimo panorama das artes japonesas no século XX.  E é certamente por essa digestão nipónica de tudo, que os japoneses continuam sendo, para nós, simultâneamente tão próximos e vagamente estranhos... E por me ter ocorrido esse pensamento, respondo à tua preocupação comigo: estou bem, talvez um pouco melancólico... encosto a cabeça à ternura de ti. Quiçá porque só junto de ti alguma vez busquei conforto: és-me como vocação de harmonia. Posso não me recordar do último momento em que nos cruzámos, mas agora mesmo sinto, na minha, fisicamente, a tua mão, como se as tivéssemos dadas. E serenamente, como um guardador de rebanhos ao cair da noite, me recolho ao mistério do nosso encontro. Faz-me bem.

   

          Camilo Maria 


Camilo Martins de Oliveira