UM ESPAÇO DE DIÁLOGO
Comecei a frequentar o Centro Nacional de Cultura nos anos 1967-68, quando estava nos primeiros anos da Faculdade de Letras de Lisboa. O CNC complementava os lugares onde era possível, para quem fazia parte da contestação estudantil ao regime, ouvir falar de temas proibidos, discuti-los, expor de forma mais ou menos livre aquilo que fazia parte da vida política e cultural da época, trazido pelas revistas a que se tinha acesso («Esprit», «Temps modernes», «Tel Quel»), pelo cinema novo francês (Truffaut, Resnais e sobretudo Godard), numa época em que a França, isto é, Paris ainda era o centro do mundo.
No CNC era possível ouvir falar de forma quase sempre desassombrada, e isto apesar da vizinhança da PIDE na mesma rua António Maria Cardoso, das teorias de vanguarda, da pintura, dos filmes que acabavam de estrear, das situações que na altura dominavam as conversas, de que a guerra do Vietnam ocupava a maior preocupação; também se falava da Igreja, na sua vertente progressista; mas o que fazia parte igualmente das sessões era a literatura que começava a fugir a um cânone neo-realista a chegar ao seu esgotamento, e a abertura para novas formas de escrever e pensar a criação portuguesa na poesia e no romance, tal como na teoria, tendo Eduardo Prado Coelho dado a conhecer essa nova visão que se polarizava no estruturalismo em conferências que ali fez.
Muitas vezes, terminadas as sessões, as conversas prosseguiam na sequência dos assuntos que nos levavam ao CNC: e ali se falava da situação universitária, já então dominada pelo ressurgir da contestação que tinha como exemplo o que se passara nos USA, em Berkeley, a partir das doutrinas de Marcuse, e do que teve lugar em 1968 com a ocupação da Sorbonne. Tudo isto fazia parte desse contexto que influenciou a geração de que eu fazia parte, e que nos levou a envolver-nos nas eleições de 1969, as primeiras do consulado marcelista em que, no início, se criou uma ilusão de abertura logo desmentida pelos factos. Foi aí que conhecemos melhor António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, tendo sido o João Bénard que convidou alguns desses jovens que andavam entre a contestação estudantil e a militância na Comissão Democrática Eleitoral (que ia do PC para a esquerda) e na CEUD (monárquica e socialista), a integrar a redacção de «O Tempo e o Modo», revista que, na sua primeira fase, se podia considerar a expressão ideológica de muitos dos membros do CNC, que iam dos monárquicos aos católicos progressistas. António Alçada talvez desconfiasse dessa abertura promovida por João Bénard e lembro-me da que terá sido uma das primeiras reuniões, passada a fase pós-eleitoral que pusera fim à esperança de uma verdadeira renovação do regime por parte do sucessor de Salazar, em que Alçada pôs o lugar à disposição, tendo passado a direcção da revista para João Bénard. Fui um dos que entrei; e nesse primeiro momento da revista ainda coincidiram Jaime Gama, Alfredo Barroso, José Luís Nunes, do lado à direita do PC, com Amadeu Lopes Sabino, Arnaldo Matos, Luís Matoso, Sebastião Lima Rego, do lado à sua esquerda; rapidamente os radicais tomaram o
poder, o João Bénard cansou-se e afastou-se, a Helena Vaz da Silva, que era uma presença luminosa no meio das discussões inflamadas que muitas vezes tinham lugar, seguiu o mesmo caminho e, a partir da nova fórmula tipográfica, o caminho seguido foi o do corte com os «moderados» que viriam a formar o PS. Julgo que estes conflitos também se reflectiram no ambiente vivido no CNC onde as ideias mais radicais tiveram expressão nos debates que ali se promoviam, embora nunca tenham tomado o poder, como sucedeu na revista.
Estudar a história do CNC, em conclusão, é acompanhar a vida politica e cultural durante a Ditadura no pós-guerra, com todos os conflitos e entendimentos que a percorreram, mas tendo em conta que nunca a moderação e o espírito de diálogo, em que a Cultura tinha sempre o primeiro lugar, deram lugar aos excessos que, já no fim da Ditadura mas sobretudo no pós-25 de abril, dominaram a cena portuguesa.
Nuno Júdice